Falamos sobre um mundo que discute mudanças climáticas, mas não debate a desigualdade
ALLAN KARDEC (*)
– “Obrigado por falar o que você falou. Sou tratado como se fosse invisível.” – disse o bilionário tetraplégico.
– “Bem-vindo ao meu mundo, exceto sobre a parte do dinheiro.” – respondeu o homem que vive na periferia.
“Amigos para Sempre” (The Upside, 2019) é uma comédia dramática americana dirigida por Neil Burger. A cena acima descreve o momento em que Phillip Lacasse, um bilionário tetraplégico, se sente invisível numa lanchonete ao lado de Dell Scott que, de forma inesperada, foi contratado para ser o cuidador de Phillip. A obra é um remake do filme francês “Intocáveis” (2011), baseado na história real de Philippe Pozzo di Borgo e seu cuidador, Abdel Sellou. A propósito, os dois filmes estão ilustrados na imagem acima.
O diálogo acontece quando os dois compram cachorros-quentes e é uma das muitas partes que ilustram a dinâmica única entre os dois personagens principais escancarando a indiferença da sociedade com os vulneráveis. Este momento específico realça não apenas o contraste entre suas personalidades e condições de vida, mas também aborda temas mais profundos como a invisibilidade social enfrentada por pessoas com deficiência ou pelos pobres.
O fato é que a pobreza entrou no radar da “crise climática”. Por exemplo, o britânico The Guardian publicou recentemente uma reportagem sobre os vazamentos de metano dos depósitos de lixo. O jornal afirma que essas emissões aceleraram desde 2007 e seriam responsáveis por cerca de 20% das emissões de metano causadas pelo homem.
As principais causas de vazamento de metano dos depósitos de resíduos estão relacionadas à decomposição do lixo orgânico na ausência de oxigênio. Quando resíduos orgânicos, como restos de alimentos, madeira, papelão, papel e resíduos de jardim, se decompõem em aterros sanitários sem oxigênio suficiente, o metano é emitido para a atmosfera.
Além disso, a falta de gerenciamento adequado de resíduos e construção de aterros sanitários em muitas economias em desenvolvimento contribui para a liberação de metano. Isso destaca a importância de gerenciar adequadamente os resíduos orgânicos para evitar as emissões de metano e seu impacto prejudicial ao meio ambiente.
Existem diferenças significativas no tratamento de lixo entre países ricos e países em desenvolvimento, que podem ser atribuídas a vários fatores, incluindo recursos financeiros, infraestrutura, políticas governamentais e conscientização pública. Em particular, o jornal aponta alguns países em que foi monitorada a emissão de metano. Vemos, na figura abaixo, a forte contribuição da Índia.
Ou seja, há o ingrediente da desigualdade, que afeta fortemente as emissões. Os países ricos geralmente têm sistemas de gestão de resíduos mais avançados e eficientes, incluindo a coleta regular de lixo, instalações de reciclagem e tecnologias de tratamento de resíduos, como incineradores e aterros sanitários bem gerenciados. Em contraste, países em desenvolvimento muitas vezes lutam com a falta de infraestrutura adequada, o que pode resultar em acúmulo de lixo, descarte inadequado e problemas de saúde pública.
No entanto, os países ricos também têm grandes desafios. Na região pan-europeia, estudos demonstram que existe uma estreita correlação entre a geração de resíduos de equipamentos elétricos e eletrônicos (e-waste) e o produto interno bruto (PIB). Veja na figura abaixo que a Noruega é disparada a maior produtora de lixo eletrônico do mundo!
Essa correlação fornece insights valiosos sobre a relação entre crescimento econômico e geração de resíduos eletrônicos, destacando a importância de considerar as métricas do PIB na previsão e gerenciamento dos fluxos de lixo eletrônico. O e-waste contém uma variedade de materiais perigosos, como chumbo, mercúrio e cromo, que podem ser prejudiciais ao meio ambiente e à saúde humana se não forem tratados adequadamente.
Quais os caminhos, as conclusões dessa dura discussão? Escolhemos algumas que compartilho:
Como o filme, que retrata a imensa indiferença da sociedade com os vulneráveis, a reportagem do The Guardian aborda as emissões de metano da Índia, cobra atitudes, mas não versa sobre a importância de tirar a humanidade da pobreza para garantir que se diminuam as ditas emissões;
Dessa forma, a discussão fica enviesada, desbalanceada. O discurso que exige que se salve a humanidade que consome energia das consequências desse consumo, não prevê também salvar aqueles que presenciam diariamente mortes por enchentes ou outros aspectos terríveis consequentes da pobreza;
De fato, em nossas terras, não vemos discussões do aspecto social da exploração da Margem Equatorial Brasileira, a não ser sob o viés fortemente europeu ou estadunidense, da necessidade da adequação à pauta daqueles países;
Ou seja, os estados brasileiros que vão do Amapá ao Rio Grande do Norte estão sob pressão internacional para se adequarem à agenda dos países ricos, independentemente de suas desigualdades históricas;
A Gasmar, sob orientação do Governador Carlos Brandão, já está trabalhando em projetos para o “biogás”, que são formas de energia renovável produzidas a partir da decomposição de materiais orgânicos.
(*) Allan Kardec Duailibe Barros Filho, PhD pela Universidade de Nagoya, Japão, professor titular da UFMA, ex-diretor da ANP, membro da AMC, presidente da Gasmar (Companhia Maranhense de Gás). Texto publicado no jornal Imirante.com