(HP 07/09 a 10/10/2012)
“A alta finança estendeu seus tentáculos sobre o Brasil e está sugando tudo. E o governo toma as medidas em defesa dos interesses dessa política, que não pode ser uma política de Estado, porque é nociva, contraproducente e agressiva às forças do trabalho e benéfica somente às forças de especulação”. Com o texto abaixo, terminamos a publicação da primeira série dos pronunciamentos de Getúlio Vargas no Senado
GETÚLIO VARGAS
A criação do monopólio do dinheiro, que se está efetuando no Brasil, representa uma das mais impressionantes ofensivas do poder financeiro contra a produção e contra os valores do trabalho e da iniciativa. As letras do Tesouro, emitidas como pagamento da retenção de 20% sobre as exportações, formam, nesta época, um dos melhores negócios de ágio, retirando ainda mais recursos da atividade produtora. A alta finança, que tinha perdido o controle sobre a economia brasileira devido à ação do governo, que facilitava aos produtores os recursos necessários todas as vezes que os grupos financeiros os negavam, domina o presidente da República e está governando o país.
As forças de produção estão sendo subjugadas e aniquiladas. Não se pensa mais em economia, não se pensa mais em produção, só se está cuidando, no Brasil, em fazer o jogo dos grupos financeiros que, possuidores de dinheiro, desejam valorizá-lo a todo custo com sacrifício dos que não o possuem e dele precisam para desenvolver a sua atividade.
No choque entre as forças da finança e da indústria, quem sofre é o trabalhador, condenado brutalmente, por essa luta, a conhecer misérias e angústias maiores do que as que já tinha de suportar. Nega-se ao trabalhador uma parcela de dinheiro para reajustamento de seus salários alegando-se que isso afetará o custo da produção. Mas aumenta-se a parcela de juros do dinheiro, que hoje só circula em câmbio negro. O custo da produção não baixa. Antes pelo contrário: com a redução de meios para desenvolver-se, esse custo aumenta cada vez mais. E a ele se acresce o dos financiamentos, que só se efetuam sub-repticiamente, na base de empenhos e naturais comissões.
A alta finança estendeu seus tentáculos sobre o Brasil e está sugando tudo. E o governo toma as medidas em defesa dos interesses dessa política, que não pode ser uma política de Estado, porque é nociva, contraproducente e agressiva às forças do trabalho e benéfica somente às forças de especulação.
Em lugar de se preocupar com as especulações, o governo cria a grande especulação, a maior de todas, aquela que é síntese de todas as especulações, porque é a especulação do dinheiro.
Todos sabem que o crédito deixou de ser um fato para ser apenas uma palavra. E um governo que não dá créditos às forças de produção nacional, um governo que sustenta a política de retenção de créditos, não pode esperar do povo outra resposta que não seja a retenção do seu crédito em relação ao êxito de sua administração.
MEDIDAS
Argumento com fatos, com dados positivos, com o panorama que se desdobra aos nossos olhos. Não me venham com teorias, com doutrinas para outras épocas, outros povos e condições de vida diferentes das nossas. As teorias muitas vezes pouco valem fora dos teoristas. Elas passam como as modas e se esfacelam diante da realidade.
Quando deixei o governo, a administração que me sucedeu pôs à venda o ouro que se achava depositado no Banco do Brasil. Ninguém foi comprar. O povo acreditava no valor do seu papel-moeda. Não havia sido feita a menor restrição de crédito. Não se havia diminuído a moeda escritural. Mas havia confiança. Hoje, não há mais dinheiro; ninguém mais dispõe de recursos; ninguém mais tem crédito. E não há também confiança.
