A prefeitura da cidade belga de Antuérpia removeu, no dia 9 de junho, a estátua do rei Leopoldo II, que foi responsável pelo assassinato de cerca de 10 milhões de pessoas no Congo – há quem projete até 15 milhões -, entre 1865 e 1908 na então possessão belga, oficialmente uma propriedade particular o rei.
A retirada da estátua aconteceu em meio a manifestações contra o racismo que reúnem milhares de pessoas nas principais cidades da Bélgica, como parte dos protestos que ocorrem por todo o mundo após o brutal assassinato do negro norte-americano George Floyd. Entre as reivindicações locais está a da remoção de todas as estátuas do execrado monarca espalhadas pelo país. Nesse contexto, o historiador belga Éric Toussaint¹, através do Comitê para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM)², do qual é porta-voz, digulgou, no dia 17 de junho, artigo sobre a dominação do Congo e as atrocidades desta colonização, que reproduzimos a seguir
ERIC TOUSSAINT
Graças às mobilizações Black Lives Matters que tiveram lugar em escala internacional contra o racismo em geral, e contra os negros em particular, cada vez mais pessoas buscam a verdade sobre o passado tenebroso das potências coloniais e a continuidade neocolonial nos tempos presentes. Estão se retirando algumas estátuas de personagens emblemáticos do colonialismo europeu ou que foram objeto de denúncias. E acontece o mesmo com estátuas de personagens que nos Estados Unidos simbolizam a escravidão e o racismo. O CADTM se congratula com todas as iniciativas e todas as ações que têm como objetivo denunciar os crimes coloniais, que buscam estabelecer a verdade sobre as atrocidades passadas, que põem em evidencia os instrumentos do neocolonialismo e todas as formas de resistência desde o passado até hoje.
Perspectiva histórica da colonização do Congo
No fim do século XVIII (1776), ou seja, mais de um século antes do começo da colonização do Congo, as 13 colônias britânicas da América do Norte, e depois de uma guerra de independência, se libertaram da coroa. A Grã-Bretanha reforçava sua influência em outra parte do planeta, impondo a colonização da Ásia do Sul, da Índia em um sentido amplo, desde fins do século XVIII até meados do século XX. Por sua parte, os holandeses reforçavam sua dominação sobre a Indonésia. Aqueles que lutavam pela libertação, pela supressão das colônias, não eram só descendentes de europeus —recentemente imigrados— como os que obtiveram a independência das 13 colônias britânicas da América do Norte para fundar de forma conjunta, em 1776, os Estados Unidos de América. Um povo extremadamente valente, um povo negro descendente direto de africanos, o povo do Haiti, conquistou também sua independência em 1804 contra a dominação francesa. Durante os vinte anos seguintes, se deflagraram as guerras da independência na América Latina. Foram dirigidas por pessoas como Simón Bolívar que derrotou, em muitas batalhas, as tropas espanholas que dominavam uma parte da América Latina.
Menciono isto porque, no fim do século XVIII e até começos do século XIX, quando muitas nações conquistavam sua independência em todo o continente americano, a África subsaariana ainda não estava totalmente colonizada pelos europeus. Isso não lhe impediu de sofrer os efeitos da colonização de outros continentes pela via do comércio triangular e o tráfico de negros. Dezenas de milhões de africanos foram feitos escravos e transportados pela força às Américas entre o século XVII e meados do século XIX.
Foi nos últimos 25 anos do século XIX que a África subsaariana caiu completamente sob o jugo colonial dos países europeus: Grã-Bretanha, França, Portugal, Alemanha, Bélgica… principalmente.
Primeiro, Leopoldo II pensava colonizar uma parte da Argentina, depois ele se dirigiu às Filipinas e pediu preço aos espanhóis. Mas era muito elevado e não o podia pagar. E, finalmente, ele fixou suas vistas na imensa bacia do rio Congo. Para consegui-lo, utilizaria a astúcia para não entrar em conflito com as grandes potências europeias que já estavam ali. Essas importantes potências coloniais tinham os meios para reduzir a nada as ambições coloniais da Bélgica, que chegava tarde para reclamar sua parte do bolo.
Antes de se tornar rei, Leopoldo II tinha percorrido uma parte importante do mundo colonial: Ceilão, Índia, Birmânia, Indonésia. E durante suas viagens ficou admirado pelos métodos dos holandeses em Java, na Indonésia. Java era para ele o modelo a seguir e é o que aplicará durante sua colonização no Congo. O modelo javanês se baseava na mão-de-obra forçada.
