“O fato de ‘faltar a verdade’ não incapacita ninguém para o oficialato”, disse Bolsonaro, em sua defesa ao STM
É curioso – mas não surpreendente – que Bolsonaro tenha sido condenado, pelo Conselho de Justificação do Exército, em janeiro de 1988, por infringir a lei (precisamente, o Estatuto dos Militares; o atual Regulamento Disciplinar do Exército somente foi estabelecido em 2002) em pontos que ele faria Pazuello infringir 33 anos depois, para quebrar a disciplina da instituição.
Já chegaremos aos dispositivos legais que Bolsonaro infringiu, quando capitão do Exército.
Antes, é preciso observar que aquilo que mais chocou os militares – dos membros do Conselho de Justificação, que o julgou e condenou à expulsão, até o ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves – foi a mentira.
“Em sua conclusão, o Conselho afirmou que Bolsonaro mentiu no depoimento da noite de 25 de outubro de 1987 [quando da publicação da matéria de ‘Veja’ sobre o plano de colocar bombas em quartéis], mentiu durante todo o processo, na sindicância e no Conselho de Justificação, e ‘revelou comportamento aético e incompatível com o pundonor militar e o decoro da classe’” (cf. Luiz Maklouf Carvalho, “O Cadete e o Capitão – A vida de Jair Bolsonaro no quartel”, Ed. Todavia, S. Paulo, 2019, p. 112).
O ministro, general Leônidas, achou esta questão absolutamente relevante, a ponto de dedicar a ela, em fevereiro de 1988, um editorial do “Noticiário do Exército”, em que cita explicitamente Bolsonaro como tendo desonrado, pela mentira, a instituição militar.
A mentira – e o modo como Bolsonaro mentiu, sistemática e cinicamente – era, para o general, algo muito mais grave do que o plano, em si, de colocar bombas em prédios militares, para desmoralizá-lo.
O editorial, publicado pelo ministro do Exército, era o seguinte (as maiúsculas estão no original):
“A VERDADE: UM SÍMBOLO DA HONRA MILITAR“
“O CADETE – futuro oficial do Exército – ao ingressar na Academia Militar das Agulhas Negras recebe uma miniatura da espada de CAXIAS declarando solenemente: ‘Recebo o sabre de CAXIAS como o próprio símbolo da honra militar’.
“Dentro dessa máxima é formado o oficial do Exército Brasileiro. É o culto aos valores morais da honestidade, da lealdade, da coragem moral e do amor à verdade.
“O Código de Honra é, pois uma das instituições mais caras, não somente ao oficial, mas, como de resto a todos os integrantes do Exército. Esse, seguramente, é o motivo pelo qual, no RDE [Regulamento Disciplinar do Exército], o FALTAR À VERDADE inicia a lista das transgressões disciplinares.
“Ao oficial cabe a responsabilidade e a obrigação de zelar pela disciplina e pela preservação dos valores morais no universo de seus subordinados. FALTAR À VERDADE, transgressão disciplinar grave, desta maneira, pode ganhar contornos ainda mais sérios quando praticada por oficial e sem circunstâncias que a atenuem.
“Neste caso se enquadram os acontecimentos em que se envolveram os Capitães Bolsonaro e Fábio [Passos].
“São oficiais que, quando Cadetes empunharam o símbolo da própria honra militar e sobre ele postaram solene juramento.
“Ao longo de suas carreiras, aprenderam e conheceram o verdadeiro significado de tal valor.
“No entanto, conscientemente, faltaram com a verdade e macularam a dignidade militar. Foi a conclusão a que chegaram os integrantes de Conselhos de Justificação ao analisarem documentos que aqueles oficiais redigiram de próprio punho.
“Tornaram-se, assim, estranhos ao meio em que vivem e sujeitos tanto à rejeição de seus pares como a serem considerados indignos para a carreira das armas.
“Na guerra, já plena de adversidades, não se pode admitir a desonra e a deslealdade que não do lado inimigo, jamais do lado amigo.
“O Ministro do Exército, responsável maior pela manutenção dos valores primeiros de nossa Instituição, acaba de homologar os pareceres dos Conselhos de Justificação que consideraram os dois Capitães como tendo faltado à verdade em circunstâncias absolutamente vazias de atenuantes e justificativas.
“Não deve ser esquecido que, inicialmente, o Ministro confiou na palavra dos dois Capitães, desde o momento em que, chamados à presença de seu Comandante, negaram e ratificaram, por escrito, declarações e atitudes a eles atribuídas por uma repórter.
“No entanto, havia a denúncia e era imprescindível tudo apurar para que dúvida não restasse.
