CARLOS LOPES
Em parte, os acontecimentos posteriores à Independência que acabaram por conduzir à sua abdicação, empanaram – como é inevitável – a grandeza de D. Pedro. Em especial, essa grandeza se traduziu no assumimento, até o final da vida, da nacionalidade brasileira – mesmo depois da saída do Brasil
Em 14 de dezembro de 1821 – um mês antes do “Fico” – D. Pedro escrevia a D. João VI:
“… a publicação dos decretos [das Cortes de Lisboa] fez um choque mui grande nos brasileiros e em muitos europeus aqui estabelecidos, a ponto de dizerem pelas ruas: ‘Se a constituição é fazerem-nos mal, leve o diabo tal cousa; havemos fazer um termo para o Príncipe não sair, sob pena de ficar responsável pela perda do Brasil para Portugal, e queremos ficar responsáveis por ele não cumprir os dois decretos publicados; havemos fazer representações juntos com S. Paulo e Minas, e todas as outras que se puderem juntar dentro do prazo, às Cortes, e sem isso não há de ir’.
“Veja Vossa Majestade a que eu me expus pela nação e por Vossa Majestade. Sem embargo de todas estas vozes eu me vou aprontando com toda a pressa e sossego, afim de ver se posso, como devo, cumprir tão sagradas ordens, porque a minha obrigação é obedecer cegamente, e assim o pede a minha honra, ainda que perca a vida: mas nunca pela exposição ou perdimento dela fazer perder milhares.
“Faz-se muito preciso, para desencargo meu, seja presente ao soberano congresso esta carta, e Vossa Majestade lhe faça saber da minha parte que – me será sensível sobremaneira se for obrigado pelo povo a não dar o exato cumprimento a tão soberanas ordens: – mas que esteja o congresso certo que hei de fazer com razões ou mais fortes argumentos, diligenciando o exato cumprimento quanto nas minhas forças couber” (cf. “Cartas de D. Pedro Príncipe Regente do Brasil a Seu Pai D. João VI Rei de Portugal (1821-1822)”, Rothschild & Cia, S. Paulo, 1916, pp. 37-38, grifos nossos). Pedro sabia que suas cartas ao pai eram, sempre, entregues às Cortes de Lisboa – dizem alguns que por covardia de D. João VI. Assim, ao escrever ao pai, ele sabia que estava, também, escrevendo às Cortes. Daí a fórmula, algo protocolar, “seja presente ao soberano congresso esta carta”.
BRASILEIRO
Em parte, os acontecimentos posteriores à Independência que acabaram por conduzir à sua abdicação, empanaram – como é inevitável – a grandeza de D. Pedro.
Em especial, essa grandeza se traduziu no assumimento, até o final da vida, da nacionalidade brasileira – mesmo depois da saída do Brasil; mesmo quando lutava, em Portugal, contra o absolutismo de seu irmão, D. Miguel, que usurpara o trono de sua filha Maria da Glória (Dª Maria II); mesmo quando, vitorioso, designado regente do país lusitano, em nome da filha menor de idade.
Muito perto da morte, acontecida em 1834 – quando tinha apenas 35 anos – ele “provava que sabia expor a vida pela liberdade e, se combatia à frente dos constitucionalistas portugueses, não renunciara por isso à cidadania brasileira”. Como diz o mesmo autor:
“Por difícil que parecesse à primeira vista justificar essa posição, o certo é que D. Pedro a ela se aferrou e teve-a como clara e legítima. Por amor e por escrúpulo continuou depois de 7 de abril de 1831 a considerar-se brasileiro, sem embargo de sua participação na política de Portugal.
“É um leitmotiv de todas as suas cartas desde a partida do Brasil até a morte. A 12 de abril de 1831, de bordo da Warspite, dizia a D. Pedro II, ‘meu querido filho e meu imperador’: ‘ame a sua e minha pátria’; a 6 de junho repetia: ‘lembre-se sempre de um pai que ama e amará até a morte a Pátria que adotou por sua’; de Cherburgo, a 9 do mesmo mês, falava ‘na pátria que adoro’; de Paris, a 19 de outubro, reafirmava: ‘não posso deixar (…) de por este modo como bom brasileiro felicitar-te pelo dia de hoje’; de Paris ainda, referia-se, a 5 de novembro, ao ‘Brasil, minha Pátria’, a 26, à ‘tua Pátria de nascimento e minha de adoção’ e, a 9 de janeiro de 1832, lembrando o tormento que lhe era a ausência dos filhos e da ‘Pátria à qual dera a Independência e oferecera a Constituição’, exprimia a sua ternura de brasileiro nestas palavras tocantes: ‘o Brasil é também meu filho, não és só tu’.
