Continuação de Os atentados de Bolsonaro à disciplina e ao espírito do nosso Exército (2)
O resultado do julgamento de Bolsonaro no Superior Tribunal Militar (STM), com sua absolvição, é uma demonstração de como julgamentos “políticos” – isto é, guiados pelo interesse político contra as provas que constam dos autos – podem ser injustos.
O pretexto invocado para a absolvição é outra demonstração disso – pois era inteiramente falso, apesar de Bolsonaro repeti-lo até hoje: a história de que houve quatro perícias, que empataram, duas a duas, em atribuir a ele, ou não, a autoria dos croquis publicados por “Veja”.
Foi essa falsidade, aliás, o que levou Luiz Maklouf Carvalho a escrever “O Cadete e o Capitão – A vida de Jair Bolsonaro no quartel”. Como ele conta, na série anterior de reportagens, que fez para “O Estado de S. Paulo”, isso lhe havia escapado. Foi somente depois de um longo trabalho nos autos do processo, e nas gravações da sessão do STM que julgou Bolsonaro, que lhe ficou claro que o veredicto tivera fundamento falso.
Embora já o tenhamos mencionado várias vezes nesta série, resumamos, então, o caso que estava em julgamento. Para isso, recorreremos ao nosso próprio relato, em matéria publicada em 2018.
BECO DAS BOMBAS
“Em outubro de 1987, a revista ‘Veja’ (edição nº 999, de 27/10/1987) publicou um plano que o então capitão Jair Bolsonaro, na época cursando a Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO), apresentara a uma de suas repórteres.
“O plano, denominado ‘Operação Beco Sem Saída’, era ‘explodir bombas em várias unidades da Vila Militar, da Academia Militar das Agulhas Negras (…) e em vários quartéis’, se o reajuste dos militares, naquele ano, ficasse abaixo de 60%.
“‘Serão apenas explosões pequenas, para assustar o ministro. Só o suficiente para o presidente José Sarney entender que o Leônidas não exerce nenhum controle sobre a tropa’, disse à repórter Cássia Maria, da ‘Veja’, a esposa do capitão Fábio Passos, apelidado de ‘Xerife’, parceiro de Bolsonaro no plano.
“‘Leônidas’ era o general, e ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves.
“O plano, resumiu a repórter, era, sobretudo, ‘explodir bombas de baixa potência em banheiros da Vila Militar’. Na reportagem, ela forneceu o endereço em que se encontrara com os então militares, e com a esposa de ‘Xerife’, transcrevendo as declarações de Bolsonaro contra o ministro do Exército:
‘‘‘Temos um ministro incompetente e até racista’, disse Bolsonaro a certa altura. (…) Perguntei, então, se eles pretendiam realizar alguma operação maior nos quartéis. ‘Só a explosão de algumas espoletas’, brincou Bolsonaro. Depois, sérios, confirmaram a operação que Lígia chamara de Beco sem Saída. ‘Falamos, falamos, e eles não resolvem nada’, disseram. ‘Agora o pessoal está pensando em explorar alguns pontos sensíveis.’
“Em seguida, ‘sem o menor constrangimento, Bolsonaro deu uma detalhada explicação sobre como construir uma bomba-relógio. O explosivo seria o trinitrotolueno, o TNT, a popular dinamite. O plano dos oficiais foi feito para que não houvesse vítimas. A intenção era demonstrar a insatisfação com os salários e criar problemas para o ministro (do Exército) Leônidas Pires Gonçalves. De acordo com Bolsonaro, se algum dia o ministro do Exército resolvesse articular um golpe militar, ‘ele é que acabaria golpeado por sua própria tropa, que se recusaria a obedecê-lo. Nosso Exército é uma vergonha nacional, e o ministro está se saindo como um segundo Pinochet’.
“Quando da publicação dessa reportagem, o ministro do Exército, general Leônidas, declarou em Brasília: ‘Os dois oficiais envolvidos [Bolsonaro e o também capitão Fábio Passos], eu vou repetir isso, negaram peremptoriamente, da maneira mais veemente, por escrito, do próprio punho, qualquer veracidade daquela informação. Quando alguém desmente peremptoriamente e é um membro da minha instituição e assina embaixo, em quem eu vou acreditar? Nesses, que são os componentes da minha instituição – e eu sei quem é minha gente’.
“No entanto, Bolsonaro havia desenhado, para a repórter da ‘Veja’, um croqui, com a adutora do Guandu, que abastece de água o Rio de Janeiro, e uma carga de dinamite com um detonador elétrico instalado em um relógio.
