CARLOS LOPES
Diante da mudança de endereço da família real – chamemos assim – como reagiu o povo português? Nosso interesse, aqui, não é a história de Portugal, exceto naquilo que foi importante para a formação dos homens da Independência, em especial, José Bonifácio
José Bonifácio combateu na resistência à invasão francesa de Portugal. É necessário expor o significado histórico desse ato – o que é, também, expor a sua importância na formação da personalidade política do Andrada, que foi, no Batalhão Acadêmico, major, tenente-coronel e comandante da defesa de Coimbra.
A resistência aos franceses teve origem unicamente popular – contra a posição da nobreza, e, inclusive, a da Coroa: antes de partir para o Brasil, o príncipe regente D. João decretara que “a defesa contra as tropas do imperador seria mais nociva que proveitosa” (cf. Abílio Pires Lousada, “A invasão de Junot e o levantamento em armas dos camponeses de Portugal. A especificidade transmontana.”, Revista Militar, nº 2482/novembro de 2008, Lisboa).
NÚMEROS
Não é conhecido, ao certo, o número de nobres – e sua criadagem – que vieram com D. João para o Brasil. As estimativas variam entre 521 (420 membros da corte mais 101 oficiais da Marinha portuguesa) e 15.000 (quinze mil), o que deve ser um recorde de margem de erro.
O professor e arquiteto Nireu Oliveira Cavalcanti, de quem procede a estimativa mais baixa, argumenta, convincentemente, que a estimativa maior (15 mil) é inverossímil, pois esse número significaria que, em 40 horas, nada menos que 8% da população de Lisboa embarcou em 16 navios, além dos que traziam “as tralhas” e dos quatro navios ingleses que chegaram, com a comitiva, ao Brasil (cf. o interessante – sob mais de um aspecto – artigo de Nireu Oliveira Cavalcanti, “A reordenação urbanística da nova sede da Corte”, RIHGB nº 436, jul./set., 2007, pp. 149-199; v., também, do mesmo autor, o importante livro “O Rio de Janeiro Setecentista – A vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da corte”, Zahar, 2003).
O autor documenta, também, o famoso “Ponha-se na Rua” (as iniciais P.R. – Príncipe Regente – eram afixadas nas casas que a nobreza recém-chegada requisitava aos brasileiros; daí, P.R. ser conhecido como “ponha-se na rua”). Trata-se do “direito de aposentadoria” – que nada tem a ver com a Previdência Social, que, evidentemente, não existia na época, mas com o “direito” da nobreza feudal de requisitar e ocupar aposentos, isto é, as casas de outros, quando em viagem.
Além da família real – composta por 14 pessoas, incluindo as crianças -, apenas 19 nobres, que vieram de Lisboa com D. João, tiveram esse “direito” no Rio de Janeiro, de acordo com a documentação recolhida ao Arquivo Nacional (cf. Nireu Oliveira Cavalcanti, art. cit., p. 155, nota).
Realmente, a fonte dos 15 mil portugueses que teriam saído de Portugal em 1807, com o então príncipe regente, é duvidosa: um oficial da marinha inglesa, o conde irlandês Thomas O’Neill, que não estava presente na partida da família real, apesar de descrevê-la melodramaticamente – e até inventar um encontro do comandante francês, general Andoche Junot, com D. João (em seu “D. João VI no Brasil”, Oliveira Lima chamou o relato de O’Neill de “imaginosa narração”, apesar de conceder a ele um crédito de veracidade que não é coerente com esse conceito).
O Rio de Janeiro tinha, então, 7.500 imóveis urbanos. A chegada de 15 mil pessoas seria, portanto, uma comoção, para dizer o mínimo, mesmo com a suposição, pouco fundamentada, de que uma parte dessas pessoas pudesse ter ficado na Bahia, onde D. João primeiramente aportou, ou na Paraíba, onde arribou, antes do Rio, a nau D. João de Castro.
Mas é preciso acrescentar que parte da frota – inclusive três dos principais navios (as naus Rainha de Portugal, Príncipe do Brasil e Infante D. Henrique), com parte da família real – veio direto para o Rio de Janeiro, chegando a 17 de janeiro de 1808, enquanto D. João somente chegou a 7 de março (cf. o relato de uma testemunha do desembarque, o padre Luiz Gonçalves dos Santos, “Memorias para servir a historia do reino do Brazil”, Impressão Regia, Lisboa, 1825 – existe uma edição fac-similar publicada pela Câmara dos Deputados).
