(HP 07/09 a 10/10/2012)
A 30 de maio de 1947, o senador Getúlio Vargas voltava à tribuna. Seu discurso anterior (que acabamos de publicar na última edição) causara um impacto que o próprio Getúlio não tinha previsto. Especialmente a área econômica do governo Dutra manifestara o seu incômodo – é interessante que as tentativas de contestar o ex-presidente dirigissem seu foco para os números expostos por ele, todos, com uma exceção, retirados de documentos publicados no “Diário Oficial”, sobretudo pronunciamentos do próprio Dutra.
Assim, ao condensar o discurso de 30 de maio, retiramos toda a parte onde Getúlio demonstra o rigor de seus dados – até porque esta é outra polêmica que já foi decidida, a seu favor, pela história (ou pela historiografia).
O que temos em seguida é um marco histórico do nacional-desenvolvimentismo: a partir da crítica ao recessionismo e hipo-desenvolvimentismo do governo Dutra, Getúlio formula, neste e no próximo pronunciamento, um programa para o país. Nas suas palavras:
“O que se está fazendo no Brasil é querer calçar um sapato de criança num gigante. O que se está fazendo é esconder a realidade ao chefe da nação, é pretender intoxicar a opinião pública com palavras que não resistem nem ao tempo nem aos fatos.“
A primeira questão é a do combate à inflação, como sempre a bandeira dos que não querem que o país cresça:
“Não vejo como se consegue baixar o custo de vida elevando o preço do dinheiro [ou seja, elevando os juros]. O resultado de uma política de elevação do preço do dinheiro pode ser imediatamente o de uma baixa nos preços dos estoques e, portanto, uma perda de substância para a indústria, o comércio, a lavoura e o orçamento. Mas fatalmente representará, logo que se liquidarem os estoques, uma elevação do custo da produção.“
A única diferença em relação aos neoliberais de hoje é que os monetaristas que Getúlio combatia não tinham ainda como recorrer a estoques externos – isto é, subsidiar importações por um longo tempo, para que o país fosse invadido por elas. A razão principal é que ninguém – nem o FMI – pregava que os Estados nacionais deviam deixar de fixar o câmbio. Todos entendiam que o preço de uma moeda deveria ser estabelecido pelo dono da mercadoria, isto é, da moeda.
Getúlio, além disso, caracteriza, do ponto de vista de classe, os inimigos do país:
“… há um complexo contra o trabalhador brasileiro. Acham que ele não deve ser operário nas fábricas, que o Brasil não deve ter indústria, que é indispensável destruir toda e qualquer possibilidade de trabalho fora dos campos. O Brasil, no conceito desses homens, deve ser uma nação essencialmente agrícola. O operário deve mudar de profissão, pelo que pretendem, ou então voltar ao regime da escravatura.“
Especificamente, nota ele sobre a política econômica do governo Dutra:
“Uma vez determinada a impossibilidade de desenvolvimento industrial, os operários sofrerão as consequências da crise com o desemprego. Haverá mais oferta de braços do que procura. E os trabalhadores irão, pela fome, pela necessidade imediata e premente, renunciando às conquistas sociais e voltando à situação de escravos dos que possuem dinheiro.“
Mas, leitores, estes são trechos que pinçamos apenas para demonstrar o eixo esboçado por Getúlio. Melhor, vamos ao seu pronunciamento.
C.L.
GETÚLIO VARGAS
O grande tema de uma literatura econômica que se tornou moda nos últimos tempos é o monstro inflacionista. Vejamos de perto a fisionomia desse monstro.
Em 1930, o Brasil não tinha a menor reserva de ouro ou divisas. Nossa moeda, portanto, era papel, sem o menor lastro. Em 1945 deixei uma moeda com 73% de lastro em ouro e divisas. Como se constituiu essa riqueza? Naturalmente na base nos saldos da balança comercial.
Foi dito que essas reservas de ouro e divisas não constituem reserva líquida: representam o nosso déficit em equipamentos industriais, trilhos, locomotivas, vagões etc. Se não tivéssemos constituído essas reservas, continuaríamos com a necessidade de trilhos, vagões, locomotivas etc., ou não continuaríamos? Esta a pergunta que exige uma resposta. Porventura o desgaste do nosso equipamento industrial deixou de se fazer quando os governos não se preocuparam ou não puderam constituir reservas? Ou foi menor o desgaste no ano de 1946?