“Empenhado já na campanha da restauração do trono de D. Maria II, nos Açores, não variava de linguagem. O ‘Brasil tua Pátria de nascimento e minha de adoção’, ‘como brasileiro que sou’ – escrevia a 11 de março. A 16 de abril, contando que breve partiria à frente da expedição contra o usurpador, justificava assim a sua conduta: ‘Esta minha firme deliberação é filha somente do Amor que eu consagro e sempre consagrarei às instituições livres: fui pelos meus concidadãos tachado de lhe [sic] ser desafeto e ao Brasil; mas o que eu sei é que quanto à primeira que vou pela causa da Liberdade (que é uma só causa) bater-me e expor a minha vida, e quanto à segunda que eu sempre fui verdadeiramente brasileiro’
“Do Porto, entre portugueses, regente de Portugal, em hora de provocações, desabafava em carta de 9 de janeiro de 1833, cujo alcance o filho criança nada ou pouco perceberia: ‘Meu coração se sente estalar de dor por me ver tão longe de ti e de tuas manas, fora do pais em que me criei e do seio daquela nação a que pertenço (…) hoje fazem [sic] onze anos que os Brasileiros me pediram que ficasse no Brasil, e quem me diria, a mim, que neste ano me acharia tão longe?’
“Ainda do Porto, decorridos dois meses, exalava os seus queixumes de pai e de patriota: ‘Ah! meu amado filho eu te mereço o amor que tu me mostras; eu me interesso por ti, bem como pela pátria que adotei antes mesmo de a tornar independente; (…) espero que ainda poderei ter o gosto de ir ver-te e de abraçar-te: quando todos os espíritos estiverem convencidos de que eu nada mais ambiciono senão ver-te; ver o país em que fui criado e educado, do qual me separei saudoso, não só porque nele te deixei e a tuas manas, mas porque o amo tanto (tu me perdoarás) como te amo a ti’.” (Octavio Tarquinio de Sousa, “História dos Fundadores do Império do Brasil”, vol. IV, “A vida de D. Pedro I”, tomo 3, ed. cit, pp. 1126-1128).
RÉQUIEM
Evaristo da Veiga, um dos principais integrantes da oposição a D. Pedro I, durante a crise que desembocou na abdicação, escreveu, quando de sua morte:
“… Longe nisso de tantos reis que vivem e expiram sobre o trono, sem que a sua vida seja sentida, sem que a sua morte valha ou uma ocorrência notável, ou uma consideração de momento, D. Pedro de Alcântara, quer durante o curso agitado da sua existência, quer por seu falecimento, abriu o campo a sucessos importantes, e influiu mais ou menos nos destinos do império do Brasil e do reino de Portugal.
“Posto que ainda não seja chegado o tempo em que a voz imparcial da história se faça escutar a seu respeito, nos países ao leme de cujos negócios existiu; o tempo em que os diversos movimentos de afeição ou de ódio deixem de influir no juízo que se forma desse Príncipe; todavia a religião da campa que cobre seus restos, reclama hoje que não se lhe insulte a memória, e que se recordem mesmo algumas boas qualidades suas, os serviços que prestou à causa da humanidade, da civilização e da liberdade em ambos os Mundos.
“Agora que o nome de d. Pedro deixou de ser o estandarte de uma facção que ameaçava o futuro e a glória do nosso país, podemos dizer afoitamente que o ex-imperador do Brasil não foi um príncipe de ordinária medida; que existia nele o gérmen de grandes qualidades que defeitos lamentáveis e uma viciosa educação sufocaram em parte; e que a Providência o tornou um instrumento poderoso de libertação, quer no Brasil, quer em Portugal. Se existimos como corpo de Nação livre, se a nossa terra não foi retalhada em pequenas repúblicas inimigas, aonde só dominasse a anarquia e o espírito militar, devemo-lo muito à resolução que ele tomou de ficar entre nós, de soltar o primeiro grito de nossa Independência” (cf. Aurora Fluminense, ed. 05/11/1834).
