Há poucos dias, revendo alguns materiais que usei para escrever “Os Andradas e outros heróis da Independência do Brasil”, topei com o seguinte trecho, do historiador Octavio Tarquínio de Sousa, no nono volume de sua “História dos Fundadores do Império do Brasil”:
“Como quer que seja, os aspectos mais curiosos da conjuração baiana são realmente a participação de um grande número de homens do povo, inclusive escravos, e a inegável influência dos acontecimentos da Revolução Francesa.”
O autor prossegue, demonstrando a influência das ideias revolucionárias francesas em um dos principais líderes do movimento, o mulato (escrevo esta palavra com orgulho) João de Deus do Nascimento. Por exemplo:
“O mesmo pardo João de Deus amava Ana Romana Lopes do Nascimento — os autos falam de ‘amizade ilícita’ — mulatinha de dezessete anos, que fora escrava do padre João Lopes da Silva, em cuja casa assistia.
“Quando o namorado foi preso, Ana Romana quis saber o motivo e apenas lhe disseram que ‘por estar metido em histórias de Francesia’.
“‘Francês’ o pobre João de Deus, condenado à forca, posta a sua ‘cabeça defronte da casa que lhe servia de morada e os quartos nos cais de maior frequência e comércio desta cidade até que uma e outros sejam consumidos pelo tempo para ser assim patente a todos a enormidade de seu delito (…)’ — sentenciou na sua crueldade a Justiça Real. Delito de ‘francesia’, de querer ser um homem livre.
“E de ser ‘petulante, altivo, soberbo e orgulhoso’ — como se disse na devassa, acumulando os qualificativos. Mulato que ficava sentado diante de brancos poderosos, conforme aconteceu com o tenente- coronel Caetano Maurício Machado: ‘não se levantava do assento em que estava e muitas vezes sem estar trabalhando falava assim às pessoas’, testemunhou o seu colega alfaiate Antônio Inácio Ramos, homem branco. Mulato que desafiava outros mulatos presumidos, da espécie de Antônio Joaquim de Oliveira que, ‘vindo em uma cadeira de arruar por causa da chuva e parando os pretos na porta da loja do dito João de Deus’, disse este: ‘Vossa mercê não tem medo ao tempo e porque é rico não quer molhar os pés (…) tempo virá em que possa ser eu que ande de cadeira e vossa mercê de pé’”.
Há mais, no livro do historiador, mas isso é o suficiente para dizer: de repente, descobri que não sabia nada sobre a Conjuração Baiana.
Perceber a própria ignorância não é ruim. O desastre, pelo contrário, é quando o sujeito acha que a sua ignorância é sabedoria. Como estamos com uma cepa desse tipo no governo do país, a começar pelo chefe, não precisamos nos estender sobre o assunto. Não é mais, para os brasileiros, um problema teórico ou filosófico, mas um problema prático.
Porém, o mais estranho não é a ignorância sobre um acontecimento histórico decisivo para a nacionalidade.
O mais estranho é que trabalho há quase 30 anos (28, para ser preciso) com um ilustre historiador baiano, formado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), e jamais perguntei a ele qualquer coisa sobre a Conjuração Baiana.
Dessa vez, resolvi me corrigir: perguntei a Avesnaldo Sena dos Santos, hoje editor de política da HORA DO POVO, o que eu deveria ler para conhecer alguma coisa sobre os revolucionários de 1798, em especial aqueles que foram enforcados e esquartejados, na cidade do Salvador, a 11 de novembro de 1799.
O amigo recomendou-me os livros do professor Luís Henrique Dias Tavares. No dia seguinte, comprei em um sebo a “História da Sedição Intentada na Bahia em 1798”, magnífico livro.
Mas, antes disso, li o trabalho, do mesmo professor, “Escravos no 1798”, publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros em 1992.
Quando do último 13 de Maio, procurei um texto que acrescentasse alguma coisa ao que já publicamos sobre a nossa História – que é, antes de tudo, a história dos negros e dos mestiços, sem qualquer preconceito contra os brancos, se é que os há, ainda, neste país…
Não achei um texto – e acabei republicando um que apareceu no HP há 19 anos (v. O 13 de Maio foi a vitória da luta de Zumbi dos Palmares).
Então, embora atrasados, eis aqui um texto digno da nossa comemoração abolicionista.
C.L.
Escravos no 1798
LUÍS HENRIQUE DIAS TAVARES*
Foram onze os escravos presos por causa do movimento de 1798, todos eles incluídos na devassa presidida pelo desembargador dos agravos do Tribunal da Relação na Bahia, Francisco Sabino Alvares da Costa Pinto, para isso nomeado pelo governador da Capitania Geral da Bahia, dom Fernando José de Portugal, em seguida à formalização das denúncias referentes a preparativos para “hum levante” na cidade do Salvador. Mais imediatamente, devia identificar quem estivera na noite de 25 de agosto daquele ano no Campo do Dique do Desterro.1
Apenas onze escravos. Mas a questão não é de quantidade: é que eram escravos, na maioria pardos e nascidos na Bahia (o único africano é o mina Vicente). Não há dúvidas que souberam de conversas, convites e articulações sediciosas de homens livres, alguns brancos, outros pardos; alguns militares, soldados e oficiais de baixa patente. Outros, artesãos. E ainda outros, intelectuais. Escravos domésticos e de aluguel circularam ao lado de pardos forros que, por sua vez, estiveram próximos de brasileiros de realce na cidade colonial; eram homens de consideração. Alguns falavam abertamente da revolução francesa, a exemplo do cirurgião Cipriano José Barata de Almeida. Outros, mais reservados, não escondiam insatisfação e irritação com a demora dos navios que deviam vir de Portugal esvaziar os trapiches cheios de produtos da grande lavoura. Eles liam discursos, panfletos e livros ou trechos de livros franceses proibidos em Portugal e suas colônias. Eram homens que tinham notícias da liderança emergente de Napoleão Bonaparte. Homens que faziam circular versos de exaltação à liberdade e à igualdade. Por fim, homens que idealizaram, na Bahia da última década do século XVIII, um regime político republicano, com um governo democrático capaz de instalar e garantir direitos iguais para todos, não importando cor ou origem social. Alguns deles falaram e conversaram sem reservas. Eles se opunham à monarquia absolutista portuguesa e, por conseguinte, ao sistema colonial dominante na Capitania Geral da Bahia.2
Entendendo as referências à liberdade e à igualdade na condição social em que se encontravam, os pardos forros que souberam ou escutaram essas falas sediciosas detiveram-se no que lhes tocava mais diretamente, sobretudo a discriminação social e de cor que sofriam. Para serem livres, chegaram a conversas e encontros que configuraram “hum levante”. E fizeram convites a outros pardos forros. E a escravos.
Onze escravos convidados foram presos. Nada obstante, mesmo que fossem dois; mesmo que fosse somente um, ainda assim é preciso identificá- los, conhecê-los, acompanhá-los. É igualmente necessário vê-los nas cadeias soturnas do Tribunal da Relação e ouvi-los nos interrogatórios e acareações. E registrar as penalidades que cinco deles receberam.
Penso que a presença desses escravos entre os 32 presos políticos de 1798/1799 é tão importante que suscita novas questões e indagações sobre o movimento baiano.
