A relação da literatura de um país colonial (isto é, colonizado) ou dependente e a metrópole que o oprime não é simples – o que quer dizer muito pouco, pois é difícil encontrar algo, na vida ou na história, que seja simples.
A própria literatura dos EUA, que tem seus pontos de ruptura com a literatura da Inglaterra nos livros de Hawthorne, Fenimore Cooper e Melville, somente alcança a crítica da antiga metrópole – não a crítica da literatura metropolitana, mas a crítica da própria sociedade da metrópole – com Henry James. Apesar de, em James, não faltarem exemplos em que o foco é a sociedade da Nova Inglaterra, isto é, dos Estados do norte dos EUA (por exemplo, Washington Square).
Porém, a situação colonial sempre deixa a sua marca na poesia. Lembremo-nos de um poeta famoso por um suposto misticismo, não fosse ele indiano, Rabindranath Tagore. Ele é o autor de “Onde a mente é livre de medo” (“Onde a mente é livre de medo e a cabeça se mantém erguida/ Onde o conhecimento é livre/ Onde o mundo não foi retalhado em fragmentos/ por estreitas paredes domésticas/ Onde as palavras emergem das profundezas da verdade/ Onde o esforço incansável estende os braços em direção à perfeição/ Onde o claro rio da razão não perdeu o rumo/ nas tristes areias desertas dos hábitos estagnados;/ Onde a mente é impelida por ti/ rumo ao pensamento e à ação cada vez mais amplos/ Nesse paraíso de liberdade, Pai, permita que meu país desperte“, trad. de Cláudia Santana Martins, in “100 Grandes Poemas da Índia“, Cadernos de Literatura e Tradução 19, FFLCH/USP, janeiro/2018).
No Brasil, as referências diretas aos EUA são, em geral, parcas, na literatura nacional. Em toda a obra de Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, uma menção como a de “Elegia 1938” (“Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota/ e adiar para outro século a felicidade coletiva./ Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição/ porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.”) é uma raridade.
Entretanto, os exemplos são, muitas vezes, espantosos – e usamos esta palavra com uma conotação plenamente positiva.
Há semanas, quando preparávamos uma palestra sobre Cecília Meireles, topamos com um poema pouco conhecido da nossa maior – como ela fazia questão – poeta.
Não é um poema qualquer, pois é o maior poema escrito por Cecília Meireles – mais de 800 versos.
O poema foi escrito após uma viagem aos EUA, em 1940, e terminado no Brasil em 1942.
Entretanto, jamais foi publicado em vida da autora. Apareceu, depois, em uma coletânea póstuma, “Poemas de Viagens” (1974), organizada pela própria Cecília Meireles, que não teve tempo de publicá-la.
Eis um poema de nossa literatura que merece um conhecimento muito maior.
Assim, sem outros comentários, passemos aos versos da grande Cecília (C.L.).
U.S.A. 1940
CECÍLIA MEIRELES
Olhei as águas
do Mississípi,
turvas e grossas,
Cristina Christie.
Por velhos bairros,
andei mirando
coisas passadas
livros já lidos,
santos já vistos,
poucas estátuas,
alguns mendigos,
velhos soldados
desiludidos,
negros sonhando
sapatos de ouro,
Moisés e Elias
Rubras cerejas
e limonadas
todos os dias.
Vi catacumbas,
vi cemitérios
com suas lápides
enfileiradas
(biscoitos brancos
um pouco grandes…).
E o hotel imenso
com moças velhas,
de luvas roxas
e amarelas,
mascando goma,
cruzando as pernas,
pensando sempre
na primavera…
No entanto, o inverno,
o inverno, existe,
com formosuras
brancas e etéreas,
Cristina Christie!
Andar, andava;
com 15 cents
comprava coisas
muito diversas:
ovo, presunto,
cinto, revista…
Meninos, muitos,
nem 5 cents
para a alegria
do peppermint!
E as moças velhas
e as velhas moças,
milhões de dólares,
dentes postiços,
perucas de ouro,
peles da Rússia,
pérolas persas
sedas da China,
diamantes d’África
e do Brasil.
No fundo do ônibus,
mulatos feios
e negros calmos,
olhando os brancos.
