CARLOS LOPES
O quadro de decadência da monarquia portuguesa tinha uma relação direta com a dependência de Portugal da economia inglesa – com a consequente submissão política que mantinha essa dependência econômica.
A questão de que o Brasil poderia constituir, ou constituiria, um “novo império”, tão presente nas ideias de José Bonifácio ainda antes de voltar ao país natal – e também nas ideias de Hipólito José da Costa – torna necessário uma nota de caráter historiográfico sobre a época de D. João VI, ainda que correndo o risco de colocar o carro na frente dos bois – já que não encerramos a questão da dependência lusitana, a base econômica inicial de todo esse período da História.
Hoje, é predominante a revisão, efetuada por Oliveira Lima, essencialmente simpática a D. João VI e ao período em que o Brasil o abrigou.
Esquece-se, com frequência, a outra posição historiográfica, anterior ao livro de Oliveira Lima, publicado em 1908 (“D. João VI no Brasil”). Esta outra posição é mais ligada ao movimento republicano recém vitorioso no Brasil, e teve em João Ribeiro, com sua “História do Brasil” para o curso superior, de 1900, o seu expoente mais desenvolvido.
João Ribeiro, às vezes, é lembrado como gramático ou filólogo. Ou, mais raramente, como um crítico literário que conseguiu enxergar no romance nordestino algo que ele ainda não realizara – João Ribeiro faleceu em 1934 – ou somente realizara em parte. É verdade que, para apreciar o romance nordestino, ele, nascido em Sergipe, estava mais capacitado que a maioria dos homens de letras da época.
Apesar do esquecimento que apenas reflete o obscurantismo acadêmico, João Ribeiro foi um dos mais importantes ensaístas daquele período que é conhecido como “República Velha”. Para alguns, como Agripino Grieco – um crítico que não é conhecido pelo elogio fácil – Ribeiro foi o maior ensaísta da História do país até a década de 30 do século XX.
Depois de frisar os avanços que o Brasil conseguiu após a mudança de D. João para o Brasil, Ribeiro escreve:
“Se vindo para o Brasil, D. João VI nos trouxe o inestimável prêmio da autonomia, embora ainda sob as formas do absolutismo, entretanto não havia na mesquinheza do seu espírito dotes suficientes para criar como logo disse ‘um novo império’. Desmazelado, fútil e colocando vulgares diversões acima dos encargos do governo, ignorante da nova situação que a sua falta de heroísmo lhe criara, tendo preferido servir aos interesses ingleses que coincidiam com a poltroneria própria, a sucumbir com a pátria, aqui chegando no ambiente da América ainda mais olvidou a dignidade de sua posição.
“Foi ele entre nós o que desmoralizou a instituição monárquica, já de si mesmo antipática às aspirações americanas, supondo infiltrar-lhe o alento democrático que já na Europa começava a temperar as realezas rudes e guerreiras de outro tempo. Mas sem capacidade para essa delicada adaptação comprometeu para sempre o prestígio do antigo instituto. As antigas dignidades a que estavam ligados os méritos, os serviços, a responsabilidade ou a virtude, foram logo esbanjadas entre pessoas equívocas e nulas. Tal foi o excesso dessa liberalidade, diz Armitage, que no período da sua administração concedeu mais insígnias honorárias do que todos os soberanos da sua dinastia conjuntamente.
“Honras e dignidades monárquicas, com a perda do sentimento da hierarquia e do mérito, tornaram-se logo ridículos no ridículo dos seus indignos possuidores. Os bajuladores e favoritos, e a numerosa comitiva do rei, aos milhares, sem trabalho aquinhoaram-se em empregos novamente criados, pela prodigalidade insensata da corte, que via nesse improviso dos personagens uma necessidade do seu culto externo. Desde logo, com tão perverso oficialismo que se derramou pelas capitanias, renasceu com estranho vigor a antiga corrupção e a venalidade dos magistrados e funcionários, e parecia-se voltar àquele tempo em que Frei Manoel do Salvador dizia serem quatro caixas de açúcar as bastantes para vergar a vara da justiça. E assim escoavam por um lado as vantagens que por outro tinham vindo da emancipação colonial, e não seria temerário afirmar que apenas os abusos da metrópole haviam mudado agora os seus arraiais para mais perto.
(…)
“Milhares de pessoas alheias e indiferentes à religião ou aos deveres militares eram feitas subitamente cavaleiros de Santiago ou comendadores de Cristo, ofendendo assim o decoro da tradição, menoscabando o espírito das instituições e fazendo grande mal aos próprios agaloados, merceeiros ou rústicos que empavesados com os novos títulos, abandonavam o trabalho útil e por si ou sua descendência encostavam-se ao orçamento.
