CARLOS LOPES
Considerando a carga ideológica acumulada contra o marquês de Pombal nos últimos 250 anos, é preciso explicitar – ou, pelo menos, é útil, para o estudo da nossa Independência – o seu significado histórico
Os homens que lideraram a revolução da Independência, a começar por José Bonifácio, formaram-se sob a luz da reforma do marquês de Pombal, que subsistiu, na Universidade de Coimbra, mesmo depois da queda de seu patrono, em 1777, e de sua morte, em 1782.
Alguns desses homens, na geração posterior à de José Bonifácio, formaram em Coimbra uma sociedade republicana, a Gruta, inclusive alguns que seriam, de volta ao Brasil, baluartes indubitáveis da monarquia – como os futuros marquês do Paraná (Honório Hermeto Carneiro Leão), visconde de Uruguai (Paulino José Soares de Souza), visconde de Sepetiba (Aureliano de Souza e Oliveira), visconde de Itaboraí (Joaquim José Rodrigues Torres), visconde de Rio Grande (José de Araújo Ribeiro), conde de Serjimirim (Antonio da Costa Pinto) e até o futuro marquês de Muritiba (Manoel Vieira Tosta), ferrenho porta-voz do escravagismo no Senado do Império (cf. o testemunho de José Pedroso de Albuquerque, um dos membros da Gruta, que foi ministro da Justiça da república farroupilha, in Fernando Luís Osório, “História do General Osório”, 1º vol., G. Leuzinger & Filhos, Rio, 1894, p. 276).
MUDANÇAS
Considerando a carga ideológica acumulada contra o marquês de Pombal nos últimos 250 anos, é preciso explicitar – ou, pelo menos, é útil, para o estudo da nossa Independência – o seu significado histórico.
Em 1882, discursando em homenagem ao centenário do marquês de Pombal, o nosso Rui Barbosa disse que o “defeito real” do estadista português “consistia em ser descompassadamente superior à sociedade a que o nascimento o condenara” (cf. Rui Barbosa, Obras Completas, vol. IX, tomo 2, p. 220).
Lembrou Rui que “em 1772, por um só ato, [Pombal] instituiu 837 cadeiras públicas de instrução primária e secundária” e comentou: “Imaginai, no meio do marasmo nacional daquele tempo, o arrojo inconcebível dessa medida, que inaugurava a escola essencialmente popular, firmando o princípio da gratuidade do ensino”.
“Quatro anos antes”, continuou Rui Barbosa, “principiara esse impulso com a reforma da Universidade de Coimbra. Por toda a superfície da península, a instrução cientifica não existia. Em 1786 um célebre escritor castelhano, comparando as matemáticas à alquimia, ufanava-se da ignorância delas em sua pátria, como sinal irrefragável da sua superioridade sobre as outras nações. Nos meados desse século não havia em toda a Espanha um químico prático. Mais de cento e cinquenta anos depois de Harvey ainda se desconhecia ali a circulação do sangue. A Universidade de Salamanca, em 1771, recusara entrada, pública, desdenhosa e terminantemente, aos descobrimentos de Newton, Gassendi e Descartes, por se não coadunarem com Aristóteles. Em Portugal os estudos universitários vegetavam sob a rotina teológica, do mesmo modo como os colégios eram monopólio das ordens religiosas, e as raras escolas primárias não passavam, digamos assim, de estabelecimentos diocesanos, sob a direção dos clérigos e a inspeção dos bispos” (Rui Barbosa, op. cit., pp. 218-219, grifo nosso).
E, resumindo a reforma pombalina em Coimbra:
“Num breve espaço de tempo, surgiram oitenta cadeiras de ciências, de humanidades, de artes de aplicação; estabeleceu-se um observatório; levantaram-se museus de história natural, de instrumentos químicos, de medicina. (…) Ele [Pombal] discerniu admiravelmente o automatismo da pedagogia jesuítica; empreendeu seriamente libertar a instrução da curatela clerical; reconheceu à ciência a sua dignidade no ensino; aos professores cometeu contra a sua época o absurdo monstruoso de estender foro de fidalguia, e iniciou o pensamento, praticado hoje em grande escala pelos povos mais livres, digno de adoção em todos, de um imposto que constitua o patrimônio inviolável da instrução popular” (Rui Barbosa, idem, pp. 219-220).