Olhando-os quietos.
Tive saudades
de não ser preta,
negra retinta,
dizer Castro Alves
ao microfone.
Fraternidade,
fraternidade,
como o meu sangue
todo oprimiste!
Andar, andava:
terra da América,
muros da França,
vozes do Congo,
Cristina Christie.
Ouvir, ouvia
a noite inteira
guincho estridente
de saxofone,
no night club.
As louras girls
loucas e histéricas,
feitas de Espanha,
Holanda e Itália
França e Inglaterra
crispavam gritos
com o sex appeal
dos puritanos,
cálculos certos
de teosofias
dúvidas frias
de ateus precoces,
serena lógica
de protestantes,
volúpia extrema,
final pecado
de neocatólicos.
Ouvir, ouvia
a noite inteira:
gritos de nervos
de uísque e gim.
Andar andava
entre sonâmbulos
que compram roupa,
pedem esmola
e vendem coisas
nunca sonhadas
de celofane,
de falso couro,
de prata falsa,
– penas-tinteiro
anéis de noivo,
relógios, rádios
e prestações…
Dizem que é a força
da igualdade.
Mas eu pensava:
quem sonha tantas
coisas estranhas,
inventa vidas
mais complicadas?
Que usina imensa
cria e devora
objetos, sonhos,
vidas sem fim?
Do céu à terra,
que diferença!
E em que consiste
o gênio humano
Cristina Christie!
Andar, andava
por muitas ruas
de San Antonio.
Índia amorosa
dava recados
aos que partiam
para a fronteira:
“Dile a abuelita
que no me olvide!
Que pronto escriba,
y que nosotros
vamos ahorita…”
Tinha um sorriso
de dois mil anos
e uma tristeza
da mesma idade.
Essa doçura
de povo antigo,
paciente e amarga,
também sentiste,
entre vitrines,
bancos e tédios,
Cristina Christie?
Olhar, olhava
vestidos, blusas,
junto com os pretos
e mexicanos
que suspiravam,
fechando os olhos.
Cada semana,
novos vestidos,
suspiros novos.
Como se os deuses,
como se as deusas
não mais fizessem
que bolsos, pregas,
botões, fivelas…
Comer, comia
frangos assados,
perna enfeitada
de papelote.
Vinte talheres
de cada lado.
Como se os deuses,
como se as deusas
não fabricassem
mais que colheres,
garfos e facas…
Toda a riqueza
do antigo Oriente
vertia aromas
e tentações:
canela, cravo,
pimenta, mel,
siri, damasco…
E, em copos hirtos,
o chá gelado
da temperança…
Haver, havia
damas de clubes,
ágeis e magras
salvando o mundo
todos os dias.
Discutem festas,
publicam livros,
inventam doces,
vigiam atos
do Presidente…
E o azul da tarde
embala no alto
alegres, claras,
lindas bandeiras:
de um lado, as riscas,
de outro, as estrelas…
Dormi num quarto
de hotel, em Dallas.
Chapéus, carteiras,
luvas e peles
pelas vitrines
dos corredores.
Sonhei com ursos
milionários,
vendendo o corpo
para as indústrias;
ursos casados
com grandes lontras,
proliferando
mantos, chapéus…
E os meus vizinhos
a noite inteira
riam-se, tontos,
acompanhados
do som dos copos
contra as bandejas…
Álcool da noite,
fatal convite,
Fora, as estrelas
não se avistavam,
Cristina Christie!
Cruzar, cruzava
as ruas negras
de São Luís:
tijolo e fumo.
Corria a chuva
as ruas negras
de São Luís:
tijolo e fumo.
Corria a chuva
sombria, densa
como café.
Pêssegos de ouro
ainda estou vendo
brilhar nas portas;
brancos vestidos
detrás dos vidros
brilhando estão:
vestidos brancos
de formatura,
riso de um dia
de mocidade…
Homens, mulheres,
dentro de capas
de celofane,
formam paisagens
de sabonete
nas pardas ruas
de cinza e lama.
