CARLOS LOPES
A Independência foi marcada pela participação de homens que, em 1817, estavam nas fileiras da revolução republicana, e, mesmo aqueles que não estiveram lá, foram profundamente marcados pela Revolução Pernambucana – e pela repressão sanguinária da Coroa portuguesa
Estamos nos detendo, com alguma ênfase, na Revolução Pernambucana de 1817, porque foi um acontecimento decisivo para a nossa Independência – não somente pelo seu significado sócio-econômico e pela sua importância nacional já na época da eclosão do movimento (é significativo que, além dos pernambucanos e da expansão revolucionária na Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, foi notável a participação de homens que nasceram em outras partes do Brasil, como Domingos Martins, que era capixaba, ou Antonio Carlos, que era paulista; em 1845, por sinal, em sua última atividade política, Antonio Carlos foi eleito senador por Pernambuco).
Ocorre, além disso, que a Independência foi marcada pela participação de homens que, em 1817, estavam nas fileiras da revolução republicana, e, mesmo aqueles que não estiveram lá, foram profundamente marcados por essa revolução – e pela repressão sanguinária da Coroa portuguesa (o melhor livro sobre os líderes da revolução e sobre as vítimas da repressão continua sendo “Os Mártires Pernambucanos Vítimas da Liberdade nas Duas Revoluções Ensaiadas em 1710 e 1817”, escrito em 1823 pelo padre Joaquim Dias Martins – portanto, logo após a Independência – e publicado postumamente em 1853).
Existe, também, uma dimensão internacional, estudada pelo embaixador Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão em “A Revolução de 1817 e a História do Brasil – um estudo de história diplomática”. Sobre esse aspecto, no qual não nos estenderemos, apenas uma observação: em seu livro, o padre Dias Martins afirma que, em Londres, Domingos Martins conheceu e tornou-se amigo do grande revolucionário venezuelano Francisco de Miranda, que participara da Guerra da Independência dos EUA, fora um dos comandantes do exército francês durante a Grande Revolução, e seria o principal dirigente, contra os colonizadores espanhóis, da revolução venezuelana de 1810-1812. Tanto Miranda quanto Martins eram maçons (cf. Dias Martins, “Os Mártires Pernambucanos”, Typ. de F. C. de Lemos e Silva, 1853, p. 258).
Atalhemos, então, nossa abordagem da Revolução de 1817. Há outra testemunha (“ocular”, como se dizia antigamente) da Revolução Pernambucana de 1817, que deixou o seu depoimento, e não pode deixar de ser mencionada: o general – do exército de Bolívar, mas cuja patente foi reconhecida pelo Império – Abreu e Lima.
ORATÓRIO
O então capitão de artilharia José Inácio de Abreu e Lima, em 1817, servia ao exército português na Bahia quando seu pai – o Padre Roma – foi preso ao chegar àquela província. Quase trinta anos depois, no primeiro tomo de sua obra sobre a História do Brasil, o general Abreu e Lima, que acompanhou o pai até o seu martírio, relataria os acontecimentos:
“A revolução estende-se à Paraíba e ao Rio Grande do Norte, onde se estabeleceram governos provisórios à imitação do de Pernambuco; porém o Ceará tardava em responder ao brado, que já tinha ecoado naquelas duas províncias; e para acelerar o golpe foi enviado um agente secreto, o padre José Martiniano de Alencar, hoje Senador do Império, que por ser filho da mesma província tinha nela importantes relações de família. Com efeito partiu Alencar, e chegando à Vila do Crato, lugar do seu nascimento, deu o primeiro grito, que logo foi sufocado, sendo preso imediatamente com todas as pessoas que lhe eram mais caras. Algumas outras prisões houveram (sic), e com estas medidas cessou o pronunciamento do Ceará” (J.I. de Abreu e Lima, “Compendio de História do Brasil”, Tomo 1, Laemmert, Rio, 1843, pp. 282-283).
O padre José Martiniano de Alencar, irmão do também revolucionário de 1817 Tristão Alencar Araripe – assassinado em 1824, pela repressão à Confederação do Equador -, era o pai do romancista José de Alencar, um dos fundadores de nossa literatura (no século XIX, sob o Império, não eram raros os casos de padres que, apesar do celibato oficialmente adotado pela Igreja Católica, constituíam família – e eram aceitos socialmente, como foi o caso do padre Alencar, que tornou-se senador vitalício por escolha do segundo imperador, ou do padre João Carlos Monteiro, vigário da paróquia de Campos, orador sacro da Capela Imperial, deputado, e que, vivendo com uma escrava – depois alforriada – foi pai do abolicionista José do Patrocínio).
Continua Abreu e Lima:
“No entanto, pela parte do Sul a revolução não tinha dado um passo, e era de onde justamente tudo havia que recear. Um homem houve que, conhecendo a importância de dar mais impulso àquele movimento, se ofereceu para ir às Alagoas [na época, Alagoas era parte de Pernambuco], e dali à Bahia, correndo ele só todo o risco da sua temerária empresa.