O escravo boleeiro Antonio José
Foram onze, mas apenas dez chegaram até a relação de 23 de fevereiro de 1799, dos réus presos, e à intimação e notificação de 11 de março daquele ano, que deu conclusão à devassa sobre a “sedição intentada” ou “hum levante” e, a partir da qual, o advogado designado pela Santa Casa, José Barbosa de Oliveira, escreveu e apresentou ao Tribunal da Relação sua notável defesa.3
Dez, pois um deles morreu na prisão. Chamou-se Antonio José4, pardo, escravo boleeiro do tenente-coronel Caetano Maurício Machado. Veio preso para as cadeias do Tribunal da Relação na manhã de 28 de agosto, conduzido sob escolta por ordem do militar seu senhor, que todavia não se considerou obrigado a enviar qualquer justificativa para essa prisão, nem foi indagado sobre suas razões para determiná-la, ou fosse sobre o que fosse ao longo dos meses da devassa conduzida pelo desembargador Costa Pinto. Antonio José é, assim, o único dos escravos presos de quem não ficaram declarações. É aquele que deixou somente o registro de gemidos e sons de vômitos e agonia nas nove ou dez horas que se intercalam entre sua chegada à cadeia e a sua morte por veneno. Entregue ao guarda-livros da prisão, naquele dia 28 acumulando funções de porteiro e carcereiro, e que declarou tê-lo examinado, nada encontrando nele de suspeito, foi recolhido a um dos segredos. Encarcerada no cubículo ao lado, Luísa Francisca de Araújo, mulher de João de Deus do Nascimento, ali colocada desde a manhã de 26, olhou por um buraco na parede e viu que se deitava sobre o capote que estirara no chão. E escutou que suspirava. Numa hora que ela indicou depois ter sido próxima do meio dia, mas que devia corresponder às duas, ou mais, da tarde, Antonio José começou a vomitar. Foi no instante em que o guarda entrou no segredo trazendo água e a comida que um escravo cabeleireiro da casa do tenente-coronel Caetano Maurício Machado trouxera. Vinha num amarrado em panos de dois pratos, um servindo de cobertura a outro que continha arroz, carne assada, toucinho e um pedaço de chouriço do reino, este retirado pelo guarda, que o comeu. Havia mais um pouco de farinha de mandioca.
Antonio José continuava vomitando. E ansiava. O guarda indagou o que ele sentia, ao que o escravo respondeu que estava enjoado por causa do cheiro que o segredo exalava. Parece que o guarda acreditou, pois saiu, só voltando às oito da noite. Agora o encontrou sentado, mas sem ter comido. O guarda providenciou rápida limpeza do chão emporcalhado e se retirou, regressando na manhã seguinte, cerca das nove horas. Achou o escravo morto, com algum resto de comida nos lábios. Via-se que o alimento fora utilizado.
Chamados para examinar o cadáver, o cirurgião do 2º Regimento pago, Manuel Fernandes Nabuco, e o cirurgião Francisco Luís Reina, concordaram que o escravo morrera envenenado por sublimado (cloreto mercúrico). Chegaram a essa conclusão pelas indicações que deduziram da rigidez cadavérica, da “dissolução dos líquidos”, das mãos curvas e das unhas roxas, além do sangue nos vômitos. Nabuco diagnosticou logo suicídio e afastou qualquer possibilidade de ato criminoso, acentuando mais que o tenente-coronel Caetano Maurício Machado estava acima de qualquer suspeita. Por sua vez, o cirurgião Francisco Luís Reina mandou vir um cão, a quem deu o resto da comida, sem que disso resultasse consequência. Dessa forma, perante a demonstração, também concordou com o suicídio do escravo. Mas ninguém indagou como o veneno chegara às suas mãos.
Durante o mês de setembro, de 1 a 27, o desembargador Costa Pinto ouviu 24 testemunhas em sua própria residência, todas do tipo “sabe por ouvir dizer”, “sabe por ser notório”. Testemunhas indiretas. Uma dessas, contudo, um pardo de quarenta anos, militar aposentado, e que vivia de bens, declarou que o escravo Antonio José morrera ao tomar “o veneno que levava” no cabelo. Foi a primeira e única informação afirmativa em vinte e três evasivas. Estranhamente, porém, o desembargador Costa Pinto deixou de lado e não fez indagações que talvez permitissem se saber como ele se informara que o escravo levava veneno escondido no cabelo. De resto, o responsável pela devassa jamais interrogou o escravo cabeleireiro que conduziu e entregou a comida para Antonio José, duas ou três horas após a sua prisão. Também por isso não se saberá verdadeiramente porque o escravo boleeiro morreu envenenado. Pode-se supor apenas que o tenente-coronel o prendeu ao saber que ele fora citado na denúncia do cabeleireiro e capitão do Regimento de milícia dos pretos – os henriques – Joaquim José de Santana, que repetiu uma frase de João de Deus do Nascimento, no Campo do Dique do Desterro; “Não sei como isso he, pois Antonio José, boleeiro de Caetano Maurício, tinha ficado de vir e de trazer consigo sessenta homens.”
Mas observo que, não obstante as alegações de saber “por ouvir dizer” ou “por ser notório”, as 24 testemunhas convocadas pelo desembargador Costa Pinto repetiram esse “por ouvir dizer” significando que o escravo fora preso em razão “de ser confederado em huma rebelião.”
Na defesa dos 32 presos, ao chegar ao escravo boleeiro, o advogado José Barbosa de Oliveira destacou que as declarações das 24 testemunhas não serviam de prova, e acentuou que a ausência de Antonio José na reunião no Campo do Dique do Desterro mostrava “q. elle não tinha intenção alguma de entrar em similhante conjunção.” Também argumentou contra uma declaração de João de Deus, segundo a qual o nome do escravo Antonio José estava numa lista de “partidários” feita por Lucas Dantas de Amorim Torres. O advogado notou que até mesmo existindo essa lista, isso não provava que “elle prestasse consentimento” para a inclusão do seu nome. Por fim, concluiu que o próprio suicídio do escravo não resultava em prova, “visto que não se mostrava que elle o fizesse por temor da pena.” E assim argumentando, julgou o escravo “izento de ser castigado na sua memória com a pena de infamia.”
José Barbosa de Oliveira exerceu a melhor defesa. Mas fica irrespondível a pergunta sobre a morte do boleeiro Antonio José. Com efeito, se foi suicídio, por que se matou? Se não foi suicídio, quem ou quais pessoas precisaram do seu silêncio?
O escravo alfaiate de casa Luís de França Pires
Há outros elementos para análise no caso de Luís de França Pires, escravo alfaiate de casa de José Pires de Carvalho e Albuquerque, senhor de engenhos e de escravos rurais e urbanos; dono do sobrado-casarão do Unhão, na Gamboa, e membro destacado de importante família brasileira na Capitania Geral da Bahia – a família da Casa da Torre.5 Na ocasião dos episódios de 1798/1799, possuía o título de Secretário Perpétuo “do Estado”, título herdado e sem funções burocráticas, mas que representava lucros e prestígio. Incluindo Luís de França Pires, quatro dos seus escravos urbanos foram presos pela devassa presidida pelo desembargador Costa Pinto.
Preso e colocado em um dos segredos da cadeia do Tribunal da Relação, esse escravo e filho de escravos (mostrou-se inseguro ao informar se o pai era vivo ou morto, mas afirmou que a mãe era falecida) exercitou a inteligência no primeiro interrogatório, tentando manter-se numa negativa que lhe fora sugerida pelo soldado e alfaiate Inácio da Silva Pimentel. Com efeito, de acordo com os autos, igualmente preso, Inácio da Silva Pimentel chamara sua atenção batendo as correntes que o prendiam e gritando-lhe que não falasse, pois só poderiam ser punidos se confessassem, e adiantando que João de Deus do Nascimento e o soldado Caetano Veloso já tinham combinado negar sempre a qualquer pergunta. No entanto, no quarto interrogatório, a 17 de setembro, passou a revelações que se ampliaram no que classificou “ser a verdade.”
A verdade consistiu em revelar a conversa mantida em algum dia de junho (provavelmente antes da divulgação dos boletins de 12 de agosto de 1798) com o aprendiz de alfaiate Manuel Faustino dos Santos Lira, pardo forro, filho de mãe escrava, mas afilhado de uma cunhada de José Pires de Carvalho e Albuquerque, Maria Francisca da Conceição e Aragão, em cuja casa do Terreiro de Jesus ele residia e se encontraram. Acreditando-se em Luís de França Pires, Manuel Faustino perguntou-lhe se “estimava a liberdade a ser forro.” (Chamo a atenção para a construção da pergunta). Depois de escutar como resposta que estimava “a liberdade”, Manuel Faustino disse-lhe que “estava projectado hum levante” na cidade do Salvador, a ser executado dentro de dois meses, “afim de serem libertos todos os pretos e pardos, e viverem huma igualdade tal que não haveria distinção de seres e assim viveriam todos contentes.” Acrescentou mais que ele precisava ter uma espada, e noticiou que Napoleão Bonaparte estaria na Baía de Todos os Santos dentro de quatro meses (por essa previsão, a visita ocorreria em setembro) com navios de guerra para a defesa do “partido da liberdade.” Não insisto na fidelidade da transcrição das palavras de Luís de França Pires, que podem ser muito mais do escrivão José Luís de Abreu, sobretudo considerando as omissões, faltas e vícios processuais existentes nos autos da devassa. Mas é aceitável a verdade do convite, como também que o escravo Luís de França Pires o atendeu. Além do mais, o relacionamento do forro aprendiz de alfaiate com um escravo alfaiate era fácil de se estabelecer no trânsito de Manuel Faustino no sobrado-casarão de José Pires de Carvalho e Albuquerque, explicável nas formas das relações familiares-pessoais na cidade do Salvador dos finais do século XVIII. Não esquecer que a condição de escravo alfaiate de casa devia fornecer a Luís de França Pires facilidades negadas a outros escravos.