(…)
“O ministro do Exército, então, mudou de posição e Bolsonaro foi remetido a um ‘conselho de justificação’. Por unanimidade, os três coronéis que faziam parte desse conselho o consideraram culpado (…). Escreveram os coronéis [do conselho]:
“O Justificante [Bolsonaro] mentiu durante todo o processo, quando negou a autoria dos esboços publicados na revista VEJA, como comprovam os laudos periciais. Revelou comportamento aético e incompatível com o pundonor militar e o decoro da classe, ao passar à imprensa informações sobre sua instituição” (v. HP 16/08/2018, Terrorismo de baixa potência).
Somente para maior precisão: na verdade, a repórter de “Veja” apresentou dois croquis da autoria de Bolsonaro; além daquele da adutora do Guandu, havia outro, em que era indicada, para a repórter, a casa de outro militar.
COMEÇO DAS PERÍCIAS
Não havia motivo para que a repórter Cássia Maria Rodrigues mentisse sobre a “Operação Beco Sem Saída”.
Pelo contrário, Bolsonaro, como ficou demonstrado na sindicância e no Conselho de Justificação, era fonte da repórter – e da “Veja” – dentro do Exército.
A decisão de publicar a história das bombas em quartéis foi explicada pela revista e pela repórter com um argumento irretorquível: era impossível manter “sigilo jornalístico” diante de atos de terrorismo, ainda que de “baixa potência”.
Tanto a direção editorial da “Veja” (José Roberto Guzzo e Elio Gaspari), em São Paulo, quanto a direção da sucursal do Rio (Alessandro Porro e Ali Kamel), concordaram em que esconder um plano para explosão de bombas estava além (ou aquém) de qualquer jornalismo.
Daí, a publicação da primeira matéria, desmentida por Bolsonaro – e pelo então ainda confiante general Leônidas.
A publicação de dois croquis, do “próprio punho” de Bolsonaro, na edição seguinte da revista, desmontou a negativa do então capitão.
O próprio Exército logo chegou à conclusão de que o mentiroso era Bolsonaro.
Para isso, as perícias foram fundamentais.
Maklouf nota em seu livro que jamais existiram quatro perícias, mas três, duas das quais apontaram Bolsonaro como autor dos croquis publicados por “Veja”.
A rigor, é possível, inclusive, dizer que só existiram duas perícias, todas duas indicando, com certeza mais do que razoável, que a mão que desenhara os croquis, inclusive as letras e palavras que estão neles, era de Bolsonaro.
Por quê?
Porque a primeira perícia, realizada ainda na fase de sindicância do caso – antes, portanto, do Conselho de Justificação – não foi uma perícia sobre os originais, mas sobre cópias xerox das páginas de “Veja”.
No relato de Maklouf:
“Foi dele [do tenente-coronel Ronaldo Cardoso, chefe da sindicância] o primeiro pedido de perícia (exame grafotécnico) sobre os dois croquis, ao comando do 1º BPE [Batalhão de Polícia do Exército], seção de investigações criminais. Além das cópias xerográficas dos desenhos publicados – páginas 56 e 57 da revista Veja de 4 de novembro -, mandou, para comparação, duas provas manuscritas do capitão-aluno Jair Bolsonaro, uma com sete folhas, outra com dezessete.
“O laudo saiu no dia 6 de novembro, assinado por dois peritos: o capitão de infantaria José Maurício Rodrigues Garcia e o primeiro-tenente de infantaria Newton Prado Veras Filho. Na conclusão, ambos afirmaram que a precariedade das cópias xerográficas não permitia que se apontassem ‘responsabilidades sobre punhos gráficos’. Ao remeter ao coronel Cardoso essa primeira perícia, o comandante do 1º BPE, coronel de infantaria José Plínio Monteiro, informou que, ‘para uma análise mais aprofundada da questão, seria necessário ter-se em mãos os originais dos documentos publicados na revista, para que os trabalhos de polícia científica ficassem apoiados em provas confiáveis’.
“Em seu parecer de conclusão dos trabalhos, emitido em 13 de novembro, o coronel Ronaldo Cardoso registrou: ‘O laudo pericial referente à comparação gráfica não foi conclusivo sobre a autoria dos croquis, mas este sindicante, na parte conclusiva da presente apuração, aduzirá outras considerações a respeito’.