Pela primeira vez na história política, econômica e social de São Paulo, reuniram-se os representantes de todas as classes produtoras daquele estado para pedir providências ao governo. A indústria e a lavoura, que vivem numa luta histórica e tradicional, esqueceram as divergências do passado. Desapareceram também as divergências entre indústria e comércio, que são tradicionais pelo conhecido antagonismo dos seus líderes. Era indispensável um acontecimento realmente excepcional para que todas essas correntes esquecessem divergências de interesses e choques pessoais. Todas essas forças, que representam a espinha dorsal da economia brasileira, estiveram sob o mesmo teto, na Bolsa de Mercadorias, e, unanimemente, aprovaram um memorial apresentado ao Sr. Presidente da República. Não é possível considerar especuladores todos os produtores de São Paulo.
Entre as providências solicitadas convém destacar as seguintes:
1) o estabelecimento de uma política econômico-financeira orientada no sentido da concessão de maiores facilidades de crédito;
2) o financiamento das atividades produtoras;
3) ampla liberdade de exportação ressalvando a retenção dos produtos alimentícios no volume indispensável à satisfação do abastecimento do mercado interno;
4) renovação e ampliação do plano de recuperação econômica da lavoura, chamado Plano de Emergência – amparo à produção de algodão ameaçado de desaparecimento – efetuando-se desde já, como início de cumprimento da promessa oficial, o pagamento aos maquinistas dos seus prejuízos, reconhecidos pela Nota do Ministério da Fazenda de 17 de setembro de 1946;
5) eliminação da retenção de 20% sobre as Letras de Exportação.
Os trabalhadores de São Paulo pedem muito menos. Pedem que lhes seja assegurado o direito de viver. Pedem, como cidadãos brasileiros, que não se lancem suas famílias ao desespero do desemprego. Pedem que não se transforme em miséria o que era esperança de bem-estar. Os trabalhadores paulistas não estão impondo, não estão exigindo. Estão pedindo a esta Casa que se lhes reconheça o direito de trabalhar. Estão pedindo ao Congresso brasileiro que se lhes assegure a possibilidade de existência. Estão quase implorando que não sejam condenados a morrer de fome.
PLANIFICAÇÃO
Nas afirmações do eminente líder do PSD sobre o café existem dois aspectos do problema: o que se relaciona com a valorização e o que se apresenta como a utilização do café para distribuição ao povo. Quanto ao primeiro, vem de 1911, com o Convênio de Taubaté. E a Colômbia não desenvolveu suas plantações depois de 1930 porque não fizemos mais valorizações. Nesse detalhe reside a diferença entre a política do café do meu governo e a anterior. O Departamento do Café defendeu o preço indispensável não só aos produtores como ao governo, porque o Brasil precisava de um preço razoável de café para obter cambiais. Café no Brasil é câmbio. Ninguém se esqueça. E quem se esquecer sofrerá as consequências.
Encontrei estoques de 30 milhões de sacas. Uma muralha impedindo a saída da produção. Queimou-se café no Brasil como se queimou trigo na Argentina, nos Estados Unidos e no Canadá, carneiros na Austrália, casulos no Japão. É uma conjuntura da superprodução. O Departamento Nacional do Café atendeu às necessidades do consumo interno, ao contrário do que pensa o senador Ivo D’Aquino, distribuindo milhares e milhares de sacas como subvenção aos torradores, aos estabelecimentos de varejo e a instituições sociais. Por isso nosso preço interno era baixo. E subiu quando acabaram com o DNC.
Disse o senador Ivo D’Aquino que o que se tem notado é a falta não apenas de uma planificação, mas de uma orientação econômica uniforme. Quanto à planificação, estava sendo feita. Desapareceu a Comissão de Planejamento Nacional e sumiu misteriosamente também a sua verba, que era de 12 milhões de cruzeiros. Quanto à orientação uniforme, o que se pode verificar é que cumpri, como presidente, as promessas que fiz como candidato.
Sustenta ainda o senador Ivo D’Aquino que o Instituto do Mate foi benéfico. Como consequência da sua atuação, o produtor que recebia Cr$ 3,50 por arroba passou a receber 23 cruzeiros. Está o ilustre senador “de acordo com todos os órgãos de defesa da produção”. Sua divergência é apenas em relação ao financiamento, que afirma ter sido feito “irracionalmente”.
