CARLOS LOPES
A correspondência de Dª Leopoldina revela uma mulher excepcional para o seu tempo, sobretudo – e antes de tudo – em se tratando de alguém nascida e criada na corte dos Habsburgos, família dinástica que não passou à História por seu brilhantismo. A imperatriz Leopoldina parece uma exceção – talvez por sua identificação com um projeto de Nação que era oposto ao esclerosado credo dos Habsburgos
Euclides da Cunha, em seu ensaio “Da Independência à República”, ao escrever sobre José Bonifácio, referiu-se, com seu característico estilo, à “figura anormal desse homem que sobranceou o seu tempo, mercê de uma cultura integral dilatando-lhe o espírito por todas as ordens de conhecimentos, da mineralogia transfigurada por Werner à química recém-instituída por Lavoisier, até as mais transcendentes cogitações de Kant ou de Fichte” (cf. Euclides da Cunha, “À Margem da História”, Lello Brasileira, 1967, p. 185).
Euclides, portanto, caracteriza José Bonifácio como um homem do Iluminismo – membro da mesma plêiade da qual fizeram parte Diderot, Voltaire, Rousseau, d’Alembert, Montesquieu.
José Bonifácio residiu e estudou na França de 1790 a 1792 – em meio à Revolução Francesa.
Daí, a sua anotação posterior:
“Os horrores das revoluções talvez sejam menores que os da matança de São Bartolomeu; e, todavia, esta matança não acabou com o Catolicismo. E por que quererão acabar hoje com as verdades que patenteou e inculcou a Revolução Francesa?”
Ou, também:
“Os que se opõem às reformas por nímio respeito da antiguidade, por que não restabelecem a tortura, a queima dos feiticeiros etc.? Seriam nossos pais culpáveis para com os seus antigos quando adotaram o Cristianismo e destruíram a escravidão na Europa? Não era isto abandonar a antiguidade para ser moderno? E por que não aproveitaremos nós as luzes do nosso tempo para que a nossa posteridade tenha também uma antiguidade que de nós provenha, mas que o deixe de ser logo que o progresso do espírito humano assim o exigir?” (ambas as citações estão na coletânea organizada por Octávio Tarquínio de Sousa, “O Pensamento Vivo de José Bonifácio”, Liv. Martins, 1944).
O HOMEM
Um autor, que não foi um admirador dos Andradas, escreveu sobre as “preciosas qualidades, intelectuais e morais, que se encontravam reunidas em José Bonifácio (…). A sua tenacidade era um contrapeso às vacilações de D. Pedro, cuja iniciativa ele encorajava. Mareschal [o representante da Áustria e da Santa Aliança (Áustria, Prússia e Rússia) no Rio de Janeiro] notou-lhe desde logo essa superioridade sobre o Conde dos Arcos, que procurava adormecer as faculdades do Príncipe para governar livremente. A sua espantosa atividade, a sua extrema viveza causavam admiração ao Ministro austríaco (…). O Almirante Roussin duvidava que existisse no mundo ‘velhinho mais fogoso; aos sessenta e seis anos, nem seu corpo, nem seu espírito um momento sequer estavam em repouso’. (…) Apresentando a eficácia da política seguida no Brasil, em contraste aos desacertos e lentidão da política das Cortes, dizia Borges Carneiro [um dos líderes das Cortes de Lisboa]: ‘Ali, um só homem, José Bonifácio de Andrada e Silva, com a energia do seu caráter, improvisa forças de mar e terra, acha recursos em abundância e os põe pela porta afora com a maior sem-cerimônia possível.’
“Além de grande probidade”, continua esse autor, “(…) a sua cultura intelectual era intensa e punha-o acima de quase todos os brasileiros ilustrados do seu tempo. Era laureado em filosofia e letras; conhecia Shakespeare e Dante tão bem como Camões, as musas francesas tão intimamente quanto as que haviam inspirado a Schiller e Goethe; a toda essa cultura moderna precedia o seu convívio com os clássicos gregos e latinos. Os centros científicos estrangeiros tinham-no em alta conta. A Sociedade de História Natural de Paris publicou-lhe nas respectivas atas a memória acerca dos diamantes do Brasil e as descobertas de novas espécies de minerais. O fato de falar seis línguas e entender onze avultava-lhe os dotes, no meio da gente a quem tal dom pareceria quase sobrenatural.
