A nota mais recente da força-tarefa da Operação Lava Jato sobre as mensagens divulgadas pelo site The Intercept Brasil, depois do episódio ocorrido com o procurador Marcelo Weitzel – membro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) -, diz que “diálogos inteiros podem ter sido forjados pelo hacker ao se passar por autoridades e seus interlocutores. Uma informação conseguida por um hackeamento traz consigo dúvidas inafastáveis quanto à sua autenticidade, o que inevitavelmente também dará vazão à divulgação de fake news”.
O problema dessa declaração, em que a palavra “podem” admite qualquer hipótese, é que nem o atual ministro da Justiça, Sérgio Moro, nem o procurador Deltan Dallagnol, desmentiram as mensagens publicadas pelo The Intercept Brasil.
Deve ser por um bom motivo que eles não as desmentiram: porque são verdadeiras.
“Uma informação conseguida por um hackeamento” não traz “dúvidas inafastáveis” se os autores das mensagens confirmam a sua autoria.
Foi, até agora, exatamente isso o que fizeram Moro e Dallagnol. O que, aliás, é um pequeno ponto a favor deles, numa época em que alguns negam a existência de provas contra si, mesmo quando elas são evidentes.
Não será, portanto, afirmando que as mensagens são duvidosas porque foram “hackeadas”, que se conseguirá avançar para sair desse imbroglio.
Na quinta-feira, o The Intercept Brasil publicou a íntegra das mensagens em que suas reportagens anteriores se basearam (v. Os diálogos de Sergio Moro e Deltan Dallagnol que embasaram a reportagem do Intercept).
Além disso, foi divulgada, pelo radialista Reinaldo Azevedo, outra mensagem, do dia 22 de abril de 2016.
Essa mensagem não faz parte da coleção divulgada pelo The Intercept Brasil como base de suas reportagens. Mas não houve, também, qualquer desmentido, apesar dela apresentar algumas peculiaridades, a começar pelo tratamento “caros”, usado por Dallagnol nas mensagens a outros procuradores, mas não naquelas a Moro:
DALLAGNOL – Caros, conversei com o Fux mais uma vez hoje.
DALLAGNOL – Reservado, é claro. O Min Fux disse quase espontaneamente que Teori fez queda de braço com Moro e viu que se queimou, e que o tom da resposta do Moro depois foi ótimo. Disse para contarmos com ele para o que precisarmos, mais uma vez. Só faltou, como bom carioca, chamar-me pra ir à casa dele rs. Mas os sinais foram ótimos. Falei da importância de nos protegermos como instituições.
DALLAGNOL – Em especial no novo governo.
MORO – Excelente. In Fux we trust.
DALLAGNOL – Kkk
FRANJAS
Corretamente, como destacou a edição dada por The Intercept Brasil, o que importa nessas mensagens é, exatamente, o conteúdo daquelas trocadas entre Moro e Dallagnol.
As mensagens no grupo dos procuradores apenas mostram que eles tinham um determinado ponto de vista, inclusive político, mas isso não é um crime (e, aliás, é inevitável), desde que, em sua atuação, eles respeitem as leis, as provas e procedimentos processuais.
Aliás, o que essas mensagens mostram é que os procuradores que integravam a força-tarefa da Lava Jato estavam mobilizados pela tarefa de colocar ladrões do dinheiro e do patrimônio públicos na cadeia.
Sob o ângulo estritamente político, suas mensagens mostram bastante ingenuidade, como no episódio da entrevista de Lula, solicitada pela “Folha de S.Paulo”. Era pouco provável que a entrevista de Lula elegesse Haddad para presidente. Mas… e se isso acontecesse? Qual o problema? A maior parte do trabalho da força-tarefa não fora realizado no governo Dilma e naquele de seu vice-presidente, Michel Temer?
Pelo contrário, para a Operação Lava Jato muito pior seria (e foi) a eleição de Bolsonaro, que, para começar, tirou Moro – evidentemente porque este aceitou – do posto de juiz das ações que tinham relação com a Petrobrás.
Na quinta-feira (13/06), Moro falou na “convergência absoluta” entre suas intenções e as de Bolsonaro.
“Convergência absoluta“? Nem Jesus Cristo e a Virgem Maria tinham convergência absoluta de intenções.
A expressão – ridícula – expõe a decadência do ex-juiz e deixa mais claro os motivos porque ele cometeu os atropelos e transgressões que aparecem em suas mensagens ao procurador Dallagnol.
Não estamos aqui dizendo que o juiz Moro já era o mesmo que se tornou agora, ministro de Bolsonaro. Mas, como naquele conto de Machado de Assis, existia uma franja pela qual o diabo podia puxar (“Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas”, escreveu Machado).