No século XIX, os argumentos utilizados pelos europeus para colonizar a África e a Ásia eram, principalmente, os seguintes: Cristianizar os pagãos, levar a todo o mundo os benefícios do livre comércio (e isso permanece muito atual…) e, no caso da África subsaariana, acabar com o tráfico de escravos pelos Árabes. E, a partir de 1865, quando Leopoldo II ascende ao trono, ele empreende diversas iniciativas para dotar a Bélgica de uma colônia.
Por exemplo, em 1876, ele organizou no palácio real uma conferência geográfica internacional. Segundo ele, o objetivo era – em coerência com relação ao pretexto utilizado à época –: “Abrir à civilização a única parte do nosso globo em que ela ainda não penetrou, ultrapassar as trevas que envolvem populações inteiras, é, eu ouso dizer, uma cruzada digna desse século de progresso (…). Me pareceu que a Bélgica, um Estado central e neutro, seria um bom terreno para tal reunião. (…) Tenho necessidade de vos dizer que convidando-os à Bruxelas não estou guiado por visões egoístas? Não, senhores, se a Bélgica é pequena, ela é feliz e está satisfeita de sua sorte; eu não tenho outra ambição do que bem servi-la”. E explica que com essa sociedade internacional de geografia para onde havia convocado uma série de grandes exploradores, tratar-se-ia de construir estradas em direção ao interior, hospitais, centros científicos e pacificadores que constituíram outros meios para abolir a escravidão, estabelecer a concórdia entre os chefes, procurar árbitros justos e desinteressados. Esse era o discurso oficial. Pouco tempo depois contrata o explorador Stanley que tinha acabado de atravessar a África de leste a oeste seguindo o rio Congo até sua foz.
A conferência de Berlim de 1885 e a criação do Estado Livre do Congo
Em 1885, depois de várias manobras diplomáticas, Leopoldo II obteve em Berlim a autorização de criar um Estado Livre no Congo. O chanceler Bismarck disse no encerramento da conferência em Berlim, em fevereiro de 1885: “O novo Estado do Congo está destinado a ser um dos mais importantes executantes da obra que pensamos levar a cabo, e expresso meus melhores desejos para seu desenvolvimento rápido e para a realização dos nobres propósitos de seu ilustre criador”.
Paralelamente a seus discursos nas grandes conferências, Leopoldo II tem outro tipo de intenção: os documentos que envia às pessoas nas quais delegou a tarefa de valorizar o Estado Livre do Congo, ou as declarações que faz à imprensa. Por exemplo, em 11 de dezembro de 1906, aparece uma entrevista no jornal de Nova Iorque Publisher’s Press em que ele diz: “Quando se trata de uma raça composta por canibais desde há milhares de anos, é necessário utilizar os métodos que melhor sacudirão sua preguiça e os farão compreender o aspecto saudável do trabalho”.
Desde o momento em que, em 1885, Leopoldo II pôde criar do zero o Estado Livre do Congo, que era seu Estado privado, ele promulgou um primeiro decreto fundamental: todas as terras consideradas de ninguém (terra nullius) se tornam propriedade do Estado. Assim é como ele se apropriou das terras, embora o objetivo do Estado Livre do Congo era permitir aos chefes congoleses se entenderem e se defenderem dos árabes que os escravizavam. Na realidade, ele acertou uma série de tratados, através do explorador Stanley, com chefes tribais do Congo, que transferiram a propriedade das terras de suas aldeias ou de seus domínios ao chefe do Estado Livre do Congo, Leopoldo II. As demais terras, um imenso território, foram declaradas ociosas e se tornaram também propriedade do Estado Livre do Congo.
