D. Pedro I: “Triunfa e triunfará a independência brasílica, ou a morte nos há de custar”
CARLOS LOPES
A personalidade de D. Pedro transparece inteira na última carta dirigida a D. João VI na época da Independência, escrita a 22 de setembro de 1822 – portanto, após o Grito do Ipiranga.
Esta carta é resposta a outra – datada de três de agosto – em que o pai diz ao filho: “Quando escreveres, lembra-te que és um príncipe e que os teus escritos são vistos por todo o mundo, e deves ter cautela não só no que dizes, mas também no modo de te explicares”.
A resposta de D. Pedro, lembremos outra vez, foi escrita 15 dias após o Grito do Ipiranga:
“Tive a honra de receber de Vossa Majestade uma carta datada de 3 de Agosto, na qual Vossa Majestade me repreende pelo meu modo de escrever e falar da facção luso-espanhola (se Vossa Majestade me permite, eu e meus irmãos brasileiros lamentamos muito e muito o estado de coação em que Vossa Majestade jaz sepultado); eu não tenho outro modo de escrever, e como o verso era para ser medido pelos infames deputados europeus e brasileiros do partido dessas despóticas cortes executivas, legislativas e judiciárias, cumpria ser assim; e como eu agora, mais bem informado, sei que Vossa Majestade está positivamente preso, escrevo (esta última carta sobre questões já decididas pelos brasileiros) do mesmo modo porque, com perfeito conhecimento de causa estou capacitado que o estado de coação, a que Vossa Majestade se acha reduzido, e que o faz obrar bem contrariamente ao seu liberal gênio. Deus nos livrasse se outra cousa pensássemos.
“Embora se decrete a minha deserdação, embora se cometam todos os atentados que em clubes carbonários forem forjados, a causa santa não retrogradará, e eu antes de morrer direi aos meus caros brasileiros: ‘Vêde o fim de quem se expôs pela pátria, imitai-me’.
“Vossa Majestade manda-me, que digo!, mandam as cortes por Vossa Majestade que eu faça executar e execute seus decretos; para eu os fazer executar e executá-los era necessário que nós brasileiros livres obedecêssemos à facção: respondemos em duas palavras: “Não queremos”.
“Se o povo de Portugal teve direito de se constituir – revolucionariamente – está claro que o povo do Brasil o tem dobrado, porque se vai constituindo, respeitando-me a mim e às autoridades estabelecidas.
“Firme nestes inabaláveis princípios, digo (tomando a Deus por testemunha e ao mundo inteiro), a essa cáfila sanguinária, que eu, como Príncipe Regente do reino do Brasil e seu defensor perpétuo, hei por bem declarar todos os decretos pretéritos dessas facciosas, horrorosas, maquiavélicas, desorganizadoras, hediondas e pestíferas cortes, que ainda não mandei executar, e todos os mais que fizerem para o Brasil, nulos, irritos, inexequíveis, e como tais com um veto absoluto, que é sustentado pelos brasileiros todos, que, unidos a mim, me ajudam a dizer: “De Portugal nada, nada; não queremos nada”.
“Se esta declaração tão franca irritar mais os ânimos desses lusos-espanhóis, que mandem tropa aguerrida e ensaiada na guerra civil, que lhe faremos ver qual é o valor brasileiro. Se por descoco se atreverem a contrariar nossa santa causa, em breve verão o mar coalhado de corsários, e a miséria, a fome e tudo quanto lhes podermos dar em troco de tantos benefícios, será praticado contra esses corifeus; mas que! quando os desgraçados portugueses os conhecerem bem, eles lhes darão o justo prêmio.
“Jazemos por muito tempo nas trevas; hoje vemos a luz. Se Vossa Majestade cá estivesse seria respeitado, e então veria que o povo brasileiro, sabendo prezar sua liberdade e independência, se empenha em respeitar a autoridade real, pois não é um bando de vis carbonários, e assassinos, como os que têm a Vossa Majestade no mais ignominioso cativeiro.
“Triunfa e triunfará a independência brasílica, ou a morte nos há de custar.