O trecho é bem característico de como parte importante dos homens da Independência – no caso, um adversário político tanto de José Bonifácio quanto de José Clemente Pereira – concebiam a figura histórica de D. Pedro.
Doze anos antes, D. Pedro musicara um poema de Evaristo da Veiga, compondo o atual “Hino da Independência”. Uma das estrofes menos conhecidas dessa letra, a terceira, diz: “O Real Herdeiro Augusto/ Conhecendo o engano vil,/ Em despeito dos Tiranos/ Quis ficar no seu Brasil./ Em despeito dos Tiranos/ Em despeito dos Tiranos/ Quis ficar no seu Brasil”.
Mas isso foi em 1822. Depois da dissolução da Constituinte, no ano seguinte, Evaristo se tornara mais e mais oposicionista. Por isso, sua afirmação de que “o ex-imperador do Brasil não foi um príncipe de ordinária medida” tem bastante importância.
AO PAI
Além de seus atos – inclusive aqueles que foram, na sua época e depois, discutíveis – o melhor documento que demonstra essa extraordinária medida são suas cartas ao pai, D. João VI, no período da Revolução da Independência.
A 2 de janeiro, sete dias antes do “Fico”, D. Pedro comunica a seu pai – e remete a ele – a representação dos paulistas, escrita por José Bonifácio, entregue ao príncipe, na noite do dia anterior, por um emissário especial.
Na noite do Dia do Fico, 9 de janeiro de 1822, D. Pedro escreveu outra vez ao pai:
“… no dia de hoje às dez horas da manhã recebi uma participação do senado da câmara pelo seu procurador, que as câmaras nova, e velha, se achavam reunidas, e me pediam uma audiência: respondi que ao meio dia podia vir o senado, que eu o receberia; veio o senado, que me fez uma fala mui respeitosa, de que remeto cópia (junta com o auto da câmara) a Vossa Majestade, e em suma era, que logo que desamparasse o Brasil, ele se tornaria independente; e ficando eu, ele persistiria unido a Portugal. Eu respondi o seguinte: Como é para bem de todos, e felicidade geral da Nação, estou pronto: diga ao povo, que fico.
“O presidente do senado o fez, e o povo correspondeu com imensos vivas, cordialmente dados, a Vossa Majestade, a mim, à união do Brasil a Portugal, e à Constituição: depois de tudo sossegado, da mesma janela, em que estive para receber os vivas, disse ao povo: Agora só tenho a recomendar-vos união, e tranquilidade; e assim findou este ato” (cf. op. cit., pp. 47-48).
ENTEADOS
A 26 de abril, chegando de Minas Gerais, escreve D. Pedro a seu pai:
“Por cá vai tudo mui bem, se lá [em Lisboa] formos considerados como irmãos, tanto melhor para um como para outro hemisfério; mas se o não formos, ir-nos-á melhor a nós, Brasileiros, que aos Europeus malvados, que dizem uma cousa, e tem outra na coração” (p. 95).
Apenas dois dias depois, na carta de 28 de abril, o tom é mais rascante:
“Peço a V. M. que mande apresentar esta às Cortes Gerais, para que elas saibam, que a opinião brasileira, e a de todo o homem sensato, que deseja a segurança, e integridade da Monarquia, é que haja aqui Cortes Gerais do Brasil, e particulares relativamente ao Reino Unido, para fazerem as nossas leis municipais.
“V. M., quando se ausentou deste rico, e fértil país, recomendou-me no seu real decreto de 22 de Abril do ano próximo passado, que tratasse os Brasileiros como filhos, eu não só os trato como tais, mas também como amigos; tratando-os como filhos, sou Pai; e tratando-os como amigos, sou outro; assim quaisquer destas duas razões me obrigam a fazer-lhes as vontades razoáveis, esta (de quererem Cortes como acima fica dito) não só é razoável, mas útil a ambos os hemisférios, e assim ou as Gerais nos concedem de bom grado as nossas particulares, ou então eu as convoco, a fim de me portar, não só como V. M. me recomendou, mas também como tenho buscado, e alcançado ser, que é defensor dos direitos natos de povos tão livres, como os outros, que os querem escravizar.