Não por acaso, alguns historiadores, sentindo o absurdo, transformaram os 15 mil viajantes em um absurdo pouco menor: 10 mil portugueses. Porém, trata-se de uma versão do texto de O’Neill, ainda que com um fator de correção.
Para reforçar as objeções à estimativa de 15 mil, as “tralhas” que a corte transportou nos navios eram imensas: “vieram para o Brasil todas as pratas preciosíssimas cinzeladas pelos Germain; toda a formosa biblioteca organizada por Barbosa Machado, milhares de volumes reunidos com inteligência e amor, que constituiriam o núcleo da nossa primeira livraria pública; até o prelo e tipos (estes verdade é que dizem estavam ainda por desencaixotar) mandados vir de Londres para uma imprensa destinada ao serviço do Ministério de Estrangeiros e Guerra” (cf. Oliveira Lima, “D. João VI no Brasil”, ed. cit., pp. 47-48).
A biblioteca, por exemplo, era constituída por 60 mil volumes. Qualquer um que já tentou organizar uma quantidade até muito menor de livros, sabe o espaço que eles ocupam. Mas isso significava menos espaço para transportar pessoas.
Também Oliveira Lima transcreve trecho de uma carta de Junot à esposa, a duquesa de Abrantes: “Quanto aos diamantes brutos e talhados da coroa de Portugal, levaram tudo, até um pedaço de cristal que te recordarás de haver visto no gabinete de história natural de Lisboa, lapidado à imitação perfeita do famoso diamante de Portugal”.
O POVO
O objetivo desse apanhado sobre a viagem de D. João é conceber que parte – em termos de magnitude numérica – da nobreza lusitana veio com ele para o Brasil, e que parte, nos mesmos termos, ficou em Portugal, para abordar uma importante questão política e histórica.
Diante da mudança de endereço da família real – chamemos assim – como reagiu o povo português? Nosso interesse, aqui, não é a história de Portugal, exceto naquilo que foi importante para a formação dos homens da Independência, em especial, José Bonifácio.
Existe um relato, publicado no Rio de Janeiro em 1821, do próprio organizador da viagem de D. João para o Brasil, Joaquim José de Azevedo, visconde do Rio Seco:
“O muito nobre e sempre leal povo de Lisboa, não podia familiarizar-se com a ideia da saída d’El-Rei para os Domínios Ultramarinos. Encarava o futuro, e além da orfandade, que descobria, ruminava no pensamento a série de males, que ameaçavam os horizontes da sua cara Pátria. (…) Vagando tumultuariamente pelas praças, e ruas, sem acreditar mesmo, que via, desafogava em lágrimas, e imprecações à opressão dolorosa, que lhe abafava na arca do peito o coração inchado de suspirar: tudo para ele era horror; tudo mágoa; tudo saudade; e aquele nobre caráter de sofrimento, em que tanto tem realçado acima dos outros povos, quase degenerava em desesperação!” (cf. “Exposição analytica, e justificativa da conducta, e vida publica do Visconde do Rio Seco”, Imprensa Nacional, 1821, pp. 3-4)
O visconde – que, aliás, ficaria no Brasil após a volta de D. João VI a Portugal (e receberia, no primeiro reinado, o título de marquês de Jundiaí) – caracteriza a situação de Lisboa, às vésperas da partida do rei, como um “frenesi popular”.
Conta ele que, ao se aproximar do cais de Belém, foi “envolvido em uma nuvem de verdadeiros filhos, que desacordadamente lhe pediam contas do seu Chefe, do seu Príncipe, do seu Pai, como se ele fora o autor de um expediente, que tanto os flagelava! A nada se poupou para serenar a multidão; desculpas oficiosas, protestações sinceras de que ele nada influíra para tais sucessos, preces, rogos, tudo era perdido para um povo, que no seu excesso de dor o caracterizava de instrumento do seu martírio, sem se abster de o sentenciar de traidor!”.