Faz revelações nesse sentido a desenvoltura dos passos de Luís de França Pires, na noite de 25 de agosto. Estão relatados no interrogatório de 17 de setembro, confirmados e repetidos no de 1º de outubro. Conforme os autos, ele informou que, na tarde daquele dia 25, Manuel Faustino passou no Unhão e lhe pediu que o procurasse na cidade (ou seja: no centro da cidade do Salvador, do qual o Unhão, na Gamboa, ficava relativamente distante) “para passarem revista” e saberem o “n. exato dos partidários.”
Atendendo o convite, Luís de França Pires saiu do Unhão às Ave Maria (seria noite de lua) e foi andando para o Terreiro de Jesus. Na porta do sobrado de dona Catarina Francisca Corrêa de Aragão, senhora da importante família Aragão Bulcão, também aparentada dos Pires de Carvalho e Albuquerque, Luís encontrou a irmã Vicência, ex-escrava, agora forra, casada e moradora da rua Direita da Saúde. Conversaram a respeito da venda de uma escrava que a ex-escrava Vicência comprara para revender, transação na qual Luís de França Pires servira de intermediário junto ao corretor José da Costa. Parece que a conversa com a irmã não produziu bons resultados, pois ela o deixou na porta do sobrado e entrou. É o instante em que chegavam Manuel Faustino dos Santos Lira, João de Deus do Nascimento e o pardo ferrador Joaquim José da Veiga, denunciante já combinado com o coronel do 2º Regimento pago (artilharia), dom Carlos Baltazar da Silveira, para surpreender os que iam se reunir no Campo do Dique do Desterro.
Manuel Faustino deixou-os no Cruzeiro de São Francisco. Luís de França Pires seguiu adiante em companhia de João de Deus do Nascimento e Joaquim José da Veiga. Passaram na frente da igreja da Ordem 3ª de São Francisco “e pela cruz de Azulejo”, e desceram a rua de São Miguel. Depois subiram para o Desterro. Ao passarem na porta da casa do coronel Baltazar da Silveira, o oficial ferrador trocou com alguém nas sombras (a lua iluminava) palavras que serviriam “para dar a conhecer serem aquelles os do pretendido ajuntamento”, esclareceu depois o oficial de artilharia. Luís de França Pires não memorizou essa troca de palavras porque se adiantara com João de Deus do Nascimento. Mas os três se reuniram de novo pouco depois no local denominado Detrás do muro do convento do Desterro, ou Caquende, nome que ficou, e foram por uma ladeira para o Campo do Dique. Encontraram ali o escravo de aluguel, alfaiate Vicente, o soldado Romão Pinheiro e o cabeleireiro e capitão dos henriques Joaquim José de Santana, outro denunciante, então acertado com o tenente-coronel Alexandre Teotônio de Sousa para surpreender e prender os partidários. Mas ouviram barulhos e se dispersaram.
Reunidos novamente no Caquende, Luís e o ferrador entraram no botequim ali existente e beberam cachaça. Viu também que conversavam do lado de fora João de Deus e o oficial lavrante de prata e ouro, Luís Pires, que tirara do peito e exibia duas pistolas. Sem explicar esse movimento, Luís saiu do botequim e voltou sozinho para o Campo do Dique do Desterro. Foi então que localizou o tenente Alexandre Theotonio. Ele subia a ladeira da Fonte das Pedras em companhia de dois escravos armados de pau. Vendo-os, Luís voltou à ladeira, retornou ao botequim, mas, em seguida, se retirou pela rua da Poeira. Depois subiu a rua de São Miguel em direção ao Terreiro de Jesus. Ali encontrou Manuel Faustino ao lado da igreja de São Domingos, no local chamado Canto das Mouras. Queixou-se dele o ter mandado para o Campo do Dique do Desterro, ao qual, todavia, não comparecera. Manuel Faustino deu-lhe uma resposta intrigante: “Não fui porque ainda não erão horas.” Daí, separam-se.
Luís de França Pires ainda entrou no sobrado de dona Catarina Francisca Corrêa de Aragão. Declarou que foi para dar 40 réis a um seu filho. Por último, às nove da noite regressou ao sobrado-casarão de José Pires de Carvalho e Albuquerque.
Muito de propósito, detalhei os movimentos desse escravo. Eis, portanto, um escravo que sai do sobrado-casarão do seu senhor cerca das seis da tarde para uma reunião que devia verificar o número de participantes em “hum levantamento”, e que circula – do Unhão, na Gamboa, para o centro da cidade, do Terreiro de Jesus para o Desterro, o Caquende, o Campo do Dique do Desterro, a Poeira, a rua de São Miguel, de novo para o Terreiro de Jesus e dali para o Unhão – em horas seguidas de uma noite de lua. É escravo que sabe ler e escrever, irmão de forra com família constituída e dona de escrava comprada para ser revendida. Ele participa dessa transação. Pai e filho de mãe escrava, é irmão da escrava Francisca, amásia de Lucas Dantas de Amorim Torres, com quem disse não ter “comunicação”, mas sabia que Fortunato da Veiga ia à casa de Lucas e que Veiga e Manuel Faustino se saudavam com uma frase que merece registro: “Creio no grande Bonaparte.”
Ele tinha 32 anos. Outro escravo de José Pires de Carvalho e Albuquerque, Manoel José de Vera Cruz, também preso, declarou que Luís de França Pires tinha “péssima conducta.” E que mentia. Advogando a inocência de Luís de França Pires, José Barbosa de Oliveira mostrou não haver nos autos provas conclusivas de sua participação no “levantamento”, mas reconheceu sua “fama de mentiroso.” Mesmo que o fosse, não invalida a sua caminhada na noite de 25 de agosto de 1798.
O escravo sem ofício Inácio Pires (Inácio Pires dos Santos)
Para seguir com os escravos de José Pires de Carvalho e Albuquerque, presos em 1798, passo a examinar o caso do escravo sem oficio Inácio Pires ou Inácio Pires dos Santos, filho de homem branco e de uma escrava do morgado José Pires de Carvalho e Albuquerque, já falecido e de quem também fora escravo (não se trata do Secretário Perpétuo). Como declarasse no primeiro interrogatório que tinha 17 anos, o bacharel José Teixeira da Mata Bacelar foi indicado seu curador, condição em que assistiu e endossou suas declarações nos interrogatórios e acareações. Mas não o defendeu.
Esse quase menino conhecia Manuel Faustino dos Santos Lira da casa de Maria Francisca da Conceição e Aragão, na qual às vezes dormia. Provavelmente por causa de Manuel Faustino, também se relacionava com João de Deus do Nascimento e Lucas Dantas de Amorim Torres. A Lucas Dantas encomendou uma bengala. A João de Deus transmitiu um recado de Lucas Dantas para que o procurasse, ao que o mestre alfaiate respondera: “Está bem.”