Aqui, correndo mais uma vez o risco de alongarmo-nos demasiado em uma citação, se poderá sentir o motivo de todo o ódio que Pombal suscitou entre a sebosa, falida, arrogante – e, ao mesmo tempo, subserviente – aristocracia e seus porta-vozes literários:
“Sua audácia centuplica-se em altanadas criações, uma após outras. Dá para a liberdade da palavra e a emancipação da imprensa o primeiro passo, secularizando a censura, e abolindo o Índice [o Index Librorum Prohibitorum da Igreja Católica]. Leva a ação repressiva das leis ao recesso, até então inviolável, dos conventos, fazendo penetrar a justiça nas enxovias monásticas, antigo receptáculo de perversidades indescritíveis. Extingue, em matéria tributária, as imunidades clericais. Da infinidade de confrarias que, em prejuízo do trabalho e dos costumes públicos, inundavam o reino, deixa apenas quatro. Põe termo peremptoriamente à ignomínia de uma especulação inveterada, que se praticava com as filhas das melhores famílias brasileiras, expatriadas daqui sob o pretexto de educarem-se, para se condenarem na metrópole à torpe clausura dos conventos. Contém o abuso dos legados a estabelecimentos religiosos, monomania geral, que explorava as famílias, nutrindo a ociosidade e o fanatismo. Amplia as leis de amortização. Desfecha golpe fatal na instituição dos morgados. Acaba com a iniquidade da prisão por dívidas contra os devedores de boa-fé. Proclama a nobreza da profissão comercial, para cujo desenvolvimento se esforça, com a sua eficácia habitual, instituindo o ensino dessa especialidade. Inaugura o princípio da concorrência e igualdade de todos os cidadãos perante os cargos do Estado, abolindo o direito consuetudinário, que consagrava a hereditariedade dos empregos” (Rui Barbosa, idem, pp. 220-221).
DIPLOMACIA
Pombal não era homem de encenações ou de medidas ilusórias. Não hesitou em executar o duque de Aveiro, os marqueses de Távora e o conde de Atouguia, em 1759, para quebrar a resistência feudal à sua política (não estamos, aqui, discutindo a culpabilidade pessoal, ou não, dos sentenciados; é evidente que o atentado contra D. José I, pelo qual foram condenados, foi uma forma desesperada de resistência da alta nobreza; mesmo a revisão do processo, após a queda de Pombal, não conseguiu, apesar de todos os esforços da Corte – e da rainha, Dª Maria I – chegar a uma absolvição geral; v. os documentos em “O Processo dos Távoras”, publicado pela Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa, 1921).
Também não hesitou em proibir os “autos de fé” da Inquisição e a condenação à morte por motivos religiosos, em expulsar os jesuítas de Portugal – e do Brasil – e até o Núncio, isto é, o embaixador do Papa (a propósito, em 1768, respondendo ao governo inglês, que se queixava de sua política de estabelecer companhias comerciais de caráter estatal no Pará e no Maranhão, refere-se Pombal aos “sertões habitados por homens brutos, e silvestres, que os jesuítas conservavam na infeliz ignorância de que havia outros homens civis, que andavam vestidos, e calçados. (…) não podia haver agricultura, nem comércio; mas tão somente escravidão, calamidades, e misérias (…). Antes da dita companhia não foram, nem podiam ir ao Maranhão naquelas circunstâncias os 15, ou 16 navios cada ano, como se alega; muito pelo contrário só 3, 4 até 5 pequenas, e insignificantes embarcações iam anual ou bienalmente buscar os cacaus, e mais frutos silvestres, que os jesuítas faziam extrair dos sertões mais remotos pelos índios nus, e descalços, que gemiam debaixo do jugo da sua escravidão; e trazer cabedais, que os mesmos jesuítas portugueses remetiam pelos ditos sertões, a outros jesuítas, espanhóis de muito remotas distâncias” – cf. “Cartas e Outras Obras Selectas do Marquez de Pombal”, Tomo II, 5ª ed., Costa Sanches, Lisboa, 1861, pp. 23-24).