“Lamentavelmente para a Instituição a verdade apurada modificou a primeira impressão e, consequentemente, teve que ser modificada a atitude inicial.
“O fato e tais circunstâncias tornaram os dois oficiais passíveis de serem considerados impedidos de continuarem a pertencer aos quadros de nosso Exército, se assim forem julgados pelo STM.
“O Exército tem, tradicionalmente, utilizado todos os meios legais para extirpar de suas fileiras aqueles que, deliberada e comprovadamente, desmerecem a honra militar.
“A verdade é um símbolo da honra militar” (Noticiário do Exército nº 7449, de 25 de fevereiro de 1988).
A JUSTIFICAÇÃO DA MENTIRA
O relato que consta desse editorial – a confiança inicial do ministro do Exército em Bolsonaro e as provas expostas em contrário no Conselho de Justificação – é exato, ainda que resumido.
Também é exato que o veredicto final dependia do Superior Tribunal Militar (STM), pois a legislação obrigava o ministro do Exército a enviar o resultado do Conselho para esse tribunal.
Aqui, existe algo estranho – ou, senão estranho, singular.
Bolsonaro sempre alegou publicamente que dissera a verdade, que a “Operação Beco Sem Saída” (o plano de colocar bombas “de pequena potência” em instalações militares) fora uma invenção da repórter de “Veja” – ou da própria “Veja” – e que os croquis, que as perícias apontaram como de sua autoria, jamais foram desenhados por ele.
Entretanto, na sua defesa, por escrito, ao STM, está o seguinte trecho:
“SENHORES MINISTROS:
“Mesmo admitindo que houvesse mentira, como tenta insinuar o LIBELO ACUSATÓRIO, o fato de ‘faltar a verdade’ não incapacita ninguém para o oficialato, uma vez que tal comportamento deve ser punido com fundamento no Regulamento Disciplinar do Exército, onde está previsto no elenco das transgressões disciplinares (art. 13, 1º).
“Como é óbvio a punição dada às transgressões disciplinares, opera um ressarcimento à lesão causada à estrutura militar, donde ser absurda a hipótese de pretender-se a cassação do posto e da patente, com fundamento em uma suposta mentira, atribuída ao oficial justificante” (grifos nossos).
Para que essa defesa de que a mentira “não incapacita ninguém para o oficialato”, se Bolsonaro está alegando que falou a verdade?
A hipótese mais lógica é evidente: ele sabe que não está falando a verdade – e sabia que os outros percebiam que ele não estava falando a verdade. Mas, apesar disso, quer (pelo menos queria, naquele momento) continuar como oficial do Exército. Daí, essa defesa de que ser mentiroso é compatível com ser oficial do Exército.
Pois é isto: ao contrário do general Leônidas, Bolsonaro está argumentando que a mentira é compatível com a condição de oficial do Exército – inclusive a mentira dita aos seus comandantes e companheiros de armas; inclusive em uma questão grave, como um plano para colocar bombas em quartéis; porém, não apenas isso: Bolsonaro alega que a punição de uma mentira é suficiente para “ressarcir a lesão causada à estrutura militar” (Maklouf, op. cit., pp. 124 e 212, fac-símile).
Logo, para que se preocupar com isso?
Do ponto de vista psicológico, a imaturidade aparece mais ou menos como uma fratura exposta: como no caso daqueles indivíduos que acham que a palavra “desculpe” anula qualquer mal que tenham causado.
Além desses aspectos, aqui, importa pouco o aspecto formal – e, muito mais, o aspecto moral, exatamente o centro do texto publicado pelo general Leônidas Pires Gonçalves no “Noticiário do Exército”.
Esse trecho da defesa de Bolsonaro – assinada por ele mesmo, antes de constituir advogada perante o STM – é mencionado por Maklouf, que publica, inclusive, o fac-símile do documento. No entanto, o destaque dado aqui – e a interpretação – é de responsabilidade inteiramente nossa.
O motivo é que isso revela que, já naquela época, Bolsonaro não somente não via problemas em mentir, como achava que um oficial das Forças Armadas podia mentir – desonrar a espada de Caxias, na expressão do general Leônidas – e continuar a ser um oficial.
Daí para dizer que Pazuello não foi a uma manifestação política, no dia em que subiu ao palanque com o próprio Bolsonaro, não vai nem um passo muito largo.
O fato é que o general Leônidas tinha razão: Bolsonaro é um mentiroso desabrido, comportamento incompatível com a instituição militar – e, aliás, com o governo do País.