HACKER
Como bem lembrado por alguns, o Ministério Público é parte do processo. Por isso, é incorreto exigir sua imparcialidade – embora, é correto exigir sua isenção, pois ele representa a sociedade. Uma coisa não é a mesma que a outra.
Mas é errado estribar-se no hackeamento do procurador Weitzel para levantar que “diálogos inteiros podem ter sido forjados”.
Ou se aponta que tal ou qual diálogo foi forjado, ou é melhor ficar calado, sem emitir generalidades que mais parecem aqueles biombos de alguns quartos nada familiares.
Até agora, uma única pessoa, segundo a PF, disse que seus diálogos não foram reproduzidos corretamente.
Além disso, também segundo a PF, nada indica, até agora, que o hacker que, na terça-feira à noite, entrou no grupo do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), passando-se pelo procurador Marcelo Weitzel – e, quando um dos conselheiros estranhou as mensagens, revelou-se (“Hacker aqui”) – tenha algo a ver com a revelação das mensagens entre Moro e Dallagnol.
Pelo contrário, diz a PF, o padrão não é o mesmo.
Não somos conhecedores do assunto. O que nos chamou atenção é que o ego do sujeito parece o do Marvin, aquele robô que Douglas Adams criou em “O Guia do Mochileiro das Galáxias”, embora com o humor invertido.
Por exemplo, disse ele aos membros do CNMP:
“Hacker aqui. Adiantando alguns assuntos que vocês terão de lidar na semana, nada contra vocês que estão aqui, mas ninguém melhor que eu para ter acesso a tudo né. Eu sou apenas justo, onde encontrei injustiça, fiz de conta que não passei. Mas encontrei apenas na lava jato, por hora”.
Ou:
“Quem aí tiver contato com o Marcelo, por gentileza informá-lo de que eu já retirei o 2FA que havia inserido no telegram ele, que impossibilitava o acesso, ele pode acessar normal e alterar a senha, eu acessei ontem aqui apenas para mostrar que não sou como a mídia diz, que liga para o telefone com número internacional e tampouco com o mesmo número (vide fake news do moro) eu acesso quem eu quiser, quando eu quiser e pode ter verificação em 10 etapas. Ele já pode resgatar a conta dele, e que vocês saibam que eu apenas acessei a lava jato pois havia irregularidades que a população, incluindo vocês deveriam saber.”
Fora isso, o que chama, também, atenção, é que ele sabe o que quer dizer “outrossim” (“Outrossim, vale ressaltar que não acessei o dispositivo de ninguém; não obtive dados pessoais”), aquela palavra que Graciliano Ramos mandou para a ponte que partiu, mas que os juristas, em geral, gostam muito.
LAVA JATO
A 13ª Vara Federal de Curitiba, da qual Sérgio Moro foi, até há poucos meses, titular, condenou, até agora, 159 investigados pela Operação Lava Jato – ao todo, 244 condenações – incluídos Lula, Sérgio Cabral, Eduardo Cunha, José Dirceu, João Vaccari, os dirigentes de oito empresas que assaltavam a Petrobrás (Odebrecht, OAS, Camargo Correa, Engevix, Galvão Engenharia, Queiroz Galvão, Mendes Junior, UTC) e mais uma quantidade industrial de outros escroques.
Houve, também, 54 pessoas absolvidas.
O próprio candidato de Lula nas últimas eleições, Fernando Haddad, declarou-se quase um admirador de Moro, no dia 17 de outubro de 2018, em entrevista ao SBT:
“Acho que, em geral, Moro ajudou. Em relação à sentença do Lula eu acho que tem um erro que vai ser corrigido pelos tribunais superiores porque ele não apresentou provas contra o presidente. Mas, em geral, eu acho que o Sérgio Moro fez um bom trabalho, embora eu acho que ele tenha soltado muito precocemente os empresários e liberado dinheiro roubado para estes empresários usufruírem a vida. Então, no geral, o saldo é positivo, mas há reparos a fazer.”
Na última terça-feira, dia 11/06, Haddad disse o contrário, que, na sua opinião, Moro deveria ter sido afastado “há anos”.
Haddad tem o direito de mudar de opinião, sobretudo depois da divulgação das mensagens entre Moro e Dallagnol – embora, mudar retrospectivamente de opinião é coisa só concedida ao inventor da máquina do tempo.
Quanto a Lula, na entrevista de quarta-feira, além de se dizer “honesto”, disse que Moro e Dallagnol estavam “a serviço de interesses americanos”.
Como se ele, que colocou um ex-presidente do BankBoston na presidência do Banco Central, tivesse sido, em algum momento, opositor dos “interesses americanos”.