“O Brasil será escravizado, mas os brasileiros não; porque enquanto houver sangue em nossas veias há de correr, e primeiramente hão de conhecer melhor o — Rapazinho — e até que ponto chega a sua capacidade, apesar de não ter viajado pelas cortes estrangeiras.
“Peço a Vossa Majestade que mande apresentar esta às cortes! às cortes, que nunca foram gerais, e que são hoje em dia só de Lisboa, para que tenham com que se divirtam, e gastem ainda um par de moedas a esse tísico tesouro.
“Deus guarde a preciosa vida e saúde de Vossa Majestade, como todos nós brasileiros desejamos.
“Sou de Vossa Majestade, com todo o respeito, filho que muito o ama e súdito que muito o venera.
PEDRO.”
“Rapazinho” era como D. Pedro era chamado pelos liberais de Lisboa – que haviam decretado, em 29 de setembro de 1821, que ele deveria sair do Brasil para uma viagem, incógnito, pela Europa, para completar sua educação…
O MINISTRO
Resta-nos, para encerrar esta série de artigos, uma figura: Martim Francisco, o irmão mais novo de José Bonifácio e Antonio Carlos, que, entre outras coisas, foi por duas vezes ministro da Fazenda (julho de 1822 a julho de 1823 e julho de 1840 a março de 1841).
No centenário de sua morte, em 1944, o então ministro da Fazenda, Artur de Souza Costa, ressaltou “sua paixão pela liberdade e devotamento pela causa da autonomia nacional”, “sua fidelidade aos princípios em que se baseou a sua formação cultural e o seu profundo sentimento de brasilidade [que] representa uma constante que se encontra em cada um de seus gestos ou de seus atos. É um pensamento que orienta toda a sua atividade pública e sobre ele exerce uma influência dominadora” (Souza Costa, “O centenário de Martim Francisco”, RIHGB, vol. 183, abril/junho 1944, pp. 256-257).
Martim Francisco – que, diferente dos irmãos, era matemático – mostrou, ainda antes da Independência, e logo depois, que a nacionalidade era, também, um princípio econômico.
Um seu descendente – Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, que seria governador (presidente) de Minas Gerais, articulador da candidatura Getúlio em 1930 e presidente da Constituinte de 1933-1934 – publicou, em 1913, um interessante trabalho para abordar essa questão.
Seu ponto de partida é a situação desesperadora das finanças do Brasil, depois da volta de D. João VI a Portugal. Nas palavras de Armitage:
“Como um final à sua administração das finanças do Brasil, o sr. d. João VI, ao retirar-se em 1821, para assumir o Governo de Portugal, deixou aos seus leais e amados súditos do Brasil uma prova de sua real e paternal solicitude pelo seu bem estar, esvaziando o Tesouro, o Banco [do Brasil] e até o Museu, levando consigo todo o artigo de valor, inclusive os espécimens de ouro e diamantes, que há anos pertenciam a este último estabelecimento nacional” (cit. in Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, “O Ministro da Fazenda da Independência”, RIHGB, LXXVI, parte 1, p. 369; este trabalho foi, em 1918, publicado em livro, com o título “O Ministro da Fazenda da Independência e da Maioridade”).
Além disso, a principal fonte do Tesouro – o imposto sobre as importações – sofrera uma quebra em suas receitas, depois do tratado de 1810, assinado por D. João VI com a Inglaterra, que rebaixou as tarifas sobre a importação dos produtos ingleses (v. a segunda parte desta série).
A solução a que recorriam quase todos os governos nessa situação, era um empréstimo em algum banco europeu, como aquele dos Rothschild, em Londres.
Martim Francisco, no entanto, quando assumiu o Ministério da Fazenda (4 de julho de 1822), não era ministro de um país formalmente independente, mas de um Reino unido ao de Portugal. Portanto, a via dos empréstimos externos dificilmente lhe estaria aberta.
Mas, apesar da dificuldade, essa não foi a principal razão pela qual Martim Francisco não tentou ir por esse caminho. Na sua avaliação, havia recursos internos aos quais era possível, e necessário, recorrer – e eles eram preferíveis aos empréstimos externos.
