CARLOS LOPES
Meu avô, Antenor José de Castilho, tecelão que foi anarquista nas primeiras décadas do século XX, falava, às vezes – rindo – das manifestações operárias que passavam pela rua São Clemente, em Botafogo, quando, sempre, alguém subia no muro da casa mais famosa dali, a de Rui Barbosa, para acenar com uma bandeira negra.
Não era uma saudação ao grande Rui, mas uma espécie de vingança, pois o morador da casa, segundo meu avô, conseguira, com os ingleses que exploravam os bondes, que na sua rua não trafegassem veículos com reboque (nos bondes da época, o carro da frente era reservado aos passageiros que vestiam terno, gravata, colete, e o escambau; por isso os operários – e o povo em geral, um pessoal não muito branco ou nada branco – eram transportados no reboque).
Essa história, que meu avô contava, sempre me pareceu uma dificuldade para considerar a personalidade histórica de Rui Barbosa nas devidas dimensões, apesar de escrever bastante – e positivamente – sobre ele.
Mas, como conciliar este homem, que, supostamente, não queria que o povo passasse nem pela sua porta, com aquele outro do “Parecer Sobre a Emancipação dos Escravos“? (v. A formação do abolicionista Rui Barbosa, O nascimento da República e os jabutis em cima das árvores e Astrojildo Pereira: Rui Barbosa e a emancipação dos escravos).
Ou com aquele que foi amigo e colega de Luiz Gama na redação do Radical Paulistano – e, depois, escreveu uma das mais emocionantes reminiscências sobre o abolicionista negro?
Ou, ainda, com aquele que, ao eclodir a Revolta da Chibata, em 1910, interrompeu sua licença do Senado – ele acabara de enfrentar uma duríssima campanha presidencial – para, na tribuna, dizer:
“É preciso, porém, não esquecer a verdade e a justiça que jazem no fundo íntimo dessas reclamações [dos marinheiros]; é preciso não desconhecer nas reclamações dessa massa que se levanta um princípio de direito de humanidade, um grande princípio de humanidade e de direito, mas os quais não podem ser reivindicados senão pelas armas que as nossas leis e a Constituição lhes asseguram.
“… acabam de mostrar os nossos marinheiros que não são meras máquinas de caprichos e de pretensões desatinadas; que no íntimo de sua alma existem paixões ardentes, sentimentos profundos, com os quais devemos contar.
“Os marinheiros, como os soldados, são sagrados na sua pessoa. Maltratá-los, sobrecarregá-los com excesso de serviços é ofender um dos princípios de humanidade que mais se impõem aos países civilizados” (cf. Obras Completas, vol. XXXVII, t. 3, pp. 150-151).
E, no dia seguinte, 24 de novembro de 1910, ao propor anistia para João Cândido e seus companheiros:
“… é necessário não esquecermos o valor da gente que tripula essas tremendas máquinas de guerra. Digamo-lo com alguma vaidade, com algum desvanecimento por honra dos nossos compatriotas.
“O que constitui a força das máquinas de guerra não é a sua mole, não é a sua grandeza, não são os seus aparelhos de destruição – é a alma do homem que as ocupa, que as maneja e as arremessa contra o inimigo.
“As almas desses marinheiros que povoam os nossos grandes dreadnoughts, hoje, em nossa baía (sejamos justos ainda para com esses infelizes no momento do seu crime), as almas desses homens têm revelado virtudes que honram a nossa gente e a nossa raça.
“Li hoje com admiração as declarações do nobre Deputado, Sr. José Carlos de Carvalho; vi como esses homens lhe mostravam com orgulho os seus navios, dizendo: — Senhores. Isto é uma revolta honesta!
“Eles tinham lançado ao mar toda a aguardente existente a bordo para se não embriagarem; tinham feito guardar com sentinelas as caixas onde se acham depositados os valores; tinham mandado atalaiar com sentinelas os camarotes dos oficiais para que não fossem violados; tinham guardado na organização do movimento um sigilo prodigioso entre os costumes brasileiros; tinham sido fiéis à sua ideia; tinham sido leais uns com os outros, desinteressados na luta, e, por que não dizer, em vez de se entregarem aos impulsos dos instintos tão desenvolvidos e tão naturais em homens da sua condição, servindo-se mediata e refletidamente dos meios destruidores de que dispunham contra a cidade, fizeram concessões e estabeleceram a luta como se fossem forças regulares contra inimigos regularmente constituídos.
“Gente desta ordem não se despreza. Lamentam-se os desvios, mas reconhece-se o valor humano que ela representa.
“Esses homens que se aventuraram a meios bárbaros na ameaça que nos fazem de bombardear a grande capital brasileira, a isto foram levados pelas consequências irresistíveis da situação em que se tinham colocado, pelos desvios a que se tinham aventurado na reivindicação de algumas pretensões, nas quais não se poderá deixar de reconhecer o caráter de verdadeiro direito. (Muito bem.)
(…)
“Abusos com os quais, na gloriosa época do abolicionismo, levantamos a indignação dos nossos compatriotas, quando nos batíamos pela liberdade; abusos que fazem desconhecer, no soldado e no marinheiro, as qualidades principais daqueles que têm de expor a vida para defender a Nação — as qualidades de homem.