Foi Manuel Faustino quem o convidou para “hum levante” destinado a estabelecer “hum novo governo de Igualdade, ficando extinto o cativeiro.” De todos os convites feitos por Manuel Faustino dos Santos Lira, esse é o mais explícito na referência à extinção do trabalho escravo na Bahia, ou, pelo menos, na cidade do Salvador. Nos convites a outros escravos, Manuel Faustino falou em “terem todos liberdade e igualdade”, do que se pode deduzir que estava implícita a extinção da escravidão. Mas é diferente nesse convite ao escravo Inácio Pires. Aqui, o forro e filho de mãe escrava, Manuel Faustino dos Santos Lira, é bastante claro: “ficando extinto o cativeiro.” Acrescento que na acareação de Inácio Pires com Manuel Faustino, o aprendiz de alfaiate confirmou que o convidara para “hum levante” destinado ao estabelecimento do governo de igualdade e liberdade “para todos os escravos.” Mas não revelou o plano que tinham para alcançar esse objetivo.
Devo informar que Inácio Pires declarou não ter aceito o convite.
Nos seus 17 anos, ele disse e repetiu que não aceitara o convite “para hum levante” e nem o convite para a reunião no Campo do Dique. Recusou, mas guardou silêncio.
José Barbosa de Oliveira o defendeu em longa e minudente argumentação, toda ela conduzida para convencer ao Tribunal da Relação que ele jamais estivera no “número dos confederados do levante.” De outra parte, José Pires de Carvalho e Albuquerque adotou providências para o libertar. Houve requerimento de advogado, atestado de médico e declarações de testemunhas que apresentaram sua condição de “doente mental.” Inácio Pires dos Santos sofrera na infância “uma febre maligna” que lhe afetara o cérebro; às vezes (disseram) tinha comportamento de quem sofria “do juízo.”
O escravo carapina João Pires
O escravo carapina João Pires foi outro dos escravos de José Pires de Carvalho e Albuquerque preso em 1798. Filho de homem branco, já morto na época, e de crioula escrava, sabia ler e escrever. No primeiro interrogatório, no dia seguinte à sua prisão (4 de outubro), declarou ter 18 anos de idade. Sendo menor, o bacharel José Teixeira da Mata Bacelar foi nomeado seu curador.
João Pires foi preso por causa de uma referência ao seu nome, feita pelo escravo alfaiate de casa Luís de França Pires, ao revelar que no retorno para o Unhão conversara com João Pires e lhe dissera que fora à reunião no Campo do Dique do Desterro, não omitindo que dali saíra em companhia de outros ao verificar a presença, naquela área, do tenente-coronel Alexandre Teotonio de Sousa. De sua parte, o escravo carapina informou que Luís de França Pires o convidara “dias antes”… “para huma função”, mas sem definir de que e onde. Na acareação, Luís de França Pires confirmou que não o convidara para o levante, mas que Manuel Faustino lhe confiara que o fizera, ao que se podia colocar alguma reserva, porque o aprendiz de alfaiate “tratava do levante” com “muita publicidade”. Também confirmou que conversara com o escravo carapina ao voltar da reunião no Campo do Dique.
No mesmo dia dessa acareação, o desembargador Costa Pinto mandou buscar Manuel Faustino no segredo e passou a comparar as declarações. Indagado se havia convidado João Pires para o levante, Manuel Faustino negou e disse que não lhe falara “couza alguma”, negando também que tivesse dito a Luís de França Pires que fizera ao escravo carapina convite para o levante. Acareado com Manuel Faustino, Luís de França Pires quis insistir na sua informação, mas a firme negativa do aprendiz de alfaiate o levou a concordar que se enganara. Dessa forma, o desembargador Costa Pinto encerrou mais esse ato da devassa.
Ao incluir o escravo João Pires na defesa dos acusados, José Barbosa de Oliveira não deixou um só item das acusações sem contestação. Começou acentuando não haver o menor indício de participação do escravo carapina “no crime do levantamento.” E por aí seguiu argumentando até chegar à única acusação que se sustentava: o silêncio que João Pires guardou das conversas com Luís de França Pires e Manuel Faustino dos Santos Lira. Para inocentá-lo, José Barbosa de Oliveira alegou sua extrema juventude, razão também para que não soubesse “do preceito da Ley.”
O escravo lacaio Manuel José de Vera Cruz
O lacaio Manuel José de Vera Cruz foi o quarto escravo de José Pires de Carvalho e Albuquerque preso. Era pardo, filho de escravos nascidos no Brasil. Mas há um detalhe que pede registro: é o único dos quatro escravos presos do Secretário Perpétuo vindo do interior da Capitania, da região do rio Real (não soube indicar qual a freguesia), terras da Casa da Torre. Tinha 30 anos e sabia ler e escrever. É possível deduzir que na sua condição de escravo, “que lacaiava” o seu senhor, podia se movimentar na cidade, sendo natural, portanto, que transitasse na casa de dona Maria Francisca da Conceição e Aragão, cunhada de José Pires de Carvalho e Albuquerque e madrinha de Manuel Faustino. Foi ali, provavelmente no mês de agosto, mas em algum dia antes da divulgação dos boletins ou papéis sediciosos que o aprendiz de alfaiate lhe indagou: “Se acaso aqui houvesse hum levante, tinha ânimo para entrar nelle?”
Manuel José de Vera Cruz declarou na devassa que respondeu de forma negativa, lembrando mais que acrescentara: “pedia a Deos o pozesse longe, para não assistir tal função.” Quando acareado com Manuel Faustino, o jovem forro e aprendiz de alfaiate confirmou que assim mesmo se passara. No entanto, na acareação com Luís de França Pires, Manuel de Vera Cruz procurou estabelecer prudente distância do escravo alfaiate de casa ao definir que não se davam bem. Relatou, então, que mesmo depois de preso, Luís de França Pires lamentara não ter envolvido as “escravas pardas” do Unhão em suas declarações, pois elas certamente seriam presas e os seus senhores ficariam até sem ter quem lhes servisse “agoa para lavarem o rosto.” Preso no alçapão, ao lado da sala fechada em que se encontrava Luís de França Pires, Vera Cruz ouviu quando ameaçou em voz alta: “cuidavão que não havião de vir para cá; hei de pollos todos comigo.” Luís de França não confirmou essa frase e negou que tivesse pretendido comprometer as “escravas pardas” do Unhão. Mas reafirmou o convite para o levante, revelação que disse ter escutado do próprio Vera Cruz. Por fim, testemunhou a má disposição do escravo lacaio para com ele, narrando, a propósito, que lhe enviara da prisão “a chave da sua caixa”, para que tirasse e lhe enviasse uma camisa limpa, pedido que Vera Cruz não atendera. Na verdade, nem a chave aceitara.
José Barbosa de Oliveira defendeu Manuel José de Vera Cruz acentuando que não podia ser incluído sob a acusação de crime de lesa majestade quem recusara o convite que lhe fizeram “para hum levante.”
O escravo José Pires
Houve mais um escravo preso, senão da propriedade, mas do círculo familiar direto de José Pires de Carvalho e Albuquerque. Foi José Pires, a quem chamavam o Tobias. Pertencia à cunhada do Secretário Perpétuo, Maria Francisca da Conceição e Aragão, por sinal filha do falecido morgado José Pires de Carvalho e Albuquerque, vínculos que permitiram ao senhor do Unhão chegar à casa de Maria Francisca, na manhã de 3 de outubro e ordenar que José Pires e Fortunato da Veiga Sampaio6, pardo forro, ali residente, fossem se apresentar na cadeia do Tribunal da Relação, “para huma averiguação.” Obedeceram, como deviam, e ficaram presos.
José Pires era pardo, filho de escrava jeje, cozinheira na mesma casa de Maria Francisca da Conceição e Aragão em que ambos eram escravos, e de escravo pardo já morto na ocasião desses acontecimentos. Tinha 26 anos e ofício de alfaiate, do qual não se ocupava por ser mais utilizado para acompanhar e carregar sua dona. Interrogado, no dia seguinte ao de sua prisão, negou qualquer conhecimento com Lucas Dantas de Amorim Torres. Mas relatou o diálogo que tivera com Manuel Faustino dos Santos Lira, morador na casa de Maria Francisca, sua madrinha. Isso teria ocorrido “depois da Quaresma”, em data indefinida, mas certamente antes da divulgação dos famosos boletins sediciosos. De acordo com o que transmitiu ao desembargador Costa Pinto, e que manteve nas acareações, Manuel Faustino lhe perguntara “se queria ser forro”, ao que respondera “que sim”, dizendo-lhe, então, o jovem aprendiz de alfaiate que ele “se pozesse pronto.” Por sua vez, ele dissera: “estava pronto”, resposta que repetiu depois, quando, ao passar na frente da casa de Lucas Dantas, fora novamente indagado por Manuel Faustino “se estava pronto.”