E eu caminhando
pelo virente
Jardim das Plantas:
e eu debruçada
para o brilhante
mosaico vivo,
o róseo-rubro-
verde-amarelo-
azul e roxo
mosaico enorme
dos seus canteiros…
Indo por entre
paredes verdes
e perfumosas
de cercas vivas,
louca por uma
haste de cedro
seda de trevo
folha cheirosa
para a lembrança
da terra, e amor.
E o guarda sempre
em cada canto,
com olho agudo
de detetive,
e a caderneta
das multas prontas,
vigiando os gestos,
sentimentais
da minha mão!
Guarda infeliz,
que desconheces
este segredo
do amor que mata
a flor querida,
e em sentimento
logo a eterniza!
Vejo meu sonho
lírico e triste:
meu beijo solto
voando nas folhas,
voando nas flores…
Cristina Christie!
Muita riqueza:
luzes, janelas,
cristais, potões.
Halo inviolável
das grandes casas
dos milionários.
O rei do Rubro,
e o rei do Negro,
e o Imperador
do Verde e Azul…
São Luís de França
mirando aquela
cidade estranha,
na tarde em cinza,
com a chuva imóvel
no alto das nuvens.
Dedo do guia
mostrando o lado
das casas pobres:
lá onde os negros
ficam sentados
com muitos filhos,
avós, parentes,
e conhecidos,
olhando a lua
que vem chegando,
com precaução…
Passar, passava
pelo azulado,
claro Potómac.
Lincoln sonhava
entre os seus mármores.
E os namorados,
ao pé das águas
dos frios lagos,
com luar e peixes
suaves flutuando,
cantarolavam
foxes, deitados
pelos degraus…
(Tudo são sonhos:
a liberdade,
o cativeiro,
o amor de todos,
o amor de um só…)
As cerejeiras
não tinham flores,
mas fina sombra
de baça pérola
descia, à tarde,
o pó macio
do tempo gasto
da estrela à areia…
E não me esqueço
da luz tão branca
desses palácios
que atravessava
na noite muda.
Leite divino
dos globos alvos,
pensando luas,
puras, redondas,
imovelmente…
Rompe a beleza
densos caminhos,
e abre-se em flor
à superfície
de terras e almas,
Cristina Christie.
Virgínia espessa
de matas verdes…
Como Longfellow
anda conosco
nas tardes densas
por entre as frondes!
Andar, andava,
buscando idílios
do velho Cooper…
Onde índios graves,
de longas plumas
rojando a terra?
– longos cachimbos
formando nuvens,
– e sortilégios
pelos colares
entrelaçados…?
Presença viva
do imaginário,
do sonho humano
que no pré-mundo
nutria os deuses…
Só o sonho existe,
só o sonho é eterno,
Cristina Christie…
De madrugada,
achei New York
adormecida
nos altos braços
férreos das pontes,
– os pés no porto
junto aos guindastes
resfolegando
pelos narizes
das chaminés.
O homem penúltimo
ia servindo
ao homem último,
aquela noite,
hamburguer quente,
café com leite,
na última esquina,
no último bar…
Noite sem vozes:
noite gravada
no céu, na terra,
como água forte.
Desenho de aço
das altas torres,
dos parapeitos,
dos viadutos,
de elevadores,
de arranha-céus…
Noite noturna,
fuligem triste,
graxa cansada,
e as machas ígneas
de anúncios verdes,
azuis e rubros,
polichinelos
saltando no alto
das construções…
Ruas de treva.
Mulher nenhuma.
Gato nenhum.
Janelas negras,
portas fechadas.
Calçada escura.
Tudo dormindo,
menos o bar
onde o homem último
extingue a fome
e o homem penúltimo
dá de comer
e o olho da máquina
registradora,
insone, ativa,
contempla a cena
e aguarda o fim
com teclas fáceis
de raciocínio
e ávida boca
sem oclusão.
Oh! leitos fofos
de hoteis perfeitos!
Chorai comigo,
plumas e sedas!
o sono amargo
das desventuiras
em pedras frias,
ao Sul, ao Norte,
a Leste, a Oeste
do grande mundo
que é conduzido
entre as estrelas…
Quinta Avenida
com canivetes
de 20 dólares,
capas de pele
de mais de mil…
Fragror das ruas
cheias de pressa.