“Quais sejam: ‘Não poderia deixar de ressaltar a grande semelhança que existe entre as letras ‘a’, ‘o’ e ‘p’ contidas no croqui publicado pela revista Veja, com as mesmas letras assinaladas em provas feitas de próprio punho do capitão Bolsonaro. A perícia não foi bastante para apontar a semelhança apontada, permanecendo, pois, a dúvida’” (cf. Luiz Maklouf Carvalho, “O Cadete e o Capitão – A vida de Jair Bolsonaro no quartel”, Todavia, 2019, pp. 88/89).
O SEGUNDO LAUDO
A primeira perícia, portanto, não era uma verdadeira perícia, no sentido de que não foi feita sobre os originais, portanto, apesar de todas as suspeitas – aliás, bastante procedentes – do coronel Ronaldo Cardoso, não podia ser conclusiva.
Mas é na segunda perícia que Bolsonaro tentou amarrar sua alegação de que existiram “quatro perícias”, ao invés de três (como aponta Maklouf) ou duas (como apontamos acima, ao destacar o caráter impróprio do primeiro exame pericial).
O motivo é que o laudo da segunda perícia foi retificado por seus autores, após o recebimento de material suplementar.
“A segunda perícia grafotécnica dos croquis e manuscritos do capitão Bolsonaro foi solicitada, em 17 de dezembro de 1987, ao comandante do 1º BPE, coronel José Plínio Monteiro, o mesmo da primeira perícia e que pedira os originais dos croquis ‘para uma análise mais aprofundada’, agora em mãos. Esse segundo exame foi realizado pela mesma seção de Investigações Criminais e ficou pronto onze dias depois, em 28 de dezembro.
“(…) Apesar de encontrarem semelhança entre alguns caracteres gráficos dos croquis e dos manuscritos de Bolsonaro, os dois peritos afirmaram que isso não implicava ‘responsabilidade gráfica’.
(…)
“… em 25 de janeiro, o comandante do 1º BPE, o coronel José Plínio Monteiro, apresentou, a pedido do coronel Bechara Couto, uma ‘complementação de laudo pericial’. Tratava-se de um adendo à segunda perícia, a de nº 58/87, assinada pelos peritos do Exército Newton Prado Veras Filho e Horácio Nelson Mendonça. (…) o motivo que justificou o pedido de complementação foi o novo material colhido do punho de Bolsonaro na EsAO para a terceira perícia, feita pela Polícia Federal.
“O complemento do laudo pericial 58/87 concluiu que ‘ante a comparação gráfica realizada entre os padrões gráficos coletados e a peça motivo (croquis), são os peritos acordes em que os caracteres gráficos lançados nos croquis e nas peças padrão, promanaram de um mesmo punho gráfico’. Ou seja: o laudo 58/87 da segunda perícia do Exército, inicialmente inconclusivo, passou, depois da complementação, a apontar a autoria de Bolsonaro” (cf. Maklouf, op. cit., pp. 109-111, grifos nosso).
PERÍCIA FINAL
Em palavras simples: a segunda perícia apontou a autoria de Bolsonaro. O fato do primeiro laudo desta mesma perícia não ter feito isso, não altera o resultado final, pois a este se chegou após os peritos terem acesso a novo material, que não estava disponível quando elaboraram o laudo inicial.
O truque de Bolsonaro – ou de quem o tenha orientado – é o de considerar o laudo inicial e o laudo final da segunda perícia como duas perícias separadas e independentes.
Assim, conseguiu-se chegar ao número de quatro perícias, número mentiroso por qualquer critério de contagem.
A partir desse número é que Bolsonaro propalou que as perícias haviam empatado, duas contra ele e duas a favor dele.
Mas esse empate jamais existiu.
Até porque a terceira perícia, realizada pela Polícia Federal, não deixou margem à dúvida.
“No dia 4 de janeiro de 1988, uma semana depois de ter saído o resultado da segunda perícia, o coronel Bechara Couto [chefe do Conselho de Justificação] pediu outra, a terceira, dessa vez à Polícia Federal do Rio de Janeiro. O superintendente que recebeu o pedido, acompanhado dos croquis e manuscritos recém-colhidos do capitão, foi o delegado Fábio Calheiros Wanderley. Nos autos, o tenente-coronel e escrivão Canto Barros esclareceu que três folhas de material padrão gráfico do punho do capitão foram colhidas no auditório da Divisão de Ensino da EsAO, onde funcionava o Conselho, ‘na presença de seus membros’.