- João saiu de Lisboa para o mar no dia 29 de novembro de 1807. No dia seguinte, as tropas de Junot – mescla mais espanhola que francesa – entraram na cidade. Poucos dias depois, o frenesi, de que falava o visconde de Rio Seco, transformou-se em revolta popular:
“Em meados de dezembro estalam motins em Lisboa ao ser hasteada a bandeira francesa no Castelo e nos navios que tinham sido deixados no Tejo. O sangue corre. A missa de Natal será proibida para evitar ajuntamentos. Ao mesmo tempo alguma agitação nas tropas portuguesas que tinham ficado no Reino leva ao decreto de Junot reduzindo o nº de regimentos – na prática quase todo o exército é licenciado. (…) As armas e os cavalos ficam ao serviço dos invasores. É imposta uma contribuição de 100 milhões de francos a Portugal” (cf. João Paulo Ferreira da Silva, “Primeira Invasão Francesa 1807-1808: A invasão de Junot e a revolta popular”, Academia das Ciências de Lisboa, 2012, p. 8).
O país todo – sobretudo o campesinato – levanta-se em insurreição contra os franceses. Estes, reagem com uma brutalidade que parece não ter limite, bem exemplificada pela proclamação do general francês Kellerman aos alentejanos: “habitantes do Alentejo: Beja tinha-se revoltado, Beja já não existe. Os seus criminosos habitantes foram passados a fio de espada e as suas casas entregues à pilhagem e ao incêndio” (op. cit., p. 10).
Porém, apesar do banho de sangue, em agosto de 1808 os franceses foram obrigados a sair – para sempre – de Lisboa.
OS NOBRES
Enquanto isso acontecia no país inteiro, como se portava a nobreza lusitana?
Pouco antes da invasão, escrevendo a um amigo, o último rebento dos Távoras, Pedro José de Almeida Portugal, 3º marquês de Alorna e 6º conde de Assumar – cujos avós foram executados no processo de 1759 e “reabilitados” após a queda do marquês de Pombal – dizia:
“Achas que os franceses comprarão as nossas fábricas, para depois as queimarem, como fizeram os ingleses? Não, não. Se nos tornarmos não somente aliados da França, mas federados com ela, fique certo que ela pensará em nós como a Inglaterra o fez a Utrecht e recentemente. E que mal pode haver de nos aproximarmos dos franceses? Se tivéssemos abraçado a sua causa na sucessão de Espanha, no princípio do século XVIII, o país seria agora mais comprido e mais largo…” (v. José Norton, “O Último Távora”, Dom Quixote, Lisboa, 2007).
Na mesma carta, Alorna diz que “nada queria com política”. Sob a ocupação francesa, tornou-se comandante da Legião Portuguesa, que integrou o exército de Napoleão na invasão da Rússia.
Não era um caso isolado na velha aristocracia lusitana – a parte que não fugiu para o Brasil, aderiu em massa a Napoleão, mesmo com o povo português em revolta, e, muitas vezes, massacrado:
“Um dos espetáculos mais tristes da invasão de Portugal foi a pusilanimidade da nobreza e a sua enternecida submissão ao conquistador. Numerosa deputação, quase toda composta de gente de alta estirpe, marchou para Bayonne, a fim de dar-lhe todas as mostras de fidelidade. Eram nomes dos mais em vista nas eminências da corte: os Marqueses de Penalva, Marialva, Valença e Abrantes, o Conde de Sabugal, o Visconde de Barbacena, o inquisidor-mor, o Bispo de Coimbra, o prior-mor da ordem de São Bento de Aviz, Dom Nuno Alvares, D. José (marquês de Abrantes), Silva Leitão, Joaquim Alberto Borges e o ex-embaixador em Paris, Dom Lourenço de Lima, filho do marquês de Ponte de Lima e que ali ficaria a servir de Secretário do Império para os negócios de Portugal.