Ficou o eminente colega senador Ivo D’Aquino impressionado com a minha afirmação de que a elevação de preços era devida a um fenômeno de ordem internacional. Disse, no meu discurso, que era esta a opinião do presidente do Banco do Brasil. Vou transcrever essa opinião. À página 5.564 do Diário Oficial de 23 maio de 1947, declara o presidente do Banco do Brasil, textualmente: “A observação desse movimento – aumento dos preços médios de tonelada de mercadoria exportada e importada – leva a crer que a acentuada elevação de preços em 1946 foi um fenômeno de ordem mundial.“
Transcrevi o quadro da elevação internacional de preços dos nossos produtos básicos. O ilustre senador Ivo D’Aquino me apresenta um quadro relativo ao que lhe parece um paralelismo entre aumento de papel em circulação e aumento de custo de vida.
Verifica-se que, tomando-se como índice 100 em 1930, o custo de vida subiu para o índice 288 em 1946 e a moeda em circulação passou para o índice 720. Se estabelecermos um cotejo entre os vários aumentos da moeda em circulação e os do custo de vida, verificaremos que não há proporção alguma. O custo de vida aumentou; a moeda em circulação também aumentou. A relação entre os dois fenômenos, porém, não é básica. Indiscutivelmente, depois de um certo limite se estabelece alguma relação entre os dois fenômenos. Inegavelmente, a emissão de papel-moeda, descontrolada e sem lastro, é e pode ser a causa do aumento do custo de vida.
Mas, no caso brasileiro, o único paralelo existente, rigoroso, é o do aumento do custo de vida e o do aumento do custo da mão de obra. Nossa mão de obra só tinha dois paralelos: China e Índia. E não podemos desejar para o Brasil a continuação desse nível de vida.
Desejo, porém, por enquanto, permanecer na afirmação doutrinária do ilustre senador Ivo D’Aquino. “Em uma economia ajustada, um dos fatores essenciais de equilíbrio no âmbito interno é a adaptação dos preços das utilidades e serviços aos salários e vencimentos.” Para atingir esse objetivo, acha o ilustre senador que o volume total dos meios de pagamento – moeda em circulação e depósitos à vista – deve estar em relação conveniente com o volume total dos bens, das mercadorias e dos serviços.
Parece lógico que a solução para o problema não é restringir créditos, e sim aumentar a nossa produção e riqueza, aumentando, portanto, os bens, as mercadorias e os serviços. Creio até que, se bem não me engano, esta é a opinião de vários ilustres membros desta Casa, entre os quais posso destacar o senador Durval Cruz, que aparteou, declarando: “Melhor teria sido a absorção pelo aumento da produção”.
Mas não é esta a opinião do ilustre presidente do Banco do Brasil, orientador geral da economia e das finanças nacionais. “A produção” – declara S. Sª em seu relatório – “não se pode desenvolver de modo ilimitado“. E continua dizendo mais ou menos o seguinte: que existindo excesso de meios de pagamento e não existindo possibilidades de aumento de produção, é indispensável reduzir os meios de pagamento.
Doutrinariamente, esse ponto de vista estaria certo se não houvesse mais possibilidade de aumento de produção, isto é, se o Brasil tivesse alcançado a saturação econômica. O grande mal de ler muitos livros estrangeiros, sem traduzir os problemas, limitando-se à tradução das palavras, reside precisamente nisso. Irving Fisher escreveu dentro do problema norte-americano e nós nos encontramos num país onde podemos verificar um subconsumo e uma subprodução. Muito longe de alcançarmos o ilimitado, precisamos produzir, e produzir muito, para a grandeza do nosso país e bem-estar do nosso povo.
Mas, os bens, mercadorias e serviços existentes são suficientes para o povo brasileiro? Parece-me que não. Por mais que tenhamos edifícios, apartamentos, casas de moradia, faltam habitações para todas as classes. Por mais que tenhamos produtos industriais, se sobram em alguns setores, faltam em muitos outros. Por mais que tenhamos serviços de Estado e serviços públicos, faltam ainda, em quase todos os setores, esses elementos vitais para as necessidades do povo. Se há falta, bens, mercadorias e serviços ainda se podem desenvolver, estando, assim, muito longe do limite de saturação.