“José Clemente reconhece que ele era ‘o único homem apontado então para dirigir a revolução’, porque além de ter o favor da popularidade ‘reunia vasto saber, imaginação viva, atividade sem igual e intrepidez remarcável’. São dignas da sua memória as palavras proferidas a seu respeito, poucos anos depois da sua morte, por esse generoso adversário, um dos mais atingidos pela sua cólera: ‘Os serviços desse grande homem nunca poderão ser assaz remunerados; honrou com os seus talentos a sua pátria no pais e no estrangeiro, e o seu nome será sempre inseparável da Independência do Brasil, a qual lhe é devida em grande parte’.” (cf. Tobias Monteiro, “A Elaboração da Independência”, Tomo 2, ed. cit., pp. 733-735).
O BRASILEIRO
Essas qualidades de José Bonifácio, no entanto, raramente são reconhecidas como uma condensação de um processo histórico que se desenvolvia, no Brasil, desde a guerra de libertação contra os holandeses. Como nota o mesmo autor:
“Nos fins do século XVIII a maioria dos talentos do Reino [de Portugal] já era de origem brasileira, e a população do Brasil já era a maior e mais rica. Latino [o escritor e político português Latino Coelho] lembra os nomes de Morais, do Dicionário, do poeta Pereira Caldas, do jornalista e publicista Hipólito, de Azeredo Coutinho (bispo de Eivas), do matemático Vilela Barbosa (Marquês de Paranaguá), dos químicos Nogueira da Gama (Marquês de Baependi) e Seabra, do botânico Conceição Veloso, do explorador e zoólogo Alexandre Rodrigues Ferreira, do mineralogista Feijó, de Câmara Bitencourt (companheiro de José Bonifácio na viagem científica pela Europa), dos médicos Melo Franco e Elias da Silveira. No Brasil tinham crescido e floresciam Antônio José [o teatrólogo Antonio José da Silva, executado pela Inquisição em 1739], Basilio da Gama, Santa Rita Durão, Cláudio [Manoel da Costa], Alvarenga Peixoto. Aliás, poderia ainda aumentar aquele rol com outros nomes que então já brilhavam ou começaram a brilhar ao abrir-se o século XIX: o botânico Arruda Câmara, Baltazar Lisboa, o bispo Azeredo Coutinho, Souza Caldas, Aires Casal, Fr. Leandro do Sacramento, Picanço, Silva Lisboa, João Severiano (Queluz), Mariano da Fonseca (Maricá), Fernandes Pinheiro (São Leopoldo), Carneiro de Campos (Caravellas), José Egídio (Santo Amaro), os irmãos Andrada” (op. cit, p. 501).
Havia nesses homens – e, progressivamente, cada vez mais – uma altivez advinda de suas conquistas intelectuais, que identificavam, também progressivamente, com a terra em que nasceram ou cresceram. Portugal tornara-se pequeno demais para eles – não qualquer Portugal, mas o decadente país em que este se tornara, cada vez mais dependente da economia inglesa e mais submisso à política da Inglaterra.
Não espanta, portanto, que o ânimo, as ideias – em suma, o espírito – dos homens da Independência (segundo o testemunho de José Clemente Pereira, inclusive de D. Pedro I durante o ministério dos Andradas, período que vai de janeiro de 1822 a julho de 1823), eram antagônicos à dependência externa do país, especialmente da Inglaterra.
É ostensivo como José Bonifácio tenta uma aproximação com o representante da Santa Aliança, o barão austríaco Phillipe Leopold Wenzel von Mareschal, como contrapeso à influência inglesa, apesar do dogma do príncipe de Metternich, chanceler da Áustria, que consistia em restaurar o absolutismo – ou, o que é a mesma coisa, em combater qualquer monarquia constitucional, para não falar das repúblicas (para Metternich, aliás, não havia muita diferença entre monarquia constitucional e república).
Porém, apesar do reacionarismo quase delirante – mesmo na primeira metade do século XIX – da Santa Aliança, existia uma ponte com a Áustria: a princesa, e, depois, imperatriz Leopoldina era, também, uma arquiduquesa austríaca, isto é, filha do imperador da Áustria, Francisco I.