“Não cabendo em si da honra que merecera de ser recebido pelo novo senhor, a deputação dirigia um manifesto aos seus compatriotas, onde não faltava requinte de bajulação ‘ao grande príncipe’ e ao seu ‘poderoso gênio’. À sua vista tinham compreendido o império que exercia no coração de todos. ‘Se alguma coisa pode igualar o seu gênio é a elevação da sua alma e a generosidade dos seus princípios’, exclamavam embevecidos e derretidos diante da ‘afabilidade verdadeiramente paternal’, que traduzia o amor por ele consagrado aos que tinham a fortuna de ser seus súditos. Podiam enfim conhecer-lhe os intuitos e proclamá-los; só agora sabiam a condição sob a qual tinham vivido e por isso cabia-lhes exprobar o procedimento do senhor, a quem até a véspera haviam servido: ‘o Imperador não pode consentir uma colônia inglesa no continente; não pode, nem quer deixar aportar a Portugal o Príncipe que o deixou, confiando-se na proteção de navios ingleses’. Mas também o Imperador não sabia ainda que sorte mereciam os portugueses; primeiro queria julgar se ‘eram dignos de formar uma nação’!
“Publicado esse manifesto, compôs-se em Lisboa, por ordem de Junot, outra comissão, representativa das classes; e reunidos todos à Junta dos Três Estados, assinaram uma representação ao Imperador para traduzir a sujeição do povo inteiro. Assinaram-na todos os titulares e fidalgos que se achavam na capital. Só um, o Marquês de Minas, recusou-lhe a firma.
“Era a mesma linguagem da deputação de Bayonne. Todos acolhiam-se ‘debaixo da magnânima proteção do herói do mundo, do árbitro dos reis e dos povos’. Esperava a nação ‘formar, um dia, parte da grande família de que S. M. era o pai benéfico’ e suplicava-lhe tamanha graça. Todos os portugueses achavam-se tomados de admiração, respeito e reconhecimento pelo herói e achavam-se ‘convencidos de que Portugal não podia conservar a sua independência, animar as suas energias e o caráter da sua própria dignidade, sem recorrer às benévolas disposições de S. M.’. Seriam ditosos ‘se pudessem ser considerados dignos de ser contados no número dos seus fiéis vassalos’; mas se não pudessem ‘lograr esta felicidade’, concluíam de mãos postas: ‘seja V. M. quem nos dê um príncipe da sua escolha’ ” (Tobias Monteiro, “A Elaboração da Independência”, ed. cit, pp. 188-189).
Resta dizer que todos os traidores, aderentes à Napoleão, foram perdoados pela Coroa depois que os franceses saíram do país – e os ingleses o ocuparam.
CAPITULAÇÃO
Existe, hoje ainda, uma intensa polêmica em Portugal sobre a fuga de D. João. Porque o exército de Junot que chegou a Lisboa era uma tropa mal armada, com uma única boca de fogo por artilharia, com soldados descalços e em farrapos. Mas não houve resistência ao seu avanço.
Um historiador militar português descreve assim a invasão:
“Com o exército ‘partido’, roto e faminto, Junot atingiu Castelo Branco (20 Novembro) de pilhagem em pilhagem, no limiar da subsistência. As dificuldades aumentaram na marcha para Abrantes (onde chegaram a 22 de Novembro), ‘com a difícil passagem do Zêzere, (…) a desolação da terra e a pobreza dos habitantes’, agravadas por um Inverno particularmente rigoroso e chuvoso. Mais do que uma força militar conquistadora e temida, que se apressava para ‘libertar o país da perniciosa tutela dos ingleses’, como proclamava Junot, o exército francês parecia pedir clemência e estar à beira do fim, a largos quilômetros de atingir Lisboa” (cf. Abílio Pires Lousada, “A invasão de Junot e o levantamento em armas dos camponeses de Portugal. A especificidade transmontana.”, Revista Militar, nº 2482/novembro de 2008).
Pior ainda quando esse exército chegou a Lisboa:
“Uma chegada, para não variar, debaixo de intempérie, entrando na capital portuguesa a conta gotas, com uma vanguarda a rondar os 1.500 soldados, em estado miserável e parecendo alguns deles autênticos cadáveres vivos. Ou seja, o temido ‘Exército da Gironda’ transformou-se ‘num bando de maltrapilhos disfarçado de penachos e galões de meia dúzia de generais escudados na fama de Napoleão’.”
O autor nota que esse exército somente pôde atravessar Portugal devido “sobretudo, à quase total ausência de resistência. Este foi o legado do regente Dom João (…), vincando a preocupação em evitar escusado derramamento de sangue e a depredação das localidades. Semelhante atitude mostravam as ‘pastorais’ das autoridades religiosas nacionais, sugerindo à população ‘toda a quietação e auxílio às tropas francesas’.”