“Se há igualdade de direitos, e somos irmãos, como o proclamaram, concedam (que não fazem favor, antes nós de lho pedirmos); quando não, nós a buscaremos (não nos sendo difícil encontrá-la) porque não é justo que uns sejam reputados como filhos, e outros como enteados, sendo todos nós irmãos, e súditos do mesmo grande Monarca que nos rege” (pp. 97-98).
DEFENSOR
Nesta carta de D. Pedro, ele já se considera, em abril de 1822, mais brasileiro que português. Mas é na carta de 21 de maio de 1822, ao saudar o pai pelo aniversário (D. João VI completara 55 anos a 13 de maio), que D. Pedro explicita completamente a sua posição antes da Independência:
“O 13 de Maio foi, é e será para sempre um dia de júbilo no Brasil inteiro. É este o dia que os leais habitantes desta cidade escolheram para assinalar ao mesmo tempo duas épocas memoráveis: o nascimento de V. M., e a minha elevação ao titulo de Defensor Perpétuo do Brasil. Depois do beija-mão, a municipalidade mandou pedir-me uma audiência, que eu lhe concedi imediatamente, e esta corporação, pelo órgão de seu presidente, dirigiu-me um discurso muito enérgico, no qual me suplicou aceitasse o título de Protetor e Defensor Perpétuo do Brasil, pois que tal era a vontade de toda a província e do Brasil inteiro. Respondi-lhe: honro-me e me orgulho do título que me confere este povo leal e generoso; mas não o posso aceitar tal como se me oferece. O Brasil não precisa da proteção de ninguém; protege-se a si mesmo. Aceito porém o titulo de Defensor Perpétuo e juro mostrar-me digno dele enquanto uma gota de sangue correr nas minhas veias” (grifos nossos).
Mais adiante, D. Pedro desenvolve mais esta ideia:
“Defenderei o Brasil que tanto me honrou, como a V. M., porque tal é o meu dever como brasileiro e como príncipe. Um príncipe deve sempre ser o primeiro a morrer pela pátria; deve trabalhar mais que ninguém pela felicidade dela; porque os príncipes são os que mais gozam da felicidade da nação e é por isso que eles devem esforçar-se por bem merecer as riquezas que consomem, e as homenagens que recebem dos outros cidadãos” (grifo nosso).
Esta é uma definição que ele considera – com razão – no campo dos princípios. Na mesma carta, ele entra, também, nas questões políticas – basicamente, a necessidade de uma Constituinte específica do Brasil:
“É necessário que o Brasil tenha Cortes suas: esta opinião generaliza-se cada dia mais. O povo desta capital prepara uma representação que me será entregue para suplicar-me que as convoque, e eu não posso a isso recusar-me, porque o povo tem razão, é muito constitucional, honra-me sobremaneira, e também a V. M., e merece toda a sorte de atenções e felicidade. Sem Cortes o Brasil não pode ser feliz. As leis feitas tão longe de nós por homens que não são brasileiros, e que não conhecem as necessidades do Brasil não poderão ser boas.
“O Brasil é um adolescente que diariamente adquire forças. O que hoje é bom amanhã não serve ou se torna inútil, e uma nova necessidade se faz sentir; isto prova que o Brasil deve ter em si tudo quanto lhe é necessário, e que é absurdo retê-lo debaixo da dependência do velho hemisfério.
“O Brasil deve ter Cortes (…): não posso recusar este pedido do Brasil porque é justo, funda-se no direito das gentes, é conforme aos sentimentos constitucionais, oferece enfim mais um meio para manter a união, que de outro modo breve cessará inteiramente. Sem igualdade de direito, em tudo e por tudo não há união. Ninguém se associa para ver piorar a sua condição, e aquele que é o mais forte melhor deve saber sustentar os seus direitos. Eis porque o Brasil jamais perderá os seus, que defenderei com o meu sangue, sangue puro brasileiro, que não corre senão pela honra, pela nação e por V. M” (pp. 99-101).