Acareado com José Pires, Manuel Faustino apresentou outra versão para o diálogo, esse mais ajustado à linha dos convites que ele fez para “hum levante.” Conforme Manuel Faustino, ele lhe perguntara “se ouvisse nesta Cidade a voz da Liberdade, estava pronto para a defender?”, escutando de José Pires “que sim ”, resposta repetida na ocasião em que o viu passar na frente da casa de Lucas Dantas e voltou a formulá-la, embora dessa vez de modo sucinto: “estava pronto?” Esclareceu Manuel Faustino que não falara do levante a José Pires em respeito a uma orientação de Lucas Dantas, que lhe recomendara cuidados com os convites, para que não se tornassem públicos e assim chegassem ao conhecimento das autoridades. Indagado e instado para dizer a verdade, o escravo José Pires negou que Manuel Faustino tivesse falado em liberdade, mas só se “queria ser forro”, pergunta que entendeu como referente ao seu conhecido desejo de ser alforriado juntamente com sua mãe. Respondera “estava pronto” na certeza de que Manuel Faustino poderia ajudá-lo no pedido de alforria por causa de sua condição de afilhado e residente na casa de Maria Francisca da Conceição e Aragão.
Naquele mesmo dia 6 de outubro foi acareado com Luís de França Pires: o escravo alfaiate de casa revelara que Manuel Faustino lhe dissera ter convidado José Pires “para o levante”, de cuja verdade se convencera ao vê-lo detrás do muro do Convento e escutá-lo dizer que ia levar a sua dona até em casa, mas voltava. Mostravam-se, contudo, os dois, tão desencontrados no que diziam, que o desembargador Costa Pinto determinou que se acertassem antes sobre o que iam falar – uma concessão surpreendente! – o que tentaram, mas não conseguiram. Novamente interrogados e acareados, eles se mantiveram nas suas versões, sendo que o Tobias argumentou que ele não podia saber da reunião no Campo do Dique do Desterro porque saíra de casa com Maria Francisca da Conceição e Aragão às 5 da manhã, acompanhando-a então à propriedade que ela tinha no caminho de Brotas, onde ficaram durante todo o dia. No regresso é que tinham visto Luís de França Pires, João de Deus e Joaquim José da Veiga. O desembargador Costa Pinto encerrou a acareação, mas não deixou de incluí-lo entre os acusados.
José Barbosa de Oliveira o defendeu. Acentuou na defesa que o encontro com Luís de França Pires só ocorreu porque ele passava em companhia de sua senhora, e que indagara “onde hião?”, não tendo acrescentado que ia voltar.
O escravo José Félix (José Félix da Costa)
Escravo de Fancisco Vicente Viana, José Félix era filho de homem branco, cujo sobrenome, da Costa, foi-lhe incorporado no curso da devassa, e de parda escrava falecida. Sabia ler e escrever, mas não possuía ofício certo. Ele apenas lacaiava o seu senhor. Mas tendo declarado que tinha 22 anos, o desembargador Costa Pinto convocou o bacharel José Teixeira da Mata Bacelar para ser seu curador, comportamento processual adotado com outros presos de menor idade.
Preso por iniciativa do seu senhor, esse escravo produziu declarações extensas e ricas de revelações. No particular, foi o escravo preso que mais falou. Começou dizendo que sabia estar preso “por causa de huma rebelião e levante projectados” na cidade do Salvador e para os quais fora convidado pelo soldado do regimento da Artilharia, Lucas Dantas de Amorim Torres, marceneiro nas horas de folga do quartel. Em dia impreciso do mês de agosto, mas certamente antes da divulgação dos boletins sediciosos, Lucas Dantas viu quando ele passava no Terreiro de Jesus, e o chamou. Atendeu. Na casa de Lucas Dantas (em verdade, um quarto de frente no térreo de um sobrado vizinho ao de dona Catarina Correia de Aragão) já encontrou Manuel Faustino dos Santos Lira. Lucas Dantas lhe teria dito então que há dias o procurava para “comunicar hum particular em benefício de todos”, passando logo a lhe revelar a existência de preparativos para “hum levantamento” que até possuía a concordância de “muitas Pessoas Principaes”, inclusive o governador e capitão geral da capitania da Bahia, dom Fernando José de Portugal, além dos regimentos dos pretos e dos pardos. Continuando nessa incontinência verbal, que todavia não condiz com o comportamento de Lucas Dantas nos episódios do movimento de 1798, o soldado e marceneiro o convidou para um levante que tinha como proposta “reduzir o continente do Brazil a huma República”, já existindo dia previsto para eclodir: o que coincidisse caber à Artilharia a guarda do palácio dos governadores, pela garantia da adesão dos oficiais. Teria declarado mais que “as Pessoas Principaes” esperavam auxílio do estrangeiro, tanto que haviam enviado cartas, mas não sabia para onde. O motivo apresentado para desejarem a república era para “evitar o grande surto, que o Príncipe faz a praça desta Cidade”, deixando-a sem comboio para os navios, situação que deixava os comerciantes a “pedirem huma esmola”. Como se não bastasse o quanto já transmitira, Lucas Dantas teria confidenciado que o levante contava com a participação de “mais de trezentas pessoas”, somando-se a elas os escravos dos engenhos de “Ferrão e Bolcão”.7 Escutando tudo isso, José Félix indagou quais os benefícios que teriam com o Brasil transformado em república. Lucas Dantas teria respondido: “He para respirarmos livres, pois vivemos sujeitos, e por sermos pardos, não somos admitidos a acesso algum, e sendo República há igualdade para todos”.
Enquanto conversavam, sempre assistidos por Manuel Faustino dos Santos Lira, que reforçava cada frase de Lucas Dantas, chegou o soldado Luís Gonzaga das Virgens e Veiga. “Vinha bastante aflicto”, testemunhou José Félix. Vendo-o assim, Lucas Dantas interrompeu o que falava e perguntou: “Que tem bom amigo?”. Luís Gonzaga respondeu que estava “agoniado, e capaz de morrer” pelo que sofria no quartel sob as ordens de cabos de esquadra e cadetes. Lucas Dantas o sossegou: “Deixa bom amigo, que isto breve ha de acabar”. José Félix se despediu, mas, antes que saísse, Lucas Dantas quis saber o que respondia ao que lhe falara. Ele declarou ao desembargador Costa Pinto que prometera dar a resposta depois, assim surpreendendo Lucas Dantas, ao que parece certo de que já tinha sido conversado pelo soldado Romão Pinheiro.
Muito espertamente, o escravo José Félix registrou nesse interrogatório que saíra da casa de Lucas Dantas sem acreditar no que escutara. Na manhã seguinte, porém, encontrou o soldado Romão Pinheiro na praça da Piedade e lhe indagou “que histórias eram humas que no dia antecedente lhe tinha contado” um soldado da Artilharia — e aqui deu a entender ao seu inquisidor que ele nem sabia o nome de Lucas Dantas, disfarce que não serviu para inculpá-lo. Do soldado granadeiro Romão Pinheiro ouviu: “Já agora temos muita gente boa, metida na dança, e hade-se executar o nosso intento infalivelmente”. Estavam nisso quando lhes apareceu Lucas Dantas, que ia em direção do quartel da Artilharia, no forte de São Pedro. Ele e Romão Pinheiro se saudaram com “vivas” (seria uma espécie de senha) e se despediram. Despedindo-se também, Romão Pinheiro seguiu para o forte da Palma, quartel da infantaria (granadeiros), regimento pago em que serviam ele e Luis Gonzaga das Virgens e Veiga.