“Este cidadão era o Doutor José Ignácio Ribeiro de Abreu e Lima, um dos mais hábeis advogados de Pernambuco, vulgarmente conhecido, depois da sua infausta morte, pela denominação de Padre Roma. Suas relações na parte meridional da província lhe inspiravam grande confiança, e na verdade a sua marcha até às Alagoas foi um constante triunfo; por toda a parte consegue fazer com que os povos e as autoridades se decidam pela revolução; e quando julga oportuno, volta a Maceió, freta uma balsa, e se dirige para a Bahia.
“Abreu e Lima, sem embargo de seus variados conhecimentos, era homem, como todos os seus correligionários, inexperiente dos manejos ocultos das revoltas; sem nenhum disfarce apresentou-se sempre, desde que saiu do Recife, como se fosse o emissário de um governo autorizado. Ainda antes da sua marcha, sabia-se geralmente qual era a sua missão e dela tinha sido informado o Conde dos Arcos na Bahia com muita antecipação; assim foi que ao saltar em terra no lugar da barra, foi logo preso e conduzido à cadeia da cidade.
“Por uma espécie de pressentimento teve ele o bom acordo de lançar à água todos os papéis, que levava consigo, não só proclamações como várias cartas para indivíduos relacionados com os liberais de Pernambuco; mas isto só serviu para alentar na covardia aqueles mesmos, que o deixaram sacrificar sem nenhuma mostra de gratidão. O Conde dos Arcos tinha já em seu poder o corpo de delito, que era a ata da eleição do governo provisório de Pernambuco, na qual seu nome aparecia em segundo lugar. Verificada a identidade da pessoa, foi julgado por uma comissão militar, condenado à morte, e fuzilado no dia 29 de Março no Campo da Pólvora” (op. cit. pp. 283-284).
Neste momento de seu texto histórico, o general Abreu e Lima introduz uma nota pessoal candente, por aquilo que preserva e condensa de nossa História:
“Meu pai foi preso ao anoitecer de 26 de março; no dia seguinte fizeram-se todas as perguntas do costume, confrontação de testemunhas, e nomeou-se a Comissão Militar, que o devia julgar; no dia 28 foi condenado à morte, e passou para o Oratório às três horas da tarde; foi fuzilado às oito da manhã do dia 29.
“No momento em que escrevo estas linhas, assalta-me todo o horror daquela tremenda noite, em que fui quase companheiro da vítima: era eu que parecia o condenado, e não ela. Tenho visto morrer milhares de homens nos campos de batalha, e muito nos suplícios, mas nunca presenciei tanta coragem, tanta abnegação da vida, tanta confiança nos futuros destinos da sua pátria, tanta resignação enfim; era meu pai quem me animava, porque eu parecia inconsolável: uma mão de ferro me arrancava o coração; meu pranto e minha dor comoviam a todos os que se achavam presentes; era mister separar-me então para dar alívio às minhas lágrimas, e me conduziam à outra prisão, donde voltava depois a poder de minhas súplicas, até que foi forçoso arrancarem-me de seus braços para sempre.
“Uma circunstância mais que todas vinha de quando em quando agravar essa espécie de martírio, com que os algozes de meu pai queriam amargurar ainda mais seus últimos instantes: meu irmão Luiz, moço de compleição mui débil e delicada, fora preso em sua companhia, e achava-se metido em um dos imundos calabouços do Oratório chamados segredo. Nu em carne, e estendido sobre a lama, mais parecia um espectro do que ser vivente; coberto de lodo, faziam-no sair algumas vezes para que meu pai o visse: nesse momento terrível para seu coração de pai, parecia comovido, beijava a meu irmão, e como para distrair-se, dirigia a palavra a algum dos sacerdotes, que o acompanhavam. Contudo essa prova tremenda de brutal ferocidade não fez desmentir um só instante sua resignação como filósofo nem como cristão.
“Chegando ao lugar do suplício, fez um pequeno discurso alusivo à sua situação, e desculpando os soldados do ofício de algozes; depois pediu-lhes que atirassem com sangue frio para não martirizá-lo, e levando ambas as mãos algemadas ao peito, fez delas o alvo de seus tiros.
“Durante o Conselho protestou contra a sua competência, defendeu-se sem inculpar ninguém, e negou-se a todas as sugestões, que lhe fizeram, para descobrir o objeto da sua missão; no Oratório ninguém lhe ouviu uma queixa contra pessoa alguma, e no lugar do suplício excedeu em longanimidade a todos quantos o precederam na mesma desgraçada sorte. ‘Os baianos viram como morreu o homem livre; a lição devia ficar-lhes impressa’.” (J.I. de Abreu e Lima, “Compendio de História do Brasil”, Tomo 1, Laemmert, Rio, 1843, pp. 284-285).
EMANCIPADA
Durante a Revolução da Independência, os homens que participaram ou foram tocados – de um modo ou de outro – pela Revolução de 1817, e o banho de sangue que a afogou, parecem fazer o balanço dos erros e acertos, para que os primeiros não se repetissem em 1822.