A reforma universitária de Pombal, para eliminar a escolástica medieval, que sufocava o ensino português, foi radical: ele demitiu todos os professores – a maior parte eram jesuítas – e admitiu outros (um pequeno resumo da reforma pombalina é o de Eunicélia de Fátima Carneiro da Silva em “Memória sobre a Vida, Obra e o Pensamento Político-Jurídico de José Bonifácio de Andrada e Silva (1783-1823)”, Universidade de Coimbra, 2015; o texto é importante, mesmo que, em sua consideração sobre o “estatismo e regalismo” de Pombal, seja claramente conservador).
Vejamos agora a questão da dependência em relação à Inglaterra, através do que poderia ser um incidente pequeno – em um governo de mais de duas décadas.
Depois que, em mar territorial lusitano, a marinha inglesa atacou navios franceses – que eram, na Guerra dos Sete Anos, inimigos da Inglaterra, mas não de Portugal – escreveu Pombal (na época, conde de Oeiras) a William Pitt, primeiro-ministro da Inglaterra:
“Eu sei que o vosso gabinete tem tomado um império sobre o nosso; mas sei também que já é tempo de o acabar; se meus predecessores tiveram a fraqueza de vos conceder tudo quanto queríeis, eu nunca vos concederei senão o que devo. É esta a minha última resolução; regulai-vos por ela” (cf. “Cartas e Outras Obras Selectas do Marquez de Pombal”, Tomo I, ed. cit., p. 5).
Na carta seguinte para Pitt, diz o futuro marquês de Pombal:
“Eu rogo a v. ex. que me não faça lembrar das condescendências, que o governo português há tido com o governo britânico; elas são tais, que não sei que potência alguma as haja tido semelhantes com outra. Era justo que essa autoridade acabasse alguma vez, e que fizéssemos ver a toda a Europa que tínhamos sacudido um jugo estrangeiro. Não o podemos melhor provar do que pedindo ao vosso governo uma satisfação que por nenhum direito nos deve negar. A França nos consideraria no estado de maior fraqueza se lhe não déssemos alguma razão do estrago que sofreu a sua esquadra em as nossas costas marítimas, onde por todos os princípios se devia julgar em segurança.”
Na terceira carta a Pitt, então, encontra-se o mais nítido – e, convenhamos, dramático – retrato de Portugal após o Tratado de Methuen:
“Vós fazíeis bem pequena figura na Europa, quando nós já a fazíamos mui grande. Vossa ilha apenas formava um pequeno ponto, sobre a carta geográfica, ao passo que Portugal quase a enchia toda com seu nome.
“Nós dominávamos em Ásia, África, e América, e entretanto vós não domináveis senão em uma pobre ilha da Europa: vosso poder era do número daqueles que só podia aspirar aos da segunda ordem; mas por os meios que vos temos dado, pudestes elevar-vos a uma potência da primeira ordem. Vossa fraqueza física vos privava de estender vosso domínio além dos limites da vossa ilha: porque para fazer conquistas vos era necessária uma grande armada; mas para ter uma grande armada é preciso poder-lhe pagar, e vós não tínheis o numerário para isso. Os que tiverem calculado vossas qualidades naturais no tempo da grande revolução da Europa devem ter visto que não tínheis então com que sustentar seis regimentos de infantaria. Nem o mar, que se pode reputar vosso elemento, vos oferecia então maiores recursos: apenas podíeis equipar vinte navios de guerra.
“Há cinquenta anos a esta parte tendes tirado de Portugal mil e quinhentos milhões, soma enorme, e tal, que a história não aponta igual com que uma só nação tenha enriquecido outra. O modo de haver estes tesouros vos tem sido mais favorável ainda, que os mesmos tesouros: porque é por meio das artes [isto é, da produção manufatureira] que a Inglaterra se tem tornado senhora de nossas minas, e nos despoja, regularmente de seu produto.
“Um mês depois que a frota do Brasil chega, já dela não há uma só moeda de ouro em Portugal; grande utilidade para Inglaterra, pois que continuamente aumenta sua riqueza numerária: e a prova é, que a maior parte de seus pagamentos de banco se fazem com o nosso ouro, por efeito de uma estupidez nossa, de que não há exemplo em toda a história universal do mundo econômico.
“Assim permitimos nós, que nos mandeis nosso vestuário, bem como todos os objetos de luxo, que não é pouco considerável; e assim, damos emprego a quinhentos mil vassalos del-rei Jorge, população, que à nossa custa se sustenta na capital de Inglaterra.