Daí, a sua proposta de obter um empréstimo público dos “comerciantes e capitalistas da Corte”. Esse empréstimo seria de 400:000$000 (quatrocentos contos de réis), com juros de 6% ao ano e prazo de 10 anos, tendo por garantia as rendas da Província do Rio de Janeiro.
A operação foi um sucesso – a venda de títulos superou a quantia prevista pelo governo. Porém, talvez mais importante que a operação em si – que aparelhou a Marinha – foi a convocação para ela, assinada pelo ministro da Fazenda:
“Senhores —
“Quando um povo está resolvido a reassumir direitos que lhe usurparam, a conservar e defender preeminências, dignidades e gozos que lhe contestam, e a quebrar ferros, bem que dourados, com que de novo o pretendem agrilhoar, deve, com todo o apuro e sem perda de tempo, começar a nova era da sua vida política por uma legislação própria, que, transformando o berço do seu nascimento ou de sua adoção, de terra da escravidão em terra da liberdade; que, estabelecendo e firmando a sua sorte futura, lhe assine lugar escolhido nos anais das nações bem constituídas; e para obtê-la é mister que, abundante de recursos e alhanadas todas as dificuldades, que hajam de estorvá-lo ou empecê-lo no caminho da glória que vai trilhar, ele possa dizer aos inimigos internos: ou retirai-vos ou eu vos punirei; aos inimigos externos: não vos temo, tenho força suficiente para repelir vossas agressões, justiça demasiada para ganhar amigos que protejam minha causa, e quando esta se decida contra mim, quero antes sepultar-me debaixo das ruínas de minha pátria, do que viver escravo.
“Tal é, senhores, em resumo, a situação do Brasil: sem dúvida, para continuação e remate de seus trabalhos, ele carece de alguns meios; porém estes serão abundantemente supridos pelos enérgicos e heroicos sacrifícios de seus habitantes; porque todo homem livre sabe que a última gota de seu sangue, o último sopro de sua vitalidade, ainda pertence à Pátria.
“Seguro desta verdade, o jovem herói de nossa escolha, o perpétuo defensor da nossa liberdade, o grande e incomparável príncipe que nos rege, vendo o Brasil em algum perigo, e a assembleia constituinte e legislativa ainda não instalada, persuadiu-se de que, pelo menos agora, só a ele devia competir o direito e a glória de salvá-lo, e para este fim julgou indispensável abrir um empréstimo de quatrocentos contos de réis, debaixo das condições que tenho a honra de apresentar-vos.
“Convencidos da necessidade, justiça e legalidade, que abonam este procedimento, e combinando vossas possibilidades com o vosso patriotismo, declarai, senhores, livremente, o que podeis emprestar” (cit. in Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, op. cit., pp. 371-372).
RESISTÊNCIA
Em seu trabalho sobre Martim Francisco, diz Antonio Carlos:
“Merece menção especial a resistência que o Ministro opôs sempre às tentativas de empréstimos externos ou de quaisquer outros, havendo permanecido exclusivamente no de julho de 1822, destinado a um fim todo excepcional. Essa resistência, e as razões dela, são afirmadas no documento em que Martim faz a critica do empréstimo externo negociado e realizado em Londres em 1824 e em 1825” (op. cit., p. 386).
Esse documento é uma carta a Vasconcellos de Drummond, datada de 12 de setembro de 1824, quando Martim Francisco estava exilado em Bordeaux.
O empréstimo de 1824, negociado por Felisberto Caldeira Brant (depois marquês de Barbacena), atravessaria o Império. Nas palavras de nosso maior historiador financeiro:
“A 20 de agosto de 1824, ao promanar de sua independência política, o Brasil obteve na praça de Londres o seu primeiro empréstimo externo. Foi de £ 3.686.200 o valor dessa operação, a qual só logrou ser resgatada em 1863, mediante o levantamento de outro empréstimo de £ 3.855.300, liquidado, por sua vez, em 1889” (Valentim Bouças, “Finanças do Brasil”, vol. IX, 1940, grifo nosso).