Dª Leopoldina tornou-se muito amiga de José Bonifácio já no início de 1822 – entre outras razões porque, falando fluentemente alemão, ele era uma das poucas pessoas com as quais, no Rio de Janeiro, a então princesa podia falar no idioma de seu país-natal.
Porém, em público, ela sempre fazia questão de falar português – e até sua correspondência com José Bonifácio foi escrita em português, o que, para ela, devia ser um esforço não pequeno. Apesar disso, como observou Afonso d’Escragnolle Taunay, “para uma estrangeira, e para o tempo, as cartas de dona Leopoldina se apresentam bem escritas, quanto à ortografia e sintaxe portuguesa. O marido, por exemplo, escrevia pior do que ela” (v. “Cartas inéditas da imperatriz Leopoldina a José Bonifácio”, RIHGB, T. 91, Vol. 145, 1922, p. 704).
Aliás, a correspondência de Dª Leopoldina revela uma mulher excepcional para o seu tempo, sobretudo – e antes de tudo – em se tratando de alguém nascida e criada na corte dos Habsburgos, família dinástica que não passou à História por seu brilhantismo.
A imperatriz Leopoldina parece uma exceção – talvez por sua identificação com um projeto de Nação que era oposto ao esclerosado credo dos Habsburgos.
Ela fez o possível para facilitar a vida do novo país. Por exemplo, diz ela ao imperador Francisco I, em carta do dia 6 de abril de 1823:
“Desde que meu esposo tomou as rédeas do Estado, Deus sabe que, não por sede de poder ou ambição, mas para satisfazer o desejo do probo povo brasileiro, que se sentia sem regente, dilacerado em seu íntimo por partidos que ameaçavam com uma anarquia ou República; qualquer um que se encontrasse na mesma situação faria o mesmo: aceitar o título de Imperador para satisfazer a todos e criar a unidade.
“É meu dever fazer o papel de intercessora do nobre povo brasileiro, pois todos nós lhe devemos algo; nas circunstâncias mais críticas, este povo fez os maiores sacrifícios, que demonstram amor à pátria, para proteger sua unidade e o poder real.
“Todas as províncias se unem pelo mesmo interesse, mesmos anseios. Agora, nada mais me resta desejar senão que o senhor, querido pai, assuma o papel de nosso verdadeiro amigo e aliado; certamente será para meu esposo e para mim um dos nossos dias mais felizes, quando tivermos essa certeza; quanto a mim, caríssimo pai, pode estar convicto de que, caso aconteça o contrário, para nosso maior pesar, sempre permanecerei brasileira de coração, pois é o que determinam minhas obrigações como esposa e mãe, e a gratidão a um povo honrado que se dispôs, quando nos vimos abandonados por todas as potências, a ser nosso esteio, não temendo quaisquer sacrifícios ou perigos”.
Ela sabia perfeitamente da péssima recepção, na corte de seu país, da separação do Brasil de Portugal – e, ainda mais, do propósito declarado de instalar no país uma monarquia constitucional. Assim, tenta acalmar a corte de Viena:
“Estou certa, meu caríssimo pai, haver quem vos tenha dito ou escrito que aqui se queria fazer uma Constituição como a dos pérfidos portugueses ou das sanguinárias Cortes espanholas; mas garanto-vos ser mentira e ocorre-me o dever de dar os motivos principais da minha opinião. Na Assembleia das Cortes [é como ela se refere à Constituinte do Brasil] há membros de elevados talentos e grande retidão, respeitosos do Poder Real e que o sabem sustentar. A Assembleia compõe-se de duas Câmaras. O Imperador possui o direito do veto absoluto. Ao seu Conselho Privado e aos seus ministros, todos de sua escolha, não é dado o menor direito nem de intervir nem de opor-se; são todos como a domesticidade e os oficiais da Corte. O Imperador possui igualmente todos os atributos que auxiliam a manutenção da sua força, tais como, Chefe do Poder Executivo e Chefe dos Negócios Políticos”.