ESQUISITAS VIÚVAS
Bolsonaro foi condenado, em 25 de janeiro de 1988, à expulsão do Exército, pelo Conselho de Justificação, por “contrariar os itens IV, VII, IX, XVI e XIX do artigo 28 e infringir o artigo 29 do Estatuto dos Militares:
“Art. 28. O sentimento do dever, o pundonor militar e o decoro da classe impõem, a cada um dos integrantes das Forças Armadas, conduta moral e profissional irrepreensíveis, com a observância dos seguintes preceitos de ética militar:
“IV – cumprir e fazer cumprir as leis, os regulamentos, as instruções e as ordens das autoridades competentes;
“VII – empregar todas as suas energias em benefício do serviço;
“IX – ser discreto em suas atitudes, maneiras e em sua linguagem escrita e falada;
“XVI – conduzir-se, mesmo fora do serviço ou quando já na inatividade, de modo que não sejam prejudicados os princípios da disciplina, do respeito e do decoro militar;
“XIX – zelar pelo bom nome das Forças Armadas e de cada um de seus integrantes, obedecendo e fazendo obedecer aos preceitos da ética militar”.
Além disso, Bolsonaro foi condenado por infração ao artigo 29, do mesmo Estatuto dos Militares:
“Art. 29. Ao militar da ativa é vedado comerciar ou tomar parte na administração ou gerência de sociedade ou dela ser sócio ou participar, exceto como acionista ou quotista, em sociedade anônima ou por quotas de responsabilidade limitada” (Maklouf, op. cit., pp. 112/113).
Pode-se dizer, portanto, que Bolsonaro fez agora, no caso Pazuello, o que não conseguiu para si quando estava dentro do Exército. Sua posterior absolvição pelo STM, como veremos, não apagou seus atos, nem tornou menos justa a condenação anterior, pelo Conselho de Justificação do Exército, ratificada pelo ministro do Exército.
Em suma, o atentado à disciplina do Exército não ficou sem resposta no caso de Bolsonaro. Trinta e três anos depois, ele vingou-se, com o caso de Pazuello.
Entretanto, quando Bolsonaro foi condenado (1988) ele já era conhecido por uma punição anterior, em 1986: os 15 dias de prisão, por ter publicado na revista “Veja” um artigo reclamando dos soldos nas Forças Armadas, especialmente, no Exército.
O artigo é bem escrito demais para que tenha saído da lavra de Bolsonaro. Como observa Maklouf, “é improvável que ele próprio o tenha escrito, ao menos em sua forma final. Ele mesmo já se referiu ao artigo como fruto de uma entrevista que tinha dado à Veja – hipótese mais razoável. Não era incomum que entrevistas fossem transformadas em artigos pela redação. Ou então algum colega mais qualificado o ajudou a redigir e ele depois o encaminhou à redação semipronto” (p. 58).
Quanto ao conteúdo, lido hoje, é menos uma reivindicação por melhores soldos do que um ataque às autoridades das Forças Armadas e ao então presidente Sarney – no momento em que a ditadura, somente no ano anterior, havia acabado, após 21 anos, com alguns inconformados, tanto civis quanto militares.
Existe um trecho particularmente significativo. Apesar de todo o artigo, a partir do título (“O salário está baixo”), ser uma reivindicação por aumento salarial, ele diz, a certa altura: “Não pleiteio aumento salarial. Reclamo – como fariam, se pudessem, meus colegas – um vencimento digno da confiança que meus superiores depositam em mim”.
A aparente contradição do texto – a declaração de que não está pleiteando exatamente aquilo que ostensivamente está pleitando – se resolve pelo período entre travessões (“como fariam, se pudessem, meus colegas”), onde é claro o objetivo do autor de colocar-se à frente dos militares como uma espécie de líder classista. Isso, para ele, é mais importante do que conquistar uma melhora no soldo dos militares.
Foi, aliás, o que ele tentou publicamente em seguida, quando passou do Exército para a política partidária, até que se tornou representante das milícias do Rio de Janeiro – e, até mesmo, depois que isso aconteceu.
A reação do Exército a esse artigo, publicado em “Veja” – a mesma revista que Bolsonaro iria maldizer a partir do ano seguinte, quando ela revelou seu plano de colocar bombas em quartéis -, foi imediata.
“Na segunda-feira seguinte, uma breve nota do Jornal do Brasil dizia tudo sobre a reação do comandante do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves: ‘O ministro considerou o artigo um ato de indisciplina inadmissível’. A ‘punição de oficial’ saiu ainda no dia 2 de setembro e foi publicada no boletim interno nº 163, do dia 3. (…) O capitão (…) foi punido pelo comandante do 8º GAC, paraquedista, coronel Ary Schittini Mesquita, ‘por ter elaborado e feito publicar em revista semanal, de tiragem nacional, sem conhecimento e autorização de seus superiores, artigo em que tece comentários sobre a política de remuneração do pessoal civil e militar da União; ter abordado aspectos da política econômico-financeira do governo fora de sua esfera de atribuições e sem possuir um nível de conhecimento global que lhe facultasse a correta análise; ter sido indiscreto na abordagem de assuntos de caráter oficial comprometendo a disciplina; ter censurado a política governamental; ter ferido a ética gerando clima de inquietação no âmbito da OM [organização militar], da GU [grandes unidades] e da força; e por ter contribuído para prejudicar o excelente conceito da tropa Paraquedista no âmbito do Exército e da nação’.