É preciso, porém, esclarecer uma dúvida apresentada pelo eminente senador Ivo D’Aquino. Diz S. Exa. que eu citei apenas os produtos básicos que sofreram a influência dos preços internacionais e que não foram somente esses produtos que aumentaram, e sim todos. Se S. Exa. me tivesse feito esta pergunta antes de uma afirmação categórica, para basear seu raciocínio sobre a mesma, eu teria respondido que a lei da interdependência de preços determina, fatalmente, uma elevação ou baixa de preços todas as vezes que os produtos básicos se elevam ou baixam.
SUMOC
Devo esclarecer também que a Superintendência da Moeda e do Crédito [SUMOC], criada durante o meu governo, não funcionava como um organismo isolado, mas, sim, como uma peça de um conjunto equilibrado entre a Superintendência da Moeda e do Crédito, a Carteira de Redescontos e as Letras do Tesouro e Títulos do Estado. A Carteira de Redescontos deixou de funcionar nos empréstimos a bancos praticamente no ano de 1946. Sobre 8 bilhões e 900 milhões, que a Carteira de Redescontos tinha emprestado aos bancos em 1945, em 1946 só emprestou realmente um bilhão.
Nessas condições, a Superintendência da Moeda e do Crédito funciona apenas como bomba aspirante, sem correspondente para intensificar a circulação da moeda. É precisamente pela falta de funcionamento do conjunto que se está determinando a crise de meios de pagamento em todo o Brasil.
Não resta a menor dúvida de que o que se pretende fazer é isso mesmo. Mas é justamente pelo fato de se pretender reduzir de forma tão violenta os meios de pagamento que eu manifesto minha estranheza, em face das consequências que tal política pode determinar.
Durante anos, meu governo também pensou no Banco Central. E esteve quase pronto esse Banco Central. Não o criei, única e exclusivamente porque, em preparação de guerra, com a guerra próxima e conhecendo as consequências inevitáveis dessa situação, não poderia responder pelo equilíbrio orçamentário. E um Banco Central só funciona bem quando o orçamento está equilibrado. Fora daí, o Banco Central passa a ser um organismo mais nocivo e contraproducente do que eficiente e benéfico.
Afirmou o Sr. Senador Ivo D’Aquino que a crise vem de longa data e que já a desenhara, numa de suas exposições, o então ministro da Fazenda, atual deputado Artur de Sousa Costa. É verdade. Ninguém pode pretender, no entanto, que se atravesse uma guerra sem crise econômica. Mas são duas crises completamente diferentes: a crise de uma guerra e a crise de uma paz, porque se apresentam como consequência de dois fenômenos inteiramente diversos. A crise da guerra foi superada. Estamos, agora, na crise econômica da paz. A construção econômica dessa paz não pode ser realizada criando-se uma guerra contra os produtores, com uma agressividade nunca vista. Não pode ser levada a termo através da preocupação de se impedir o desenvolvimento econômico do país.
O custo da produção nada mais é, dentro do sistema capitalista em que vivemos, do que o resultante da soma de duas parcelas: custo do dinheiro e custo do trabalho. O que se visa fazer é aumentar o custo do dinheiro e diminuir o custo do trabalho, isto é, reduzir, pelo desemprego, as possibilidades de os trabalhadores pleitearem reajustamento de salários. Não me parece que esta seja a melhor forma de se baratear a produção, nem tampouco a melhor maneira de se estimular a produção.
Se meu discurso teve profunda repercussão, não foi pelo que eu disse, e sim pelo que todos sentiam. Comprometi-me a trazer a esta Casa a prova de que as ordens do governo não estavam sendo cumpridas. Cito e transcrevo um trecho do artigo de autor absolutamente insuspeito a meu respeito, o Sr. Assis Chateaubriand. Diz esse brilhante jornalista, textualmente:
“Fontes oficiosas adiantam que o Banco do Brasil está autorizado a financiar o café, francamente, quando representado por documentos tais como conhecimentos e warrants [títulos com direito (mas não obrigação) à compra de um ativo por um preço pré-fixado]. Todavia, os gerentes das filiais aqui, no interior e em Santos, declaram que continuam sem instruções da matriz no Rio. Tal se passa até agora, às 10 horas, através das informações diretas de Santos. O crédito que existe em Santos está circunscrito aos limites cadastrais das firmas comissárias, que já os esgotaram“.
Esse artigo tem a data de terça-feira, 13 de maio de 1947.
(continua)