Esta carta foi escrita, por Dª Leopoldina, 27 dias antes da abertura dos trabalhos da Constituinte. Na mesma carta, ela também argumenta com os interesses comerciais da Áustria – que eram muito restritos no Brasil, com o quase monopólio por parte da Inglaterra:
“O destino do Brasil interessa altamente aos poderes europeus, especialmente no que tange aos interesses comerciais. As nossas Cortes não têm desejo mais ardente do que o de estabelecer tratados comerciais com as terras da Áustria. A extraordinária riqueza do Brasil em peles, madeiras e mantimentos poderão, dessa maneira, ficar à disposição da minha querida pátria” (cit. in João Alfredo dos Anjos, “José Bonifácio, Primeiro Chanceler do Brasil”, Fundação Alexandre de Gusmão/MRE, Brasília, 2008, p. 206).
O SUL
A outra linha de resistência à dependência, na política de José Bonifácio, era a formação de uma aliança com as repúblicas da América do Sul, que acabavam de se tornar independentes da Espanha.
Em um informe para Viena – ou seja, ao príncipe de Metternich – o barão Mareschal relatou, a 17 de maio de 1822:
“… o Senhor d’Andrada vai mais longe e eu o ouvi dizer na Corte, diante de vinte pessoas, todas estrangeiras, que se fazia necessária a grande Aliança ou Federação Americana, com liberdade de comércio; que se a Europa se recusasse a aceitá-la, eles fechariam os seus portos e adotariam o sistema da China, que se viéssemos atacá-los, suas florestas e suas montanhas seriam as suas fortalezas, que numa guerra marítima nós teríamos mais a perder do que eles” (cf. José Vicente de Sá Pimentel (org.), “Pensamento Diplomático Brasileiro: formuladores e agentes da política externa (1750-1964)”, Volume 1, Fundação Alexandre de Gusmão/MRE, Brasília, 2013, p. 89).
Cronologicamente, essa era, inclusive, a primeira linha de José Bonifácio:
“No Brasil, após as primeiras medidas de política interna, José Bonifácio inicia pelo Prata a ação externa do Brasil independente, ainda em maio de 1822, convocando Antônio Manuel Corrêa da Câmara para representar o país em Buenos Aires. (…) Câmara devia fazer ver a Buenos Aires que aquele era o momento de apoiar o Brasil, pois, uma vez ‘consolidada a sua Reunião e Independência’, a Europa naturalmente entenderia ser impossível restabelecer o domínio colonial sobre ele e sobre as demais colônias americanas.
“Vencida a primeira etapa da missão – convencer os seus interlocutores de que os interesses do Brasil são os mesmos dos demais Estados deste ‘hemisfério’ – deveria Câmara prometer que o Príncipe Regente reconheceria a independência política das nações vizinhas e ‘lhes exporá as utilidades incalculáveis que podem resultar de fazerem uma Confederação ou Tratado ofensivo e defensivo com o Brasil (…) nenhum desses Governos poderá ganhar amigo mais leal e pronto do que o Governo Brasiliense; além das grandes vantagens que lhes há de provir das relações comerciais que poderão ter reciprocamente com este Reino’.
“Bonifácio tinha plena consciência de que a proposta apenas encontraria eco se fossem superadas as ‘desconfianças’ em relação à boa-fé do Governo brasileiro. Isso mesmo argumentava o Chanceler a Corrêa da Câmara, recomendando que ele fizesse ver que um país como o Brasil, que se empenhava em ‘porfiosa’ luta pela Independência, não poderia deixar de ‘fraternizar-se’ com os seus vizinhos. (…) Para colocar em prática a nova política, já a 1º de junho, Bonifácio, na qualidade de Ministro do Reino, instrui o Juiz da Alfândega do Rio de Janeiro a que não só permitisse ‘descarregar os gêneros’ provenientes de Buenos Aires, mas também que prestasse ‘todo o favor e proteção possível’ ao mestre da embarcação Paquete do Rio da Prata, que aportara recentemente. Ademais, deveria ficar o Juiz ‘na inteligência de que assim deverá praticar para o futuro com qualquer outra embarcação daquele Estado, que aqui haja de aportar’.” (cf. João Alfredo dos Anjos, “José Bonifácio, Primeiro Chanceler do Brasil”, ed. cit., pp. 102-105 e 106-108).