“Também são vossos campos os que nos sustentam; e são vossos lavradores os que substituem os nossos, quando em tempos antigos éramos nós quem vos fornecia os mantimentos; mas a razão é que enquanto vós roteáveis vossas terras, deixávamos nós ficar as nossas sem cultura.
“Contudo se nós somos os que vos temos elevado ao maior grau de vossa grandeza, também nós somos os únicos que dele vos podemos derribar. Muito melhor podemos nós passar sem vós, do que vós podeis passar sem nós: uma só lei pode transtornar vosso poder, e diminuir vosso império. Não temos mais do que proibir com pena de morte a saída de nosso ouro, e ele não sairá.
“Verdade é que a isto podeis responder-me que, apesar de todas as proibições, ele sempre sairá, como tem saído, porque vossos navios de guerra têm o privilégio de não serem registrados na sua saída: mas não vos enganeis com isso: se eu fiz com que se degolasse um duque de Aveiro, porque atentou contra a vida del-rei Nosso Senhor, mais facilmente farei enforcar um dos vossos capitães por levar sua efígie contra o determinado por a lei.
“Há tempos em que nas monarquias um só homem pode muito. Vós sabeis que Cromwell, em qualidade de protetor da república inglesa, fez morrer o irmão do embaixador del-rei fidelíssimo: sem ser Cromwell eu me sinto também com poder de imitar o seu exemplo, em qualidade de ministro, protetor de Portugal. Fazei logo o que deveis, que eu não farei tudo quanto posso.
“Em que viria a parar a Grã-Bretanha se por uma vez se lhe cortassem as fontes das riquezas da América? Como pagaria ela suas tropas de terra, e de mar: e como daria a seu soberano os meios de viver com o esplendor de um grande rei? E mais ainda: donde tiraria ela os subsídios com que paga às potências estrangeiras para apoiarem a sua?
“Um milhão de vassalos ingleses perderia em um momento a sua subsistência, se de repente para eles acabasse a mão de obra de que se sustentam; e o reino de Inglaterra passaria por certo a grande estado de miséria, se esta origem de riquezas lhe faltasse. Portugal não precisa mais, do que regular seu sustento: e fazendo assim, a quarta parte da Inglaterra morrerá de fome.
“Bem verdade é, que me podeis dizer que a ordem das coisas não se muda tão facilmente como se diz; e que um sistema estabelecido depois de muitos anos não se muda em uma hora: assim é; porém posso-vos responder, que não deixando eu perder a ocasião oportuna de preparar esta reforma, não me é difícil no entanto estabelecer um plano de economia que conduza ao mesmo fim.
“Há muito tempo que a França nos convida para lhe recebermos suas manufaturas de lã: e se as recebermos, que será das vossas? Também a Barberia [costa dos atuais Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia], que abunda em trigos, no-los pode fornecer por o mesmo preço: e então vereis com extrema mágoa como vossa marinha gradualmente se extingue. Vós, que tão versado sois na política do ministério, sabeis muito bem que a marinha mercante é o viveiro de oficiais e maruja da marinha real; e só com esta, e aquela, tendes feito toda a vossa grandeza.
“A satisfação que vos peço é conforme com o direito das gentes. Sucede todos os dias que os oficiais de mar, e terra, façam por zelo, ou ignorância, o que não deviam fazer; é portanto a nós que pertence o puni-los e fazer emendar, e remediar os danos que eles têm causado. Nem se deve julgar que estas reparações ficam mal ao Estado que as faz: ao contrário, sempre é mais bem estimada aquela nação que de boamente se presta a fazer tudo o que é justo. Da boa opinião dependeu sempre o poder; e a força das nações” (idem, pp. 6-9).
Pode parecer estranho que um governante português dirigisse essas cartas ao primeiro-ministro inglês, não porque faltasse com a verdade, mas pela concepção adocicada e submissa que alguns têm, hoje, do que se chama “diplomacia”.
Pombal, no entanto, durante o reinado de D. João V, fora – durante sete anos – embaixador de Portugal em Londres. Jamais aprendeu inglês, mas conhecia bem a linguagem que a aristocracia inglesa entendia.
Depois desta última carta, a Inglaterra desembarcou em Lisboa um enviado especial – para pedir desculpas pelo ataque à esquadra francesa em mar português.