“Os peritos foram Renato Haddad Aquino, do Instituto Nacional de Criminalística, e Ivan Machado de Campos, da Polícia Federal. O laudo ‘documentoscópico (grafotécnico)’, como foi classificado, chegou ao Conselho de Justificação oito dias depois, em 12 de janeiro. Dizia: “SIM, não restam dúvidas ao ser afirmado que os manuscritos no doc. 1 [os croquis, ou esboços], questionado, promanaram do punho gráfico do capitão Jair Messias Bolsonaro, fornecedor do material gráfico padrão já identificado no corpo do presente laudo. Tal afirmativa é oriunda das coincidências e características encontradas no confronto efetuado, entre os documentos examinados, que permitiram a determinação de autoria” (cf. Maklouf, op. cit., p. 110).
MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR
Então, diante de tais provas, como Bolsonaro foi absolvido (por 9 votos a 4) no STM?
Sua culpa fora constatada, até então, pela sindicância da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO), pelo Conselho de Justificação e pelo ministro do Exército.
Por que um capitão de medíocre carreira – e com folha alterada por um ato de indisciplina como o artigo publicado na “Veja” em 1986 – mereceu tanta consideração de alguns ministros do STM?
A resposta – que Maklouf não oferece; é de nossa inteira responsabilidade – é que uma parte dos ministros (aliás, a maior parte) não estavam satisfeitos com o papel do general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército de Tancredo e Sarney, ao garantir a transição para a democracia.
É verdade que essa insatisfação era um mal-estar, não uma rebelião. Mas esse mal-estar encontrou, no caso Bolsonaro, uma oportunidade para se manifestar.
Por exemplo, na reunião secreta do STM que julgou Bolsonaro, um dos ministros que o absolveram, diz: “uma das virtudes do ministro Leônidas foi unir o Exército; mas unir contra ele” (p. 234).
Há em seguida um silêncio que parece constrangedor, até porque o oficial que disse a frase não pertence ao Exército. Mas ele continua, declarando-se “revolucionário de 64, com noventa dias de cadeia e desacato a superiores, porque os superiores não tinham moral”. E, logo em seguida: “E para mim João Goulart não é saudoso”.
Tratava-se de um ataque a outro ministro do STM, José Luiz Clerot, que fora membro do governo João Goulart, e, nomeado para o tribunal pelo presidente Sarney, votara pela condenação de Bolsonaro.
Como observa Maklouf, tanto o relatório, a favor de Bolsonaro, de autoria do ministro Sérgio de Ary Pires, quanto os votos dos que o acompanharam, estavam contra a prova dos autos, em especial, as perícias.
Ao invés, o posicionamento do Ministério Público Militar (MPM) e dos quatro ministros que condenaram Bolsonaro, em especial o ministro José Luiz Clerot, são substanciais.
Disse – ou, melhor, escreveu – o representante do MPM, subprocurador-geral Milton Menezes da Costa Filho:
“O Justificante [Bolsonaro] não conseguiu se justificar. (…) Os autos retratam conduta que, inquestionavelmente, o coloca na inconfortável posição de incompatibilidade para o oficialato.
“O plano codinominado (!) ‘Beco sem Saída’ [exclamação do subprocurador] objetivando explodir bombas em unidades da Vila Militar, da Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende, no interior do Rio de Janeiro e em vários quartéis, sob pretexto de chamar a atenção para os baixos vencimentos dos militares, se verídico, ou quixotesco, foi, realmente, descrito pelo Justificante à então repórter da revista Veja, Cassia Maria.
“… o campo ético-moral foi eficazmente ferido com a conduta, por si só, do Justificante. Acaso o pundonor militar não foi deveras ferido pelo Justificante, ao elaborar, de próprio punho, declaração publicamente desmentida, pondo em posição desconfortável o próprio titular da Pasta do Exército, que nela acreditou?”, indagou o subprocurador. “Como se apresentar um Oficial perante seus subordinados, arrastando um passado com um episódio tornado público, tão comprometedor?
“Ao final, recomendou que o ‘Egrégio Colegiado Castrense’, como chamou o STM, considerasse o capitão Jair Bolsonaro culpado, “declarando a sua incompatibilidade com o oficialato e consequente perda do posto e da patente, tudo nos termos do art. 16, inciso I, da lei 5836/72” (cf. Maklouf, op. cit., 125/126).