Ainda naquele mês de agosto de 1798, mas já agora em dia identificado – exatamente o dos boletins sediciosos – conversava na loja do escravo cabeleireiro Francisco Vilaça, localizada na parte baixa do sobrado do seu senhor, Francisco Vicente Viana, quando chegou Luís Gonzaga das Virgens e Veiga e lhe disse que soubera do aparecimento de “huns pasquins” e que estava ansioso para conhecê-los. Declarou o escravo José Félix que respondera não ter notícia e que se desejasse ver os “pasquins” procurasse quem os tivesse. Continuando a fazer assim revelações que comprometiam terceiros e o deixavam como simples espectador, o escravo José Félix narrou que, na tarde de 25 de agosto, foi procurado por Manuel Faustino. O jovem forro vinha lhe avisar que se encontrasse à noite no Terreiro de Jesus, “onde havião de estar os mais da Sociedade”, em número de oitenta, “e bastantes para a empreza intentada”, acrescentando que no dia seguinte dariam as senhas, sem dizer de que. José Félix teria respondido que “procurasse os grandes” com que já contava no seu partido, porque ele não se envolvia – e como já estava sobre essa linha, também aproveitou para afastar possíveis suspeitas sobre o escravo cabeleireiro Francisco Vilaça, depondo para o desembargador Costa Pinto que ele o aconselhara não se envolver “com semelhante canalha”.
Perguntado se fora ao Terreiro de Jesus, garantiu que não. Mas disse que, naquela noite, estava passeando (fazia belo luar) na rua de São Pedro quando o soldado Romão Pinheiro o procurou. Por causa da clara luz da lua, viu bem o instante em que ele entrou no sobrado de Francisco Vicente Viana. Apressou-se em ir ao seu encontro. Romão lhe falou que era “ocasião do convite que lhe tinha feito”. No seu papel de quem sabia do levante, mas não participara de sua articulação, o escravo José Félix declarou ao desembargador Costa Pinto que procurara dissuadir seu amigo. Romão, contudo, teria insistido: “Agora havemos de ver o fim, queremos por o peito à bala. Tenho minha espada amolada (segundo José Félix, para mostrá-la, ele a tirou um pouco da bainha). Hoje he que eu vi dinheiro. E vosse procure-me huma ou duas pistolas”. Depois de pequena interrupção, causada pela presença do pardo escravo cabeleireiro Salvador, que lhe falou, mas seguiu caminho, Romão Pinheiro continuou: “Haverá negros de aluguel que queirão ganhar nesta noite, cada hum, huma ou duas patacas, que he para irem comigo?”. José Félix disse que não sabia, e Romão Pinheiro se despediu. Reapareceu, porém, às nove da mesma noite, e na presença do pardo escravo cabeleireiro Francisco Vilaça, advertiu-o que nada falasse, concluindo em seguida: “Estamos perdidos todos”. Ainda bateu com as mãos na cabeça e exclamou: “Estou perdido, adeus”. Despediu-se. Mas voltou na manhã do dia seguinte (é o dia 26, começo das prisões) para avisar que Joaquim de Santana os “vendera”. E quis cortar o cabelo bem curto, evidentemente para se disfarçar, mas o escravo cabeleireiro recusou.
No decurso dessas vindas e idas do soldado Romão Pinheiro, na noite de 25 de agosto, aconteceu a passagem do capitão da milícia dos pretos, Joaquim José de Santana, no sobrado de Francisco Vicente Viana, a quem ele penteava e cortava o cabelo, e com quem teria se aconselhado a respeito do convite de João de Deus, indagando então o que fazer e ouvindo como resposta que fosse denunciar tudo ao governador dom Fernando José de Portugal. A participação do escravo José Félix nesse episódio é quase tão confusa quanto a do próprio Francisco Viana e a do seu primo, Luís de Sousa Viana, que teria procurado o futuro 1° barão do Rio das Contas, na tarde de 25, para avisar que Joaquim José de Santana fora a palácio denunciar o levante e ali ficara preso. Deixara esse recado. José Félix relatou que o capitão dos henriques aparecera depois: nove da noite de 25. E porque o estivera procurando a mando do seu senhor, que desejava saber se ele fora realmente preso, cuidou de ir ao seu encontro e de lhe repetir o aviso de Luís de Sousa Viana e a aflição em que ficara Francisco Viana ao saber que ele estava detido “no palácio”. Às suas palavras, contudo, Santana reagiu com ira, negando sua ida à casa dos governadores e se retirando “inflamado”.
Imediatamente o desembargador Costa Pinto contestou José Félix e o acusou de faltar a verdade, pois Santana já revelara que ele o tinha “increpado” de traidor do levante, atitude que mostrava seu interesse nele. Sob esse interrogatório, José Félix ainda soube usar a inteligência, registrando que tanto ele não aceitara o convite como não acreditara na fala do soldado Lucas Dantas. Era verdade, declarou, que se guardara de fazer revelações, mas fora por causa das palavras de Lucas Dantas sobre aquiescência do senhor governador “e outras Pessoas de Graduação” para com o movimento. Calara-se, acentuou, visto não ser conveniente “publicar semelhante couza”. Mas reconheceu que só revelara ao seu senhor o convite de Lucas Dantas, e o mais que se seguira, cinco dias após as primeiras prisões, e assim mesmo depois de aconselhado por dois oficiais do 2º Regimento pago, ambos filhos de oficiais de patente.
Chamado a depor, Francisco Vicente Viana, ex-Ouvidor da Comarca da Bahia, naquele então aos 44 anos, ele disse que fora alertado pelo escravo Francisco Vilaça do que se passava com o seu escravo José Félix. Por isso o chamara e o escutara confirmar ter sido convidado para uma “revolução e ataque” em dia a ser marcado na reunião no Campo do Dique. Contou que embora “aturdido”, conduziu os escravos José Félix e Francisco Vilaça à presença do governador. Acrescentou em seguida ser voz pública que se tentara “hum levantamento” na cidade, com saques e mortes, “para effeito de se estabelecer nella hum Governo Democrático Livre”. Citou responsáveis: Luís Gonzaga das Virgens e Veiga (suposto autor dos boletins de 12 de agosto), Lucas Dantas de Amorim Torres, Manuel Faustino dos Santos Lira, Luís Pires, José do Sacramento, João de Deus do Nascimento, Luís de França Pires, Romão Pinheiro,n “e outros”. A João de Deus ele classificou de “carácter insollente e dezavergonhado”, capaz de entrar na “diabólica empreza”.
Temos mais um episódio com o escravo José Félix, em abril de 1799. Naquele mês, o desembargador Costa Pinto enviou carta ex-ofício para o juiz de fora de vila da Cachoeira, ordenando-lhe, em nome da rainha Maria I, que examinasse se José Félix entregara 100$000 a um tal Thomás de Faria, para que o guardasse, pois o destinava à compra de sua alforria, já arbitrada em 300$000. O desembargador Costa Pinto mandava sequestrar o dinheiro. Isso nada tem a ver com o levante, mas acrescenta novos elementos ao pouco que se sabe do escravo José Félix da Costa.
José Félix dizia ter acompanhado Tomás de Faria numa viagem entre Cansanção e Cachoeira, em junho de 1798, e que depois disso ele o procurara na cidade do Salvador, ocasião em que lhe declara o propósito de ajudá-lo. Por isso lhe dera para guardar o dinheiro que já possuía para a sua alforria: 100$000. Tivera recibo, datado de 28 de junho de 1798, e ainda indicava possível testemunha: a meretriz branca em cuja casa estivera com Tomás de Faria. Contudo, não obstante diligências feitas até no alto sertão, nada se descobriu desse Tomás de Faria. Mas deve-se observar que o desembargador Costa Pinto não fez qualquer indagação a Francisco Vicente Viana; ele deveria saber ao menos da viagem do seu escravo. De resto, o desembargador Costa Pinto estabeleceu silêncio sobre declarações de José Félix que se fossem aprofundadas poderiam levar às “Pessoas Principaes” que teriam estimulado Lucas Dantas de Amorim Torres e Manuel Faustino dos Santos Lira para os convites que fizeram a pardos forros e escravos “para hum levante ”.