Na verdade, não existe a menor ligação administrativa entre o mecanismo de defesa do produtor e o do financiamento. Mas não há defesa possível para o produtor quando não dispõe de recursos. Sem crédito não se anima a produção. Fala-se na chamada inflação de crédito pecuário. Se em 43 e 44 o governo não fortalecesse a posição dos pecuaristas, a demanda excepcional de carne liquidaria nossos rebanhos. E a excelente posição dos nossos rebanhos é devida principalmente ao interesse dos pecuaristas em criar mais do que em vender. É injusto que o governo hoje abandone ao sacrifício os que se entusiasmaram na formação e defesa de um dos mais notáveis patrimônios do Brasil e que, uma vez sacrificado, condenaria as gerações do futuro.
No amplo panorama da economia nacional, o ilustre senador Ivo D’Aquino só apresenta uma falha: a da laranja, que não foi financiada nem amparada. É verdade: várias providências tomadas foram tardias e a mais importante de todas – o frigorífico do Cais do Porto, especial para frutas – foi destruída em 1944 por um incêndio, na véspera de entrar em funcionamento. A crise da laranja é devida, em parte, a esse desastre e, em parte, às dificuldades de transporte.
Em tempo de guerra, com a crise de combustível, transportava-se principalmente lenha. Mas todos viram nas ruas caminhões do Ministério da Agricultura vendendo a preços baixos nossas laranjas. Preciso ainda destacar um detalhe de importância: a produção em parte sacrificada era a que se destinava à exportação, de paladar diferente da que estávamos acostumados para consumo interno. Finalmente, aos reparos sobre industrialização, que se não fez, observo apenas a dificuldade de encontrar e obter maquinismo.
Passo às críticas sobre a borracha. Diz o senador Ivo D’Aquino que fizemos um acordo a preço vil e sem garantias para o futuro. O preço foi bem superior às médias normais anteriores. E foi criado o Banco da Borracha para financiamento da produção. Quanto ao futuro da borracha, como de qualquer outro produto nosso, estará sempre à mercê de dois fatores: preço e qualidade. O governo promete providências para a cera de carnaúba. V.Exa. mesmo, Sr. Senador Ivo D’Aquino, declarou que a cera de carnaúba seria atendida com o financiamento oficial. Já o terá sido?
[N.HP: Omitimos, aqui, o aparte do líder do governo, explicando que, devido a problemas burocráticos, esse financiamento não estava ainda disponível.]
INVOLUÇÃO
Colhendo uma frase do eminente senador Ivo D’Aquino, a ela me associo para justificar o espírito de minha atitude. “A mim parece – disse o líder do PSD – que qualquer medida de ordem econômica não pode deixar de ser acompanhada de estudos e considerações de ordem social“. Como justificar, em face desse conceito, a indiferença com que se fala em fechar fábricas e despedir milhares de operários?
No plano do Instituto do Açúcar e do Álcool foi previsto o aspecto social de forma mais completa do que o ilustre senador imagina. O Estatuto da Lavoura Canavieira representa o equilíbrio social que consolidou a economia da cana-de-açúcar, corrigindo o monopólio indispensável: política, pelas condições do Nordeste, e economicamente, pela estrutura da produção, com uma distribuição de benefícios industriais aos lavradores. A rapadura é uma produção que representa, em açúcar, o que o carro de boi é em transporte. Pode ser ideal de involução econômica, mas não programa de uma nação que pensa em Volta Redonda.
Acolho ainda duas críticas: a de que os açudes ficaram incompletos, porque não se fez a irrigação das áreas servidas, e a de que o problema da Baixada foi resolvido parcialmente: solucionou-se o da terra, mas não o da malária. Quanto aos açudes do Nordeste, em meu governo se fez mais do que desde a Independência e nesta Casa se encontram homens, como os eminentes senadores José Américo e Apolônio Sales, que podem esclarecer a matéria. Além do mais, nunca pretendi ter resolvido todos os problemas nacionais. Ainda há muito por fazer no Brasil.