“Essa nobreza nova, muito mais odiosa e principalmente mais corrupta que a antiga, e que recaía sobretudo nos homens do comércio português, contribuía ainda mais para afundar o sulco de antagonismo entre os portugueses e os nacionais, que começavam a ver na monarquia a velha usurpação tradicional, que nenhuma necessidade aconselhava transplantar para o novo solo. O próprio constitucionalismo parecia-lhes uma nova insídia e preferiam vencer a converter o antigo gentilismo político” (cf. João Ribeiro, “História do Brasil, 2ª edição, Liv. Cruz Coutinho, Rio, 1901, pp. 308-310).
E, logo adiante:
“Se pois os portugueses, tardos e lentos embora, já se preparavam para a democratização da monarquia pelo espírito do constitucionalismo que clareava no horizonte, por outra parte os mamelucos, antiquários das liberdades, apologistas da revolução americana e da convenção francesa, seguiam isoladamente a sua corrente radical. A reforma política dos brancos, dos filhos do reino, surgirá em 1820 com o constitucionalismo europeu; a reforma radical dos nacionais, com todos os matizes da população, fará explosão em 1817; em verdade não sentem estes a necessidade de tornar progressiva a monarquia e de melhorar o alheio instrumento da sua opressão; não hesitam em subverter a ordem para salvar o princípio teórico e igualmente duvidoso acreditando que a filosofia pode criar mais solidamente que a história”.
Valeria a pena, em outro trabalho, abordar a teoria histórica esboçada por João Ribeiro. Aqui, é suficiente citar as suas palavras na introdução à primeira edição de seu livro sobre a História do Brasil: “nas suas feições e fisionomia própria, o Brasil, o que ele é, deriva do colono, do jesuíta e do mameluco, da ação dos índios e dos escravos negros”.
Não era algo óbvio, na época em que essas palavras foram escritas. Mais de 50 anos depois, em sua importante obra sobre a República (“História da República”, com edições revisadas pelo autor de 1940 a 1954), José Maria Bello iria insistir, ainda, na superioridade dos brancos e na sua maior importância para a História do nosso país, em relação aos negros, índios – e, por consequência, também em relação aos mestiços, mulatos ou mamelucos.
PANOS E VINHOS
O quadro de decadência da monarquia portuguesa tinha uma relação direta com a dependência de Portugal da economia inglesa – com a consequente submissão política que mantinha essa dependência econômica.
Já nos referimos ao agravamento dessa dependência, após os tratados de 1810, mas isso não é suficiente para um quadro, historicamente, mais próximo da realidade. Portanto, é preciso voltar um pouco – ao tratado de Methuen, de 1703 – para uma percepção mais nítida dessa subordinação.
O Tratado de Panos e Vinhos ficou conhecido como Tratado de Methuen porque esse era o nome do embaixador inglês – John Methuen – que distribuiu propinas entre a nobreza lusitana e membros do governo português, para consegui-lo.
Por esse tratado, Portugal escancarou seu território – e o de suas colônias, como o Brasil – aos produtos industrializados ingleses, em troca de uma “abertura” supostamente semelhante (na verdade, totalmente falsa, ilusória, fantasiosa) para os vinhos portugueses no mercado inglês.
Mesmo se os ingleses cumprissem o tratado – o que jamais fizeram, pois até na época de Napoleão, em pleno bloqueio continental, a Inglaterra preferia importar vinhos da França – ele seria um desastre (como, aliás, foi) para os portugueses.
Antes de tudo, porque a diferença de valor entre as importações portuguesas de produtos industrializados (sobretudo tecidos) e as exportações de vinhos para a Inglaterra, colocou o país diante de um déficit comercial crescente, somente coberto pela exploração das riquezas naturais (ouro, sobretudo, e também diamantes) do Brasil e outras colônias.
Assim, a dependência da Inglaterra levou a uma crise quase permanente em Portugal e suas colônias.
PARA TRÁS
O Tratado de Methuen teve o efeito não apenas de travar o desenvolvimento manufatureiro português – e, consequentemente, o brasileiro – mas também o de destruir o início de produção manufatureira que já ocorrera no país. Nas palavras de um autor português do século XIX:
“É necessário notar que, tendo-se estabelecido, como já disse, a primeira fábrica de panos em Portugal em 1681, após desta se estabeleceram outras de hábeis fabricantes estrangeiros, não só de panos, mas de vários gêneros de manufaturas, e em junho de 1684, foi proibida (conforme o projeto do excelente patriota ministro Conde da Ericeira) a importação nos nossos portos, de todas as fazendas de lã estrangeira.
“Com esta sábia e patriótica providência, foram os portugueses tão bem sucedidos e as suas manufaturas de lã aumentaram, e a tal ponto se aperfeiçoaram, que tanto Portugal como o Brasil foram inteiramente supridos pelas fábricas nacionais, sendo as matérias primas desta manufatura lãs portuguesas e espanholas.