Tropel dos ônibus,
– torre de Pisa
fora de prumo –
com os passageiros
que oscilam sobre
jornais, charutos,
trusts, empresas,
sonhos de nafta,
câmbio, eleições…
Igreja negra,
suja do luto
das turvas pugnas
industriais.
Poluída Igreja,
ó Lord! ó Lord!
onde persiste
a chama eterna
da âncora acesa…
Cristina Christie!
Judeus barbudos,
judeus imberbes,
morenos, louros,
ruivos, sardentos,
aglomerados
por Wall Street:
– todos à espera
das profecias
dos grandes Bancos
de arqui-suntuosas
portas lavradas,
com guardas sérios,
solenes, gordos
como pachás.
Onde Isaías,
Jó, Ezequiel
e Jeremias?
Nenhum que pregue,
que chore e grite,
mostrando os tempos
alucinados,
mordendo os punhos,
vertendo sangue,
puro e inspirado.
Cristina Christie!
Chapéu de feltro,
casaco sujo,
rosto na éspadua,
– ai longas filas
desenroladas
diante da agência
de empregos… Turba
de olhos metidos
nas negras lajes
do negro chão…
Táxis e táxis,
mocas ruidosas,
em leves passos
de periquito,
– meias de vido,
leves sandálias
com laços crespos
de borboleta…
Meninas ávidas
mirando roupas,
sonhando dentro
de róseas malhas
seus corpos brancos
feitos de tênis
e gramofone
vitaminas…
Imã do ersatz
com muitas formas:
benevolência
da utilidade;
glória do prático.
Derrota súbita
da poesia…
Department stores
de vinte andares.
Anjos de vidro
e aço, ascensores
deslizam suaves,
atravessando
mundos de roupas
aconchegadas
umas nas outras,
legiões sem vida
de corpos frouxos
que esperam a hora
de seu destino
pelos cabides…
E os visitantes
fazem, desfazem
cálculos rápidos
no quadro negro
do pensamento,
e a vida humana
é devorada
por cinco jardas
de qualquer pano,
um broche falso,
um feltro e um véu.
Lânguidas coisas
que vi, que viste,
deixaram certa
névoa de lágrimas
pelos meus olhos,
Cristina Christie.
Cheiros e cores
da China Town!
Grandes legumes
de cara exposta
à luz do dia,
que se embaraça
nos caracteres
de cada porta,
pelos cartazes,
pelos letreiros,
pelos jornais…
Cabeça preta
das criancinhas
pela calçada,
erguendo às vezes
para o turista
seu olho oblíquo
de amêndoa negra.
Lojas do sonho
desnecessário:
lanternas! onde
Edson vive
a todo instante
num vidro tênue!
leques! na terra
em que o air conditionned
reina tranquilo!
no mundo do ágil!
ventilador!
pijamas feitos
de seda autêntica,
dourado escândalo
aristocrático,
aparição
de imperadores
e mandarins,
lembrança aérea
das fiandeiras
da Via Láctea…
… diante da massa
densa e plebeia
de tantas fibras
sem pedigree
vindas de intensos
laboratórios,
filhas de estranhas
fórmulas químicas,
urgentemente
criadas, debaixo
da ordem do dólar…!
Carvão cheiroso
oferta aos deuses
de aroma e fogo
inesquecível
como o perfume…
e, como cinza,
sem duração…
Ah! breve rosa
de sonho e nuvem!
aqui se queimam
carvões e óleos
de acre fumaça,
que deixa largas
máscaras negras
na aquitetura,
no rosto humano,
e até nas altas
margens do céu…
Ah! China Town!
Debil vozinha
doce e amarela,
detrás de biombos
vendendo brancos
marfins e sinos
cheios de chuvas
agudas, de áureo,
límpido som,
– enquanto ao longe
morrem milhares
de compatriotas
desajustados,
e outros milhares
tranquilamente
são concebidos
pra morrer,
sem nome ou queixa,
e sem loucura,
só com o sorriso
feito de um barro
de dez mil anos,
e modelado
por três arcanjos
de face ebúrnea:
Lau-Tseu, Guatamua
Kung-Fu-Tseu.