O modelo javanês aplicado pela Bélgica de Leopoldo II no Congo
Foi então que Leopoldo II começou a aplicar o modelo de exploração holandesa de Java: ele explora sistematicamente a população que tinha conseguido dominar pela criação da Força Pública, exigindo dessa população que colhesse látex (borracha), presas de elefantes, e que forneça os alimentos necessários às necessidades dos colonos. O rei se outorgou o monopólio sobre quase todas as atividades e riquezas do Congo. Seu modelo implicava a exploração máxima das riquezas naturais do Congo por meios que não têm nada a ver com os métodos diretamente modernos de produção industrial. Tratava-se de forçar a população congolesa a extrair uma quota obrigatória de borracha por cabeça, a caçar para trazer de volta enormes quantidades de presas de elefantes. Leopoldo II mantinha uma força colonial dotada de um exército composto principalmente por congoleses e comandado inteiramente por belgas, para impor o respeito à ordem colonial e o respeito às obrigações de rendimento no trabalho. Ele utilizara sistematicamente métodos de absoluta brutalidade. Para forçar os chefes das cidades e os homens a partirem à colheita, aprisionava suas mulheres em campos de concentração onde elas eram regularmente submetidas a maus-tratos sexuais por parte dos colonos ou dos congoleses da Força Pública. Se não eram obtidos os resultados e as quantidades obrigatórias, os matavam como exemplo, ou eram mutilados. Fotos da época mostram pessoas vítimas dessas mutilações, que possuíam um significado muito preciso. Os soldados da Força Pública precisavam dar a prova de que eles tinham utilizado cada cartucho de maneira correta: eles tinham, portanto, que trazer de volta uma mão cortada para provar que o cartucho tinha servido para matar um congolês.
A visão política de Leopoldo II, rei dos belgas e representante dos interesses da Bélgica, correspondia a um modo de colonização extremamente brutal. Ele dizia sobre o modelo de colonização: “Argumentar que tudo o que os brancos produzirão no país deve ser gasto apenas na África e para o benefício dos negros é uma verdadeira heresia, uma injustiça e um erro que, se pudesse traduzir-se em fatos, deteria a marcha da civilização no Congo. O Estado, que só pôde se tornar um Estado com a participação ativa dos brancos, deve ser útil para ambas as raças e dar a cada uma sua justa parte.” Claramente, a parte que cabia ao congolês era o trabalho forçado, o chicote e as mãos decepadas.
Sobre a exploração selvagem da borracha, vou dar apenas alguns números: a exploração da borracha começa em 1893 e está relacionada à demanda por pneus advinda da nascente indústria automobilística e ao desenvolvimento da bicicleta. Produziram-se 33 mil quilos de borracha em 1895, 50 mil quilos em 1896, 278 mil quilos em 1897 e 508 mil quilos em 1898… Essas colheitas absolutamente enormes renderam, portanto, lucros extraordinários para as empresas privadas que Leopoldo II criou, da qual ele era o principal acionista, a fim de administrar os negócios do Estado Livre do Congo. O preço de um quilo de borracha na foz do rio Congo era 60 vezes inferior ao preço de venda na Bélgica. E isso nos lembra questões muito atuais como os diamantes ou o coltan “coletados” hoje.
A campanha internacional contra os crimes de Leopoldo II no Congo
Essa política finalmente deu origem a uma imensa campanha internacional contra os crimes perpetrados pelo regime leopoldino. Foram os pastores negros dos Estados Unidos que se rebelaram contra esse estado de coisas, depois veio o famoso Morel³. Este trabalhava para uma empresa britânica em Liverpool e viajava regularmente para Antuérpia. Ele fez a seguinte observação: enquanto Leopoldo II afirmava que a Bélgica fazia intercâmbios comerciais com o Estado Livre do Congo, os barcos transportavam desde o Congo presas de elefante, toneladas de borracha, e partiam apenas com armas, essencialmente, e comida para a força colonial. Morel pensou que se tratava de um comércio muito estranho. Os belgas da época que apoiavam Leopoldo II nunca reconheceram essa realidade. Eles alegaram que Morel representava os interesses do imperialismo britânico e criticava os belgas apenas para ocupar o seu lugar. Paul Janson, que empresta seu nome ao principal auditório da Universidade Livre de Bruxelas, disse: “Eu nunca criticarei a obra de Leopoldo II [ele era um membro da Câmara], pois aqueles que o criticam, especialmente os britânicos, apenas o fazem por cobiçar sua posição”.
No entanto, os críticos ganharam força com livros como o de Joseph Conrad, Coração das Trevas e O crime do Congo, um livro pouco conhecido de Arthur Conan Doyle, o escritor que inventou Sherlock Holmes. Uma campanha internacional contra a exploração do Congo resultou em manifestações nos Estados Unidos e também na Grã-Bretanha e acabou produzindo efeitos. Leopoldo II foi obrigado a criar uma comissão internacional de inquérito em 1904, que foi para o Congo para colher testemunhos. Estes eram irrefutáveis. O conjunto dos manuscritos pode ser encontrado nos arquivos do Estado belga.