E, em seguida:
“Dessarte, iniciou-se em 1824 a política de empréstimos externos, que levou, consecutivamente, o País a lançar mão de semelhante remédio para salvar os males dela própria resultantes. Os empréstimos, quer no Império, quer na República, eram, em geral, aplicados no suprimento dos ‘déficits’ orçamentários e no pagamento de juros e amortização de operações anteriores. Basta acentuar-se que dos quinze empréstimos resgatados no período monárquico apenas quatro o foram com recursos normais. Em virtude desse círculo vicioso e pernicioso, o Brasil sempre viveu com a sua economia e as suas finanças deprimidas diante de obrigações irrevogáveis para com o estrangeiro” (idem).
Em outro volume de sua principal obra, Bouças – uma das mais importantes figuras da administração econômica no primeiro governo Getúlio – foi enfático:
“Realizávamos nossa independência política e logo inaugurávamos nossa dependência às finanças estrangeiras. Subordinávamos nossa vida orçamentária e econômica a essas finanças” (cf. “História da Dívida Externa da União (Finanças do Brasil volume XV)”, 1946, p. 27).
COMISSÕES
Em sua carta a Vasconcellos Drumond, Martim Francisco rememora a sua primeira administração no Ministério da Fazenda:
“Estou e sempre estive convencido que a teoria de empréstimos era um abismo, em que mais cedo ou mais tarde deviam ser precipitadas todas as Nações; que os Governos nunca os adotaram senão para oprimirem mais facilmente os povos; que um empréstimo contraído por qualquer Estado é um sintoma da prodigalidade do seu Governo, ou a morte deste espírito de ordem e de economia, primeiras bases de toda a boa administração financeira; que os empréstimos concorrem a excitar a sórdida cobiça dos cidadãos e a amortecer em seus corações o sentimento desinteressado do amor da pátria; que as chamadas despesas extraordinárias são pérolas douradas, engolidas por povos boçais, porque de comum nenhuma há, que não tenha sido prevista com antecipação pelos olhos perspicazes da política e que se não possa remediar sem o cancro dos empréstimos; que, finalmente, os povos, quando querem ser livres, têm muitos recursos em si próprios (…).
“… Note que já então o Felisberto [Caldeira Brant], sem ter ordem, escrevia ao Ministério, fazendo ver a necessidade de um empréstimo, entendia-se com os capitalistas de Londres e os forçava a escrever com o oferecimento das mesmas condições que ele agora aceitou; ele, pois, levava rasca no negócio.
“Note mais, que nesse tempo eu o recusei com o prêmio de 5% e os juros de 5%, peso metálico por peso metálico; que não havia moeda, e baixa, fabricada em Londres; que não havia dividendos retidos, nem as usuras das 300.000 libras esterlinas adiantadas, e nem as comissões, etc. dos Felisbertos e outros.
“A nada disto atendi; recusei o empréstimo com tão favoráveis condições e disse a José [Bonifácio], que Felisberto, pelos fatos acima referidos e por outros de conhecida ignorância, ou de notória lesão dos interesses do Brasil, devia ser mandado recolher.
“Todavia este empréstimo aparece hoje contraído, e o mesmo homem, que antes traficava sordidamente com os interesses de sua pátria, é dele o principal encarregado!
“Pode haver uma maior traição da parte do Ministério? E que castigos ele e seus agentes não devem esperar da vingança nacional, se um dia os brasileiros forem capazes de recobrar sua liberdade?”
Assim era o nosso primeiro ministro da Fazenda – o mais jovem dos três irmãos Andrada.
FINAL
Terminamos aqui nossa série sobre a Independência. Nosso objetivo foi expor materiais que hoje estão – com anos de ignorância política, econômica, histórica e escolar neoliberal – algo esquecidos. Ao mesmo tempo, analisamos algumas questões – a escravidão e o liberalismo na Independência, os conflitos entre os homens que lideraram a nossa emancipação política, a herança de Pombal, etc. – que nos parecem pessimamente abordadas por uma certa vertente da literatura acadêmica atual.
Se houve algum proveito para o leitor, consideramo-nos recompensados.