“É um engano acreditar-se que o regímen racional e humano da abolição dos castigos corporais pode influir para reduzir as forças disciplinares do Exército e da Armada.
“Estou perfeitamente convencido do contrário. Acredito que todo o movimento saído de almas abatidas – reduzidas a condições servis, em que é criado o homem sujeito à aviltadora condição de escravo; tudo aquilo que diminui no homem o sentimento moral; tudo aquilo que aproxima o homem da condição de besta-fera; tudo aquilo que desconhece a impressão de honra e de dever; tudo aquilo que apela do homem para os instintos materiais e brutos, tudo isto que se resume no emprego do látego, do tagante, da chibata, aplicada sobre o dorso humano – não tende senão a desviar o homem e a prepará-lo para as surpresas mais terríveis contra a sociedade e a ordem.
“É entre os homens educados e ensinados a conhecer as razões pelas quais se devem obter os limites do mando, que se formam as sociedades bem disciplinadas, que se preparam os corpos para afrontar o perigo, sem considerações aos riscos a que se expõem.
“Acostumado a não chibatar seus comandados, habitua-se a medir o que podem; habitua-se a não se exceder ao que lhe cumpre; habitua-se a governar-se para saber governar; habitua-se a poder ser chefe, sem ser escravo.
“A escravidão começa por desmoralizar e aviltar o senhor, antes de desmoralizar e aviltar o escravo” (cf. idem, pp. 161 a 164).
SOLUÇÃO
Então, como conciliar esses dois homens, os dois com o mesmo nome – Rui Barbosa?
Descobri somente há poucos dias. O jeito de conciliar um e outro é o mais lógico: um deles não existiu. Portanto, não há nada a conciliar.
Lendo “À Sombra de Rui Barbosa“, de Américo Jacobina Lacombe, organizador da Casa de Rui Barbosa (e também da fundação de mesmo nome) e principal editor das Obras Completas de Rui, encontrei o trecho abaixo:
“Lenda paralela (…) é a do horror de Rui Barbosa ao poviléu, que o teria levado até a conseguir da diretoria da Companhia Ferro-Carril do Jardim Botânico a supressão do bonde de segunda classe de sua rua, para não ter o desprazer de ver passar em frente a sua casa o ‘zé-povo’, e especialmente a gente de cor. Para quem abre uma planta do bairro de Botafogo torna-se evidente que, a ter de fazer correr uma só composição de segunda classe, ou reboque desse tipo, o itinerário lógico seria a rua central do vale, que é a Voluntários da Pátria, que corta todas as transversais pelo meio, entre General Polidoro e São Clemente, e nunca esta última, que, a esse tempo, não possuía nenhuma transversal para o lado da montanha. Mas um maldizente adversário, que desertou das fileiras civilistas, lançou a calúnia que fez carreira, como fazem todas que visem a incompatibilizar um espírito superior com as classes humildes, naturalmente desconfiadas.
“O que há de grave é que não há mito mais generalizado em relação a Rui Barbosa. Qualquer operário já o ouviu. A todo momento, ele aparece nas rodas de proletários, e é inútil tentar destruí-lo. A verdade, diz-se logo, é que os bondes de segunda não passavam por aqui. É inútil dizer que, como campeão do abolicionismo, Rui não poderia ter preconceitos de cor; inútil apelar para o parecer sobre a Lei de 1884 – documento de profundo senso social e que os anti-ruístas procuram não citar; inútil lembrar o discurso de 1888 considerando o 13 de maio como um ponto de partida, e não como uma meta; inútil lembrar a primeira lei trabalhista promulgada pelo Governo Provisório; inútil dar. o testemunho de todos que viram a afabilidade e a cordialidade de Rui para com todos os humildes. Inútil tudo isto. A lenda do veto ao bonde de segunda classe está incorporada às tradições da cidade. Surpreendemo-la, às vezes, entre pessoas que parecem nada mal dispostas em relação ao caluniado. Curioso é que ela tomou outras formas, e começa a se transformar numa espécie de maldição contra a Rua São Clemente, lançada talvez por um bruxedo.
“O atual diretor desta Casa, faz poucos anos, esperava, no centro da cidade, condução que viesse por São Clemente. Passaram várias, via Voluntários que, como é óbvio, percorrem uma rua mais central. Ao se aproximar o terceiro via Voluntários, um desconhecido, sentindo que tinha um companheiro de infortúnio, não se conteve e explodiu:
“- O Sr. também espera condução para São Clemente, não é? Somos infelizes. Desde o tempo em que Rui Barbosa impediu a passagem por ela de bondes de segunda classe, que esta rua é uma rua desgraçada. Tudo isto vem do Rui Barbosa…” (v. Américo Jacobina Lacombe, À Sombra de Rui Barbosa, col. Brasiliana nº 365, CEN/INL, 1978, pp. 162-163).
Jacobina Lacombe era um homem rigoroso, que, portanto, merece confiança. Além disso, o que ele diz sobre esse assunto tem lógica. O que não tem é a versão de dois Ruis.