RELATÓRIO
O voto do relator, ministro Sérgio de Ary Pires, é fundamentalmente uma inversão da conclusão do Conselho de Justificação.
Onde o Conselho de Justificação considera que Bolsonaro mentiu, o relator considera que foi a repórter de “Veja” e a própria “Veja” que mentiu.
Para isso, considera irregulares os procedimentos do Conselho de Justificação e explora contradições secundárias nos depoimentos (cf. Maklouf, op. cit., 222-226).
Em alguns momentos, ele falseia a reportagem de “Veja”:
“… o voto citou que o motorista de Veja, Francisco Carlos Sodré, não reconheceu Lígia como a mulher que acompanhou Cassia Maria a Marechal Hermes para tirar cópia de um documento. ‘Verifica-se, portanto’, disse o relator, ‘que não tem a menor consistência a ‘prova documental’ citada por Cassia Maria, na reportagem, ficando perfeitamente caracterizada uma mentira da parte da mencionada jornalista.’
“Observe-se que a reportagem de Veja não dizia o que afirma o relator. O trecho, que não estava assinado pela repórter, trazia um desmentido da afirmação de que ela nunca tinha estado na casa do capitão Fábio Passos, como este afirmara. ‘Ele também mentiu: a repórter Cassia Maria esteve por duas vezes em sua casa’, dizia Veja. ‘Numa dessas ocasiões, o capitão [Fábio] deu-lhe um documento e ela, em companhia do motorista de Veja e de uma pessoa da confiança pessoal do capitão, que viajou no banco da frente, foi a uma loja de xerocópias para reproduzir o papel, regressando ao edifício’. Veja, portanto, nem mencionava Lígia (cf. Maklouf, op. cit., p. 224, grifos nossos).
Porém, a questão mais incômoda, para absolver Bolsonaro, eram os laudos periciais. Nessa questão, o ministro Sérgio de Ary Pires seguiu inteiramente a defesa de Bolsonaro, que embaralhava os laudos, falando em quatro laudos, quando existiam apenas três – e somente duas perícias conclusivas, ambas apontando Bolsonaro como autor dos croquis apresentados pela repórter de “Veja”.
“Já se vê aqui, incorporada por inteiro, a deturpação inoculada pela autodefesa de Jair Bolsonaro, que o relator apenas reforçou: tomou como quatro o que eram três — ignorando que um dos laudos era retificador” (cf. Maklouf, op. cit., p. 224/225, grifo nosso).
E, mais adiante:
“Admitindo nova hipótese sobre os laudos e selando a ardilosa versão do empate, o relator disse: ‘Mesmo admitindo-se um valor absoluto aos dois laudos, que atribuem a autoria dos croquis ao justificante e que são contestados por dois outros laudos anteriores, estaria provada apenas a autoria dos croquis, não se justificando a ilação feita pelo Conselho de que o justificante mentiu durante todo o processo e que a versão da jornalista é verdadeira e comprovada por outras testemunhas, o que é frontal e repetidamente desmentido pela prova dos autos.’
“A distorção da verdade fica cristalina na frase ‘e que são contestados por dois outros laudos anteriores’. Como se viu, um deles foi retificado, reconhecendo, depois disso, a autoria ao capitão.
“Nas conclusões, o ministro Sérgio de Ary Pires voltou ao empate inexistente dos exames: ‘Finalmente, considerando as profundas contradições existentes nos quatro Exames Grafotécnicos constantes dos autos, dos quais dois não apontam a autoria dos croquis, enquanto dois outros atribuem-na ao justificante (…) este Tribunal não encontrou, nos autos, elementos de convicção bastantes, para imputar ao justificante, sem sombra de dúvida, a autoria dos citados croquis. ‘IN DUBIO PRO REO’. O CPPM [Código de Processo Penal Militar] estabelece, em seu artigo 326, que ‘o juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo no todo ou em parte’, sábio princípio que, pelas razões acima apontadas, aplica-se, integralmente, in casu’ (cf. Maklouf, op. cit., p. 225/226, grifo nosso).
É interessante que o ministro Sérgio de Ary Pires haja recorrido ao princípio da dúvida (in dubio pro reo – em dúvida, a favor do réu) para absolver Bolsonaro, ao mesmo tempo que, para o mesmo fim, recorria ao direito do juiz de desprezar o laudo de perícia em seu julgamento.
Embora, como observa Maklouf, este último recurso, “é uma livre interpretação do artigo 326”. Pois o relator não desprezou um laudo “materialmente existente”, como se refere a lei, mas um “laudo retificado”.