INFLAÇÃO
Desejo destacar como a atual política monetária tem conseguido combater o custo da vida, citando a tabela apresentada nesta Casa pelo eminente senador Andrade Ramos: (TABELA ACIMA)
Diz ainda o ilustre senador Andrade Ramos que esses são os preços médios no Rio de Janeiro. E acrescenta, textualmente: “ao preço de tabela não há”. Se não há ao preço da tabela, é porque tudo é vendido no câmbio negro.
Há mercado negro de quase todos os produtos de importação. Há o mercado negro de licenças de importação. Há o mercado negro de licenças de exportação. E existe o maior de todos os mercados negros – o do dinheiro, que está se tornando a mercadoria mais cara do mundo. E os dólares para as nossas transações comerciais só se obtêm no câmbio negro. Estamos marchando para o mercado negro dos empregos. As novas gerações, que fundavam sua esperança em conquistar empregos pela demonstração de capacidade nos concursos, são, hoje, obrigadas a ocupá-los pelo empenho, pelo filhotismo e pelo suborno.
Enfim, estamos marchando para o mercado negro do trabalho. Os operários, forçados ao desemprego, terão naturalmente de se subordinar a todas as imposições, não já para dar o pão, mas a broa, para sustento das suas famílias.
RESPONSABILIDADES
Voltemos ao tema do meu primeiro discurso. Como se obter confiança quando a preocupação é política e não administrativa? Como obter a confiança das classes conservadoras impondo diretrizes que a experiência de seus líderes repele e acoimando de inimigos políticos ou exploradores e especuladores os que ponderam e sugerem providências de interesse geral? Como se conquistar a confiança dos trabalhadores afirmando-se que devem abandonar uma profissão adquirida em anos de sacrifício e experiência e seguirem para os campos numa improvisação sem eficiência? Como se alcançar a confiança internacional na indecisão sobre o valor da nossa moeda, no afastamento da linha de Bretton Woods e com a série de restrições à importação e à exportação? Como se fortalecer o poder aquisitivo da nossa moeda quando tudo se faz para dizer que nada vale? Como animar os servidores do Estado mostrando-se que dentro de meses não receberão seus vencimentos, por falta de recursos?
O ilustre senador Ivo D’Aquino falou em providências do ministro da Fazenda. O memorial dos produtores está nas mãos de uma comissão. Eis as providências.
Em setembro, o arado sulcará a terra na zona central do Brasil, para a sementeira de cereais. Não há financiamento. Em junho, encerram-se os balanços de semestre das firmas comerciais e das indústrias. Mas todo o panorama da angústia coletiva já se reflete no seio das massas trabalhistas, que olham para um futuro sem esperanças. A produção desanimada, a circulação da riqueza entravada e, finalmente, como consequência, a queda de arrecadação. Também na vida do Estado, no orçamento, continuaremos deflacionando a receita e inflacionando a despesa.
Sei perfeitamente que as possibilidades de novas tributações são reduzidas. Sei que as possibilidades de arrecadação foram garroteadas pela política monetária. Sei que os malabarismos do Banco do Brasil se vão esgotando. Sei que a resistência dos produtores é limitada. Sei que os governos estaduais necessitarão, em conjunto, de empréstimos equivalentes a mais de meio bilhão, até o fim do ano, para pagar o funcionalismo.
Cumpri meu dever alertando o governo, definindo as posições e defendendo os trabalhadores. Estão conhecidas as responsabilidades. Os líderes dizem que o governo sabe o que está fazendo. Que o povo medite bem sobre isto: não é consequência de erro ou de equívoco, ou de ilusão ou de boa-fé ou de má orientação o que está acontecendo. É resultante de uma convicção. O Executivo sabe o que está fazendo, sabe o que vai acontecer e quer que aconteça.
Senado Federal, 3 de julho de 1947