“Tal era a situação próspera do fabrico de panos em Portugal; mas esta prosperidade não era possível durar muito tempo: tal tem sido a má estrela, que sempre tem perseguido a infeliz Nação Portuguesa, essa estrela do Norte, ou para falarmos mais claro, essa estrela da Grã-Bretanha, nossa aliada invejosa e cheia de emulação pela nossa prosperidade.
“Ela não se descuidou de fazer com que o tirânico, imbecil e anti-patriota Governo Português, anuí-se a suas pretensões, tornando a admitir, pelo sobredito Tratado de Methuen, as fazendas de lã britânica, depois de uma exclusão de 20 anos, e isto a desprezo das instâncias e justas queixas dos nossos fabricantes, cujos estabelecimentos ficaram por isso arruinados!” (cf. Francisco de Assis Castro e Mendonça, “Memória Histórica Acerca da Pérfida e Traiçoeira Amizade Inglesa”, Typ. Faria e Silva, Porto, 1840, pp. 50-51).
A LOUCA
Em janeiro de 1785, quando Maria I, a Louca, proibiu as fábricas no Brasil, era ao regime do Tratado de Methuen que ela estava se submetendo. Este decreto (“alvará”) tem, aliás, uma redação muito interessante, do ponto de vista da história da submissão da monarquia lusitana:
“… sendo-me presente o grande número de fábricas, e manufaturas, que de alguns anos a esta parte se tem difundido em diferentes capitanias do Brasil, com grave prejuízo da cultura, e da lavoura, e da exploração das terras minerais daquele vasto continente; porque havendo nele uma grande e conhecida falta de população, é evidente, que quanto mais se multiplicar o número dos fabricantes, mais diminuirá o dos cultivadores; e menos braços haverá, que se possam empregar no descobrimento, e rompimento de uma grande parte daqueles extensos domínios, que ainda se acha inculta, e desconhecida: nem as sesmarias, que formam outra considerável parte dos mesmos domínios, poderão prosperar, nem florescer por falta do benefício da cultura, não obstante ser esta a essencialíssima condição, com que foram dadas aos proprietários delas.
“E até nas mesmas terras minerais ficará cessando de todo, como já tem consideravelmente diminuído a extração do ouro, e diamantes, tudo procedido da falta de braços, que devendo empregar-se nestes úteis, e vantajosos trabalhos, ao contrário os deixam, e abandonam, ocupando-se em outros totalmente diferentes, como são os das referidas fábricas, e manufaturas.
“… e consistindo a verdadeira, e sólida riqueza nos frutos, e produções da terra, as quais somente se conseguem por meio de colonos, e cultivadores, e não de artistas, e fabricantes: e sendo além disto as produções do Brasil as que fazem todo o fundo, e base, não só das permutações mercantis, mas da navegação, e do comércio entre os meus leais vassalos habitantes destes reinos, e daqueles domínios, que devo animar, e sustentar em comum benefício de uns, e outros, removendo na sua origem os obstáculos, que lhe são prejudiciais, e nocivos.
“… em consideração de tudo o referido: hei por bem ordenar, que todas as fábricas, manufaturas, ou teares de galões, de tecidos, ou de bordados de ouro, e prata. De veludos, brilhantes, cetins, tafetás, ou de outra qualquer qualidade de seda: de belbutes, chitas, bombazinas, fustões, ou de outra qualquer qualidade de fazenda de algodão ou de linho, branca ou de cores: e de panos, baetas, droguetes, saietas ou de outra qualquer qualidade de tecidos de lã; ou dos ditos tecidos sejam fabricados de um só dos referidos gêneros, ou misturados, tecidos uns com os outros; excetuando tão somente aqueles dos ditos teares, e manufaturas, em que se tecem, ou manufaturam fazendas grossas de algodão, que servem para o uso, e vestuário dos negros (…)
“… todas as mais sejam extintas, e abolidas em qualquer parte onde se acharem nos meus domínios do Brasil, debaixo da pena do perdimento, em tresdobro, do valor de cada uma das ditas manufaturas, ou teares, e das fazendas, que nelas, ou neles houver, e que se acharem existentes, dois meses depois da publicação deste; repartindo-se a dita condenação metade a favor do denunciante, se o houver, e a outra metade pelos oficiais, que fizerem a diligência; e não havendo denunciante, tudo pertencerá aos mesmos oficiais”.
No entanto, houve, antes de Dª Maria, a louca, uma tentativa de mudar essa situação. Oliveira Lima chamaria a essa tentativa, muito justamente, de “lampejo pombalino”, em virtude do homem que a empreendeu: o marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Mello, principal ministro de D. José I.