Defendendo o escravo José Félix da Costa, José Barbosa de Oliveira argumentou que não havia qualquer prova de sua participação entre os “confederados no crime da sublevação”. Mostravam os autos, isso sim, que ele soubera que se pretendia formar “hum levante ”, conforme os convites de Lucas Dantas e Romão Pinheiro. Mas ele não os aceitara. No entanto, só se capacitara da gravidade da situação ao se aconselhar com dois oficiais militares seus conhecidos. Depois falara com o seu senhor e fora conduzido à presença do governador e ficara preso. Em conclusão, o advogado José Barbosa de Oliveira pediu que se diminuísse sua pena – já se sabia então que era deportação para a Africa – alegando sua ignorância.
O escravo sapateiro Luís Leal
O escravo sapateiro Luís Leal foi outro que logo no primeiro interrogatório reconheceu saber o motivo de sua prisão: um convite do soldado Romão Pinheiro. Escravo de Manuel José Vilela de Carvalho, Luís Leal era natural de Alagoas, filho de pardo forro, já morto, e de parda escrava ainda viva. Ele sabia ler e escrever. Tinha 26 anos e o ofício de sapateiro. E conhecera Romão Pinheiro no dia em que o acompanhara com outros soldados para identificar um soldado que andava “vadeando” e devia ser preso, o que fizera atendendo ordens do seu senhor.
Contou que o encontro e conversa com o soldado Romão Pinheiro se dera no final da tarde de 24 de agosto, na casa do seu senhor, aonde exercia o seu ofício de sapateiro. Romão Pinheiro lhe teria falado que ele “e muitos outros” tinham acertado “fazer um insulto” (Luís Leal não soube precisar se a palavra utilizada foi insulto ou impulso) com o qual “muita gente” ficaria feliz, mas que os planos iniciais estavam alterados com a prisão do soldado Luís Gonzaga das Virgens e Veiga. Por isso, a nova decisão era antecipar a ação antes que Luís Gonzaga falasse. Romão Pinheiro teria continuado por essa linha até chegar ao convite para uma “ação em que podia ser feliz”, sobretudo por ser escravo. Mas Luís Leal recusara. Ele depôs que pedira ao soldado que se retirasse, declarando-lhe até que “vivia contente” com o seu viver de escravo. Contudo, dias depois ligou esse convite às prisões “por causa de hum levantamento, que se projectava fazer nesta cidade”. Relatara, então, ao seu senhor o que acontecera e fora preso.
Interrogado pelo desembargador Costa Pinto, manteve-se no que declarara, a vista do que o responsável pela devassa não gastou tempo com ele. Mas o incluiu entre os acusados. Em sua defesa, o advogado José Barbosa de Oliveira firmou-se que Luís Leal era “absolutamente isento de qualquer culpa”, essa defesa facilitada por declarações de Lucas Dantas e Manuel Faustino, que não reconheceram no escravo sapateiro um participante ou como um dos “rapazes da sociedade”.
O escravo cabeleireiro Felipe Néri
Também esse preso era escravo de Manuel José Vilela de Carvalho. E sucedeu-lhe, também, como ao escravo Luís Leal, depor contra um acusado. No seu caso, depôs contra João de Deus do Nascimento.
Pardo, de 25 anos, ele declarou que na manhã de 25 de agosto passava pela rua Direita da Misericórdia quando ali encontrou João de Deus. Logo o mestre alfaiate o abordou perguntando se ele queria ir “a huma função” naquela noite. Quis saber de que e onde. João de Deus teria informado “que era huma função de raparigas na fonte das pedras”, ao que ele recusara, alegando que o seu senhor não lhe permitia sair à noite. No entanto, no dia seguinte a esse encontro, ao saber que o mestre alfaiate fora preso “por andar convidando algumas pessoas para hum levante”, relatou a Manuel José Vilela de Carvalho o que se passara, seguindo-se daí a sua prisão.
José Barbosa de Oliveira o classificou “isento de culpa”.
O escravo alfaiate Cosme Damião Pereira Bastos
Escravo de aluguel, alfaiate, o pardo Cosme Damião Pereira Bastos era filho de homem branco, ainda vivo, e de escrava já falecida. Seu senhor, Joaquim Pereira Bastos, o alugava. Como declarasse ter 21 anos, o desembargador Costa Pinto nomeou seu curador o bacharel José Teixeira da Mata Bacelar, comportando-se este como nos outros casos: limitou-se a compor a formalidade processual; não o defendeu.
Cosme Damião começou negando. Não sabia o motivo de sua prisão; não tinha sido convidado para qualquer levante ou reunião. Mas o desembargador Costa Pinto o apertou, insistiu e revelou o quanto já conhecia de suas ligações com Manuel Faustino e Lucas Dantas. Dessa forma, o escravo Cosme Damião reconheceu sua “particular amizade” com o jovem forro e aprendiz de alfaiate, e depôs que ele tentara persuadi-lo a se preparar “para entrar em hum levante pela liberdade”, coisa que não aceitara. Declarou mais que, na manhã de 25 de agosto, Manuel Faustino o convidara para uma reunião no Campo do Dique, e ele voltara a recusar, mas alegara que ia para a vila de São Francisco do Conde. Recordou, também, que, certa feita, Lucas Dantas começou a lhe falar numa romaria para a qual desejava convidá-lo, mas que Manuel Faustino o interrompera, dizendo “que não o convidasse”.
Acareado com Manuel Faustino, o aprendiz de alfaiate voltou a confirmar que o convidara “para hum levante, afim de se conseguir a Liberdade”, ao que Cosme Damião resistira, mas só a princípio, porque depois aceitara, motivo do convite que lhe fizera para a reunião no Campo do Dique. Esclareceu, porém, que deixara de entrar em detalhes sobre o levante, seguindo orientação de Lucas Dantas, “a fim de não saberem todos os que entrassem no levante, de todas as circunstâncias”… “e assim se fazerem públicas”. Aparece aqui uma data precisa para o primeiro convite: 1º de agosto. Antes, portanto, dos boletins sediciosos. Cosme Damião confirmou essa data, mas se manteve repetindo que recusara os convites.
José Barbosa de Oliveira defendeu a inocência do escravo Cosme Damião. Por isso mesmo registrou não haver qualquer prova nos autos de que ele fosse “do n. dos principaes tratadores” ou do “num. dos confederados”. Aceitava que ele estivera na casa de Lucas Dantas, mas destacou que ele não o escutara “tratar do levantamento”, além de que, no dia da reunião no Campo do Dique do Desterro, viajara para a vila de São Francisco do Conde.
O escravo de aluguel alfaiate Vicente
E eis que chego ao único africano preso e processado por causa do movimento de 1798. Escravo de aluguel de Bernardino de Sena e Araújo, de ofício, alfaiate. Não sabia os nomes dos pais africanos nem localizou o trecho da Costa da Mina de onde viera escravo para a Bahia. O auto do 1º interrogatório o qualificou mina (em outro auto aparece como jeje), expressão vaga e que não serve para indicar sua tribo de origem, Contudo, muito embora não soubesse escrever o português, ele o falava com algum desembaraço o que pode significar que já tinha tempo de escravo na Bahia.
Alfaiate, trabalhava na oficina do mestre João de Deus do Nascimento, por duas patacas por semana. Note-se: tudo quanto fez na tarde de 25 de agosto – e mesmo o que cumpriu no domingo 19, dia em que levou um recado de João de Deus para o pardo ferrador Joaquim José da Veiga – foi em respeito ao contrato que o alugara e o tornara submisso às ordens do mestre da oficina em que trabalhava. Note-se mais que, talvez por causa de sua condição de escravo africano, não há convites para ele, seja para o levante, seja para a reunião no Campo do Dique do Desterro, à qual, todavia, compareceu, mas atendendo determinação de João de Deus, que a podia fazer porque o alugava.8
Suas revelações são igualmente valiosas para a reconstrução do episódio de 1798 grifado como “reunião no Campo do Dique do Desterro”. No interrogatório de 29 de agosto, ele narrou que ali estivera seguindo determinação de João de Deus, que o teria retido na sua hora de ir para casa, levando-o então para a praça do Palácio, onde encontraram o soldado e alfaiate Inácio da Silva Pimentel. Desceram dali para o Guadalupe e encontraram o cabeleireiro e capitão da milícia dos pretos Joaquim José de Santana, com quem foram até o alto do Dique, a uma roça na qual deveriam encontrar outras pessoas. A mando de João de Deus, chegou a ir à beira do Dique, mas não encontrou qualquer pessoa, o que comunicou ao mestre alfaiate e pediu para se retirar. Contudo, no interrogatório de 3 de novembro, modificou essa história. Já agora João de Deus o detém nas Ave Maria e lhe ordena esperar Joaquim José de Santana, a quem devia dizer que fosse “aparte que elle sabia”. Seguem-se daí as movimentações da ida para o Campo do Dique. Mas, no essencial, o escravo africano narra o que viu. Às oito horas da noite, pediu a João de Deus para se retirar e se retirou.