EXCITAÇÃO TERRORISTA
Para uma ideia do conjunto do processo, recomendamos ao leitor, obviamente, que leia a obra de Luiz Maklouf Carvalho.
Aqui, encerraremos com algumas observações do então ministro José Luiz Clerot, no julgamento de Bolsonaro no STM.
“… cravou: ‘Divirjo ipsis, virgulis do relator’.
“’Me recuso a acreditar que Veja publicasse irresponsavelmente matéria desse jaez’, declarou o ministro togado. ‘Eu me recuso a admitir que essa jornalista é uma irresponsável. É inaceitável. Não estou julgando Veja nem a jornalista. Muito menos que é perigosa‘, acrescentou, em mais um contraponto direto ao que dissera o general Sérgio de Ary Pires. ‘Perigosa por quê?’, perguntou. ‘Porque assumiu tamanha responsabilidade? Esses oficiais [Bolsonaro e Fábio Passos] mentiram por escrito e levaram o ministro a defendê-los e depois a engolir um sapo desse tamanho’.
“… Clerot disse que era preciso ‘ver as regras da probabilidade. É verossímil que essa moça inventou essa história para que Veja vendesse mais? O que é que este Bolsonaro tanto se encontrava com uma jovem jornalista? Ia trocar figurinha? Ou a [ficava] municiando? Este capitão, na sua imaturidade, que não sabia lidar com a imprensa, confiou à imprensa o seu plano macabro’.
“Aos croquis, então: ‘Ainda que se queira impugnar os laudos existentes no processo não se pode negar que há pelo menos um fumus boni [fumus boni iuris, ou fumaça do bom direito] para afirmar que as letras e aqueles croquis são do punho [de Bolsonaro]’, disse o ministro Clerot (…).
(…)
“’Então são dois laudos‘, afirmou, passando a ler o laudo de complementação, confirmatório da autoria. Clerot citou o artigo 326 do CPPM, com o qual o relator havia embasado o in dubio pro reo: ‘O juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte’. E disse: ‘Ele pode até abandoná-los, mas antes de abandoná-los tem primeiro que se render às evidências, sob pena de não estar atento à prova dos autos. Se existem laudos discordantes, e vem um terceiro, do Instituto de Criminalística, mais especializado, afirmando ou dissipando as dúvidas existentes, não há por que não se acatar este terceiro e último laudo. Essa é que é a realidade’.
“Sobre a operação Beco sem Saída, (…) enunciou: ‘Podia não servir para ser executado, mas para provocar aquilo que se denominou a chamada guerrilha urbana ou guerra psicológica adversa, a animosidade‘”. (cf. Maklouf, op. cit., pp. 231-233, grifos nossos).
Duas observações são necessárias.
A primeira é que Clerot não se engana sobre os laudos. Para ele, era claro que não havia o “empate” entre os laudos, a que se referira Bolsonaro – e, seguindo Bolsonaro, o relator no STM, Sérgio de Ary Pires.
Ou seja, esse “empate” foi aceito, no STM, pelos nove ministros que absolveram Bolsonaro, porque eles quiseram aceitá-lo – ou não se importaram de aceitá-lo – para absolver Bolsonaro.
A segunda observação, mais importante, é que a “guerra psicológica adversa, a animosidade” – a excitação pelo terrorismo, inclusive verbal -, a que se referiu o ministro Clerot, foi a constante de Bolsonaro nos 30 anos seguintes – e até hoje.
A “Operação Beco Sem Saída” foi apenas o primeiro passo de Bolsonaro, nesse ramo, que veio a público.
Tão grave que, mesmo depois de absolvido pelo STM, meramente por razões políticas – era evidente a intenção de confrontar o então ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves -, Bolsonaro foi obrigado a sair da ativa do Exército.
CARLOS LOPES
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ao Exército devemos a criação desse déspota, golpista, genocida e esquizofrenico, que com a ajuda de 57 milhões iguais a ele, jogaram o Brasil no esgoto, espalhando o caos e destruindo VALORES.
Não exatamente, leitor. O Exército, na prática, colocou Bolsonaro para fora. Foram os fatores políticos, fora do Exército, que nos colocaram, e ao próprio Exército, nessa situação. Quanto aos 57 milhões, não são iguais a ele. Se não ganharmos alguns desses milhões – e a verdade é que estamos ganhando – para ser contra Bolsonaro, como vamos sair dessa?