Infelizmente para ele, o que se está discutindo não é a inocência de Lula, Cunha, Cabral, Palocci, etc. e etc.
Nem que, durante o seu governo, foi armado o maior esquema de assalto aos recursos públicos – precisamente, contra a Petrobrás e os fundos de pensão – que já houve neste país.
Isso é coisa provada. E, quanto a isso, Lula, Cunha, Cabral, etc,, continuam culpados, mesmo que os processos sejam anulados devido à conduta de Moro.
Independente dos problemas legais e jurídicos, a verdade e a mentira continuam existindo, fazem parte da realidade – e não há o que possa fazer com que a população (inclusive o eleitorado, que é parte da população) deixe de perceber tal distinção, tão elementar na espécie humana.
A desgraça dessa situação é, precisamente, que Moro e Dallagnol, com sua conduta, podem ter concedido impunidade a quem é culpado de roubar o povo.
A questão radica, então, nas mensagens trocadas entre Moro e Dallagnol – e em sua impropriedade, devido ao sistema jurídico inaugurado no Brasil pela Constituição de 1988, onde o juiz não é parte do processo, não pode investigar, muito menos se aliar a uma das partes, sobretudo ocultamente.
Essas mensagens – as publicadas pelo The Intercept Brasil – começam no dia 16 de outubro de 2015 e terminam em 11 de setembro de 2017.
Há bajulações de alto teor melífluo. No dia 13 de março de 2016:
DALLAGNOL – 22:19:29 – E parabéns pelo imenso apoio público hoje. Você hoje não é mais apenas um juiz, mas um grande líder brasileiro (ainda que isso não tenha sido buscado). Seus sinais conduzirão multidões, inclusive para reformas de que o Brasil precisa, nos sistemas político e de justiça criminal. Sei que vê isso como uma grande responsabilidade e fico contente porque todos conhecemos sua competência, equilíbrio e dedicação.
Pode-se imaginar o que fariam Evandro Lins e Silva ou Vitor Nunes Leal, se ouvissem algo semelhante. Provavelmente, defenestrariam o bajulador.
Como The Intercept Brasil mencionou que essas são as mensagens em que se basearam as três reportagens que publicou no domingo (09/06), mas não são as “conversas completas entre Moro e Dallagnol”, deve existir mais.
Entretanto, uma coisa chama atenção: o único membro da força-tarefa que, até agora, aparece trocando mensagens como Moro é Dallagnol.
Do mesmo modo, segundo fontes da PF ouvidas pelo jornal “Folha de S. Paulo”, apenas o celular de Dallagnol teria sido “hackeado”.
A troca de mensagens em que há uma clara transgressão do papel de juiz – não apenas do ponto de vista do relacionamento impróprio com uma das partes, mas da ação do próprio Moro – é a de 7 de dezembro de 2015:
MORO – 17:42:56 – Então. Seguinte. Fonte me informou que a pessoa do contato estaria incomodado por ter sido a ela solicitada a lavratura de minutas de escrituras para transferências de propriedade de um dos filhos do ex-Presidente. Aparentemente a pessoa estaria disposta a prestar a informação. Estou entao repassando. A fonte é seria.
DALLAGNOL – 17:44:00 – Obrigado!! Faremos contato.
MORO – 17:45:00 – E seriam dezenas de imóveis.
DALLAGNOL – 18:08:08 – Liguei e ele arriou. Disse que não tem nada a falar etc… quando dei uma pressionada, desligou na minha cara… Estou pensando em fazer uma intimação oficial até, com base em notícia apócrifa.
MORO – 18:09:38 – Estranho pois ele é quem teria alertado as pessoas que me comunicaram. Melhor formalizar então.
MORO – 18:15:04 – Supostamente teria comentado com (SUPRIMIDO) que por sua vez repassou a informação até chegar aqui.
DALLAGNOL – 18:16:29 – Posso indicar a fonte intermediária?
MORO – 18:59:39 – Agora já estou na dúvida.
MORO – 19:00:22 – Talvez seja melhor vcs falarem com este (SUPRIMIDO) primeiro.
DALLAGNOL – 20:03:00 – Ok.
DALLAGNOL – 20:03:32 – Ok, obrigado, vou ligar.
Não se consumou, ao que parece, a implantação de uma testemunha de acusação pelo próprio juiz: o máximo que ele poderia fazer, diante de uma informação desse tipo, era encaminhar a “fonte” para a polícia (que, por sinal, também não é parte do processo).
Mas que Moro tenha dado essa “dica” para Dallagnol é, independente da culpa de Lula, algo ilegal. E imoral.
O problema de Moro, portanto, é ter colocado uma Operação tão importante em risco – e, até onde se pode ver, por vaidade e reacionarismo.
CARLOS LOPES