Os relatos do escravo Vicente revelam que a obediência a João de Deus vinha de sua condição de escravo africano. Com ele não há um só instante de aproximação ou camaradagem como a descrita nos encontros com escravos pardos nascidos no Brasil, mesmo quando as restrições da conspiração não permitiram detalhes a respeito do levante para o qual eram convidados. Veja-se que Manuel Faustino e Cosme Damião eram amigos e que o soldado Romão Pinheiro também era amigo do escravo José Félix. No caso do escravo Vicente, há distância, como na ocasião em que João de Deus, Joaquim José da Veiga, José do Sacramento e Inácio da Silva Pimentel afastaram-se dele para uma conversa que ele não devia escutar, embora reunidos pelos assovios que ele deu a pedido do denunciante Joaquim José da Veiga. Tais comportamentos são intrigantes e merecem análise que escapa à linha deste trabalho. Mas tomo a licença de chamar a atenção para mais esse aspecto – o tratamento dado a um escravo africano – no movimento de 1798. Ele sugere que os partidários fizeram diferenças entre escravo pardo e escravo africano. Ao menos foi assim no exemplo do escravo mina (ou jeje) Vicente. Mas ainda há outra declaração do preto Vicente que aquece a sugestão que estou fazendo. É a que está quando ele depõe que o mestre alfaiate dizia abertamente “que aborrecia negros”.
Ao defender o escravo Vicente, José Barbosa de Oliveira destacou que era costume o escravo aprendiz obedecer ao mestre da tenda. Justificou, assim, o escravo Vicente ter acompanhado João de Deus ao Campo do Dique. Mas também destacou que se tratava de “hum preto rústico, escravo, e ignorante, que por isso não era chamado para couza alguma “. Quero ressaltar essa frase – toda ela – no contexto da cidade do Salvador daquele final do século XVIII. Como tudo que se refere ao africano Vicente, pede meditação.
Condenações
Dos escravos pretos e processados, cinco foram libertados, cinco condenados, sem contar o escravo boleeiro Antonio José, morto na cadeia. Dos cinco libertados, somente um era dos escravos de José Pires de Carvalho e Albuquerque; seus outros escravos tiveram condenações. O escolhido para voltar ao casarão do Unhão foi o carapina João Pires. Mas ter sido ele libertado das acusações e mandado sair da cadeia não significa que a justiça se tenha feito no seu caso. Em verdade, como em todos os episódios políticos reprimidos no Brasil, seja no período colonial, seja na e no após Independência, a justiça foi sempre o que menos esteve em causa. Com efeito, valeram muito mais as circunstâncias políticas e o imediato – e até o capricho das autoridades repressoras. Os exemplos de 1798-1799 não fogem a essas características.
Os outros três libertados foram: Luís Leal, Felipe Néri, José Pires, o Tobias, e o escravo africano Vicente.
Dos cinco condenados, três eram escravos do Secretário Perpétuo: Luís França Pires, Inácio Pires e Manoel José de Vera Cruz. Por que os escravos Inácio Pires e Manoel José de Vera Cruz? Principalmente, por que o jovem escravo Inácio Pires, reconhecidamente sujeito a crises de perturbação mental? Não tenho resposta para tais indagações. Mas não afasto a possibilidade de existir nessas condenações um aviso a José Pires de Carvalho e Albuquerque, de quem pouco se sabe, não obstante Borges de Barros e Afonso Ruy o terem incluído entre os membros da obscura organização maçônica Cavalheiros da Luz.9
Os dois outros condenados foram: José Félix e Cosme Damião Pereira Bastos.
As condenações variaram, mas todas as cinco se afirmaram exageradamente severas, outro toque que lhes revela o caráter de advertência, de intimidação. Dessa forma, os pardos escravos Luís de França Pires e Cosme Damião Pereira Bastos foram deportados para a África, o primeiro para região africana fora dos domínios de Portugal, e o segundo, para Angola. Antes de embarcarem, deviam ser açoitados e depois conduzidos à praça da Piedade para assistirem o enforcamento e esquartejamento de Lucas Dantas de Amorim Torres, Manuel Faustino dos Santos Lira, João de Deus do Nascimento e Luís Gonzaga das Virgens e Veiga, mártires do movimento de 1798.
Os escravos Manoel José de Vera Cruz e Inácio Pires foram condenados ao açoite e ao banimento.
Todas as condenações foram executadas, muito embora o advogado José Barbosa de Oliveira tenha lutado bravamente contra essas e todas as demais, embargando-as três vezes às vésperas das execuções. Em todas utilizou notável erudição jurídica. Afirmou e reafirmou a falta de provas materiais e o total desrespeito à legislação vigente, das Ordenações Manuelina e Filipina às Leis Extravagantes, sem deixar de parte a 9ª Carta Régia de 21 de Novembro de 1757, feita por ocasião do famoso levante na cidade do Porto.
* Professor titular da UFBA. A pesquisa para este texto contou com o patrocínio do CNPq. Mantivemos apenas a notas indispensáveis à compreensão do texto.
NOTAS
1Publicados em épocas distanciadas e sem prévio arranjo das peças processuais, os Autos das Devassas presididas pelos desembargadores Avellar de Barbedo e Costa Pinto estão divulgados nos volumes XLIII, XLIV e XLV dos Anais da Biblioteca Nacional (ABN) e nos volumes XXXV e XXXVI dos Anais do Arquivo Público do Estado da Bahia (AARQUEB). Os manuscritos utilizados para essas edições se encontram na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e na Seção do Arquivo Colonial e Provincial do Arquivo Público do Estado da Bahia.
2Para maiores informações sobre o movimento baiano de 1798. ver: AMARAL, Braz do, Conspiração Republicana da Bahia de 1798. In: Fatos da Vida do Brasil. Bahia, Tipogr. Naval, 1941; BORGES DE BARROS, Francisco, Os Confederados do Partido da Liberdade, Salvador, imprensa Oficial, 1922; MATTOSO, Katia, Presença Francesa no movimento democrático baiano de 1798, Col. Baiana, Editora Itapuã, 1969; RUY, Affonso. A Primeira Revolução Social Brasileira, 2ª ed., Bahia, Tipogr. Beneditina, 1951; TAVARES, Luis Henrique Dias, O Movimento Revolucionário Baiano de 1798 (tese de concurso), Bahia, Imprensa Oficial, 1961: História da Sedição Intentada na Bahia em 1798, São Paulo, Pioneira, 1975.
3ABN, vol. XLV, p. 185-302.
4A grafia dos nomes está atualizada.
5CALMON, Pedro. A Casa da Torre. Rio de Janeiro, José Olympio, 1958.
6Esse pardo forro, rapaz de 17 anos, era filho de homem branco, o sargento-mor José da Veiga Sampaio e de escrava já falecida. Possuía escravos e propriedades, como alegou em sua defesa. Mas foi acusado de participação no levante por causa das visitas que fizera ao professor Francisco Moniz Barreto, em companhia de Manuel Faustino. Ver: AARQUEB, vol. XXXV, p. 216-24.
7Existindo dúvidas, prefiro não identificar esse Ferrão. Mas o Bolcão deve ser Joaquim Inácio de Siqueira Bulcão, senhor do engenho Desterro e que respondeu a um interrogatório (Ver: AARQUEB, vol XXXV, p. 256-7).
8AARQUEB, vol. XXXV, p. 230, item 8: “tinha todo o domínio nelle”.
9BARROS, Francisco Borges de. Os Confederados do Partido da Liberdade. Salvador, Imprensa Oficial, 1922; RUY, Afonso, A Primeira Revolução Social Brasileira, 2ª ed., Tipogr. Beneditino, 1951.