Nenhum deles formulou a questão dessa maneira – que parece mais própria, sob essa forma, às revoluções do século XX. Mas isso foi verdade, independente da formulação, não apenas para Antônio Carlos de Andrada, Muniz Tavares, e, inclusive, Cipriano Barata – mas também para os que, como o irmão mais velho de Antônio Carlos, José Bonifácio, viram de longe a Revolução de 1817 (no caso de Bonifácio, de Portugal, onde residia desde 1783), e até não concordando com ela, como, explicitamente, Hipólito José da Costa em seu Correio Braziliense.
Numa carta a Pedro de Araújo Lima – o futuro marquês de Olinda – em que demonstra sua irritação com José Bonifácio, Gonçalves Ledo escreveu:
“Fui ao Paço no dia 4 deste [quatro de outubro de 1822] chamado por um recado escrito pelo Imperador, que me ofereceu o título de ‘Marquês da Praia Grande’. O Conselheiro José Bonifácio, sabendo que ainda no ano passado era eu republicano e que agora trabalho por uma monarquia constitucional, sem nobreza outra senão a dos sentimentos, certo teve parte neste convite, que reputo ofensivo à minha dignidade. Imediatamente agradeci a S.M. permitisse recusar o título nobiliárquico, dizendo-lhe que não o merecia, e não desejava. Interveio o Conselheiro com estas palavras: ‘Ora, Sr. Ledo, é um prêmio aos seus serviços no jornal e na Maçonaria, em favor da Independência’. Afirmei que não podia aceitar e que o melhor título para mim seria o de brasileiro patriota e homem de bem, contentando-me com a nobreza do coração…”
Examinaremos, mais à frente, o conflito entre o grupo de Ledo e os Andradas. Aqui, o que queremos frisar é: o que fez um homem como Ledo, republicano ainda em 1821, e maçom, “trabalhar por uma monarquia constitucional” em 1822?
Obviamente, a situação política – mas a esta não estranha a herança de 1817.
Quanto ao Andrada mais velho, José Bonifácio, seu discurso de despedida na Academia de Ciências, em Lisboa, a 24 de junho de 1819, parece conter um reflexo daqueles acontecimentos – pelos quais um de seus irmãos estava (e continuaria, até 1821) preso na Bahia.
Depois de falar da união cultural entre o Brasil e Portugal, disse José Bonifácio aos seus colegas acadêmicos lusitanos: “consola-me igualmente a lembrança de que de vossa parte pagareis a obrigação em que está todo o Portugal para com a filha emancipada, que precisa de pôr casa”.
A “filha emancipada” era, evidentemente, o Brasil. Mas o Brasil não estava “emancipado” – embora fosse elevado a Reino, unido aos de Portugal e Algarves, em dezembro de 1815, depois que, no Congresso de Viena, a questão fora discutida pela Inglaterra, França e demais potências europeias. A iniciativa partiu do representante francês, Talleyrand.
[NOTA: Em seu livro sobre D. João VI, Oliveira Lima atribui essa versão a Mello Moraes – o que geralmente torna duvidosa qualquer versão – e ainda acrescenta: “sem documentos aliás que comprovem sua asserção”. No entanto, o próprio Oliveira Lima, logo em seguida, escreve que “o fato encontra-se realmente assim na correspondência reservada dos plenipotenciários portugueses ao Congresso de Viena” – e acaba por confirmar o que antes colocara em dúvida (cf. Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, primeiro volume, Typ. do Jornal do Commercio, Rio, 1908, pp. 519 e segs.). O fato é que a expressão “Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves” apareceu pela primeira vez no “tratado de 8 de abril de 1815, assinado em Viena entre aqueles representantes de Portugal e os da Inglaterra, pelo qual o primeiro desses países se obrigava a aceder a todas as estipulações aceitas pelas grandes potências no tratado de 25 de março do mesmo ano” (cf. Tobias Monteiro, op. cit., p. 349). D. João VI, que estava no Rio de Janeiro, não foi consultado. Mas legalizou a situação oito meses depois, de acordo com o acertado em Viena.]
Voltemos a José Bonifácio: além do que já foi dito, tratar o seu país de origem no feminino – logo ele, um admirador dedicado das mulheres – não parece um acaso, ainda que possa ser inconsciente: a expressão que nos ocorre, ao ler essas palavras, naturalmente, é “nação brasileira”.
Certamente, tal evocação pode ser apenas uma espécie de miragem, causada pelo fato de que nos localizamos, no tempo, quase 200 anos após o discurso de José Bonifácio, quando a “nação brasileira” tem uma história que não tinha naquela época.
Pode ser. Mas o seguinte trecho, do mesmo discurso de despedida, em 1819, não parece casual:
“E que país esse, senhores, para uma nova civilização e novo assento da ciência! Que terra para um grande e vasto Império!” (v. “O Patriarca da Independência – José Bonifácio de Andrade e Silva”, CEN, 1939, p. 14).