Durante os últimos vinte anos, muitas conferências foram dadas, livros foram publicados para denunciar o tipo de Estado que Leopoldo II, rei dos belgas, havia estabelecido no Congo. E atualmente se acrescenta uma literatura vasta e séria aos documentos da época.
Aprendemos, por exemplo, que a parcela do orçamento que o Estado Livre do Congo destinava para gastos militares oscilava, de acordo com o ano, entre 38% e 49% do total das despesas. Isso fala da dimensão da importância do chicote e dos fuzis modernos para estabelecer uma ditadura, que se valia do uso sistemático da brutalidade e dos assassinatos.
Podemos considerar, sem risco de errar, que o rei dos belgas e o Estado Livre do Congo, que ele liderou com o consentimento do governo belga e do Parlamento da época, foram responsáveis por “crimes de lesa humanidade” cometidos de maneira deliberada. Esses crimes não constituíam simples atropelos, eram o resultado direto do tipo de exploração a que o povo congolês estava submetido. Alguns autores, e não os menores, falaram de genocídio. Proponho que não se abra um debate que se concentre nessa questão porque é difícil estabelecer números exatos. Alguns autores sérios estimam que a população congolesa em 1885 alcançava os 20 milhões e que no momento em que Leopoldo II teve que transmitir à Bélgica em 1908 seu Congo para formar o Congo Belga, restavam 10 milhões de congoleses. Estas são estimativas de autores sérios, mas difíceis de provar, pois não havia censo populacional.
Se em lugar de milhões de vítimas, o número fosse de dezenas de milhares ou de centenas de milhares de vítimas inocentes da atividade colonial de Leopoldo II, continuaria sendo um crime contra a humanidade e é fundamental restaurar a verdade histórica. Os cidadãos, notadamente os jovens, que entram no salão da Câmara Municipal da cidade de Liège, ou vão da Rue du Trône até à Place Royale em Bruxelas, passam pela placa que elogia a obra colonial; ou em frente à estátua equestre de Leopoldo II. Os cidadãos passam pela estátua de Leopoldo II, erguida em Ostende, à beira-mar, e veem um majestoso Leopoldo II com congoleses gratos, abaixo, estendendo suas mãos agradecidas a ele com um único comentário: o papel civilizador de Leopoldo II para libertar os congoleses do tráfico de escravos… É urgente restaurar a verdade histórica e deixar de mentir aos nossos filhos, de mentir aos cidadãos belgas, deixar de insultar a memória das vítimas, dos descendentes das vítimas e dos descendentes dos congoleses que sofreram em sua carne, em sua dignidade, uma dominação absolutamente terrível.
Este dever de memória deve ser feito não só lá. Evitemos um debate do tipo: “você só critica a Bélgica e cala sobre o que houve em outros lugares”. Comecei minha apresentação situando o contexto: a Grã-Bretanha dominou brutalmente o Sul da Ásia; os Países Baixos dominaram com extrema violência as populações da Indonésia; antes disso, três quartos da população haviam sido exterminados do que então se chamava as Américas. E durante o século XVI se exterminou quase 100% da população do Caribe. Portanto, o Estado belga não teve nenhum monopólio da brutalidade, mas na Bélgica, como cidadãos belgas, com os nossos amigos congoleses, com os nacionais dos diferentes países que vivem na Bélgica, é fundamental que se cumpra este dever de memória e restabelecimento da verdade histórica.
¹ Éric Toussaint é PhD em Ciência Política pela Universidade de Liège (Bélgica) e pela Universidade Paris VIII (França). É conferencista senior da Universidade de Liège, diretor do Comitê para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (uma rede internacional com base em Liège) CADTM[1], membro do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial desde a sua fundação, em 2001.
² Fundado na Bélgica a 15 de março de 1990, o Comitê para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM) é uma rede internacional constituída por membros e comitês locais com sede na Europa, África, América Latina e Ásia.
³ Refere-se a Edmund Dene Morel, jornalista, escritor e ativista pela paz na Inglaterra, nascido e criado na França. Devido a seus conhecimentos de francês foi enviado ao Congo dominado pelos belgas. Com seus relatos sobre as atrocidades e gestões anticoloniais quando voltou à Europa acabou conseguindo acabar com a condição de propriedade do rei Leopoldo II a que fora submetido o Congo
Esses grandes países não só exploraram, mais dizimaram, e ficaram ricos, dominando povos, deixando pra trás toda a dor, e pobreza que ainda existe.