Poeira do oriente
na tarde elétrica,
à hora em que as damas,
sem nenhum gozo,
sorvem chá ruivo
em Sèvres claros,
acendem alvi-
louros cigarros,
miram diamantes
em finos aros,
falam de Londres,
e de Paris,
pensando a sério
em conseguir
volúpias árabes
de dançarinas,
nos braços que usam,
de sufragistas,
nos olhos graves
de puritanas,
no corpo magro,
altivo, casto,
de generalas
do santo Exército
da Salvação!
Ó incoerência!
Ó ambiguidade!
Ó desespero
da inteligência
no labirinto
da tarde inquieta
e enigmática
que cai das torres
nos verdes parques…
Amar, amava
jardins formosos,
coelhos de seda
e rosa e lua,
adormecidos
no fino trevo…
E as cacatuas
raivosas, vendo
zunir cinzentos
bandos de aviões.
Negros carvalhos
de fresca sombra.
Campos do Texas,
Verdura imensa
por onde pascem
cordeiros tenros
de puras nuvens,
unicamente…
Flores cuidadas
como meninas,
erguendo rostos
muito românticos,
com frágeis graças
de valsa e beijo,
luz de uma noite,
lágrima e adeus.
Amar, amava
as mãos caseiras
trabalho inglório
o olhar sem dólar
sonho extraviado
pela abundância.
Voz do imigrante
desorientada
pela conquista.
Êxtase simples,
antes da máquina:
o que ainda resta
do povo rude
e se enternece
sem saber como
diante das rochas,
diante das vacas,
diante das selvas,
e volta à infância
ingenuamente
recomeçada,
e estuda o mundo,
e ama a Justiça,
e crê na Lei,
e ensina o Bem.
E ao longe o Harlem
em negras sombras
perde os limites
de homens e portas,
Cristina Christie!
Meninos magros
ainda deslizam
pelas calçadas,
sobre patins.
Os engraxates
de gaforinha
contam bobagens
aos tintureiros.
Seus grossos beiços
vermelhos se abrem
como goiabas
na tarde plúmbea.
E a noite próxima
como um xarope
sombrio corre
pelo seu riso
garganta adentro…
Harlem noturno,
com os pobres negros
pelas escadas:
– de um lado, o Congo
e, do outro, Hollywood…
E os velhos velhos
recordam rios,
terra, algodão…
Cheiro graxoso
de caçarolas:
coco e bodum.
Father Divine
virá trazer-nos
o amor supremo?
Os olhos místicos
procuram anjos
azuis e róseos,
na escuridão.
No gramofone,
muito ordinário,
– pobre gaiola –
pássaros de ouro
de Marion Anderson
afogam, tristes,
o último Spiritual.
Tudo se enrola
sobre si mesmo
negro e calado
tapete denso
de sonho inútil…
Longe, bem longe,
no night club,
música negra
resolve os brancos.
E os negros dormem
vendo açucenas
além dos olhos…
além das mãos…
Com longas vestes
de lantejoulas
e asas de pluma
vão caminhando
por entre estrelas
desfalecendo
nos esplendores
de céus repletos
de saxofones
e tamborins.
Nas invisíveis
malhas do sonho,
a alma se entrega…
a alma desiste…
É peixe imóvel,
feliz e cego,
em rede frágil,
Cristina Christie!
A água do porto
se encrespa e arrulha
por entre os barcos,
trêmula e fraca. Cachimbos acres
estão queimando
tabaco e ideias
nalgum lugar.
A Liberdade
ergue seu facho
eterno e efêmero
no mar de trevas:
tal qual aquele
casal de pombos
leves e brancos
que eu vi batendo
as frouxas, suaves,
silentes asas
em plena Broadway,
num vão sombrio
de esquina – auréola
sobre um cifrão!
Onde os teus poetas,
que não se avistam,
sob o cimento!
Luz entre águas
negras e várias!
(Stella Maris!)
Onde o gratuito
sonho sem horas!
(Columba Pulchra!)
Onde o que adoro
e não alcanço
na imensidade
do teu destino?
Terra espantosa!
Que alento mágico
sobre este mapa
arde e resiste,
vendendo chicles,
dólar, petróleo,
indústria, ventres,
ambição, crimes.
Cristina Cristina!
Cristina Christie!
Agosto, 1942