“O embasamento foi a infração a seis artigos do Regulamento Disciplinar do Exército (RDE). ‘Fica preso por 15 dias, a contar de 1 set. 86’, diz a nota do boletim interno” (Maklouf, op. cit., pp. 60/61).
Houve algumas manifestações a favor e contra Bolsonaro (por exemplo, um oficial, anonimamente, declarou: “Que os militares são mal pagos todo mundo sabe. O que não podemos admitir é a indisciplina”).
Mas o sintomático foi a manifestação de uma das viúvas da ditadura, o notório Newton Cruz, ex-chefe da Agência Central do Serviço Nacional de Informações (SNI), acusado pelo assassinato de Alexandre von Baumgarten (1982) e denunciado por envolvimento no atentado do Riocentro (1981).
Newton Cruz enviou um telegrama a Bolsonaro, então preso, se solidarizando com ele. “‘Expresso meu acordo e minha tristeza com os fatos relatados em seu artigo’, dizia o telegrama” (p. 62).
Aqui, há um episódio interessante: quem revelou ao Exército os contatos de Bolsonaro com Newton Cruz foi o futuro general Juarez Aparecido de Paula Cunha, que Bolsonaro demitiu, em 2019, da presidência dos Correios (v. HP 21/06/2019, Afastado por Bolsonaro, general Juarez Cunha é ovacionado em despedida).
Na época, Juarez Cunha era capitão.
“Ele contou ter assistido ao embarque, em uma Veraneio, de Bolsonaro e do grupo que iria jantar com Newton Cruz. E relatou o fato ao instrutor-chefe do curso de artilharia, coronel Cyrino. Bolsonaro (…) o ‘procurou em particular’ para dizer que ‘não havia gostado da atitude dele em Brasília’ e que, ‘embora tendo servido [com Juarez Cunha] por muito tempo, poderia esquecer que era seu amigo, em caso de acontecer ‘qualquer coisa’” (Maklouf, op. cit., p. 63).
Pelo visto – e considerando que o general Juarez foi, desde o governo Temer, um excelente presidente dos Correios – Bolsonaro não esqueceu o incidente.
DESLEALDADE CONFESSA
Por fim, algo que revela como Bolsonaro ficou acuado após a punição de 15 dias de prisão, devido ao artigo publicado em “Veja”.
Na sindicância do ano seguinte, sobre a Operação Beco Sem Saída, foram feitas várias perguntas sobre a publicação do artigo.
“No depoimento do dia 12 de dezembro, quando o interrogador perguntou a Bolsonaro por que, diante da resposta [ou do silêncio] do coronel Schittini [sobre o problema salarial], ele não recorreu, internamente, a outra instância hierárquica, ele disse simplesmente ter preferido a publicação. O interrogador quis saber se ele não achava que essa escolha configurava um ‘ato aético em relação à Instituição [Exército]’, e Bolsonaro respondeu ter ‘plena consciência que cometeu um ato de indisciplina’. Interrogado sobre se sabia que ‘estava sendo desleal para com a Instituição e para com seu comandante’, respondeu que havia cometido ‘uma transgressão disciplinar e que, à época, não levou em consideração que seria uma deslealdade, mas que agora acha que sim’”.
O comentário de Luiz Maklouf Carvalho é pertinente:
“Essa parte do depoimento esclarece um ponto que Bolsonaro pôs em dúvida anos depois, o de ter dito que cometera uma deslealdade com o Exército e com seu comandante direto. É verdade que ele retirou essa afirmação em depoimento posterior, mas também é verdade que a fez. Não só na frase citada, mas em outra resposta do mesmo depoimento, algumas linhas depois. Quando mais uma vez ouviu a pergunta sobre se considerava sua decisão uma ‘atitude desleal’, respondeu que ‘em primeira instância foi uma indisciplina e consideraria também uma deslealdade’” (Maklouf, op. cit., p. 63, grifos nosso).
Que Bolsonaro depois tenha retirado o que disse – e, inclusive, negado que o disse – é mais um elemento para o mesmo padrão de sempre.
CARLOS LOPES
Matérias relacionadas: