SIDNEI SCHNEIDER
(Letras do HP, 01-08-15/02/2017)
Uma proposição atual e descabida em relação ao Brasil, que vamos deslindar mais adiante, parece-nos que torna oportuna a abordagem de um caso: o de como a discussão poética de um mote oriundo de Manuel Bandeira foi chave para o desenvolvimento da literatura e, inclusive, nas devidas proporções, para a independência de Cabo Verde. Em nenhum outro lugar se escreveu tanto e se foi tão longe, criativa e criticamente, em relação ao tema da Pasárgada manuelina. [1]
Bandeira registrou em que situação de dificuldade produziu os versos nos quais se refere a esta cidade da antiga Pérsia, hoje sítio arqueológico do Irã: “quando eu morava só na minha casa da Rua do Curvelo, num momento de fundo desânimo, da mais aguda sensação de tudo o que eu não tinha feito na minha vida por motivo da doença, saltou-me de súbito do subconsciente esse grito estapafúrdio: ‘Vou-me embora pra Pasárgada!’ Senti na redondilha a primeira célula de um poema, e tentei realizá-lo mas fracassei. Abandonei a ideia. Alguns anos depois, em idênticas circunstâncias de desalento e tédio, me ocorreu o mesmo desabafo de evasão da ‘vida besta’. Desta vez o poema saiu sem esforço, como se já estivesse pronto dentro de mim.” [2]
A poesia brasileira, lida pelos poetas dos países africanos de língua portuguesa, gerou, nas ilhas de Cabo Verde, ao longo de décadas, uma quantidade de poemas em paráfrase ou oposição a Vou-me embora pra Pasárgada. Publicado no Brasil em Libertinagem, de 1930, sua tematização ultramarina refletia contradições e embates pela identidade e independência cabo-verdiana ante o colonialismo português, à época da ditadura de Salazar, que dirigiu Portugal de 1932 a 1968, e se manteve, enquanto regime, até 1974. A poesia local tanto problematizou a proposição do poema de Bandeira, que, lá, o que era chamado de “evasionismo”, passou a ser designado por “pasargadismo”.
Embora não em função de tuberculose ou qualquer outra doença, Osvaldo Alcântara (pseudônimo de Baltasar Lopes, 1907-1989) publicou Rapsódia da Ponta-de-Praia, na revista Claridade n. 5, de Set. 1947, no qual a voz poética quer se evadir de um arquipélago colonial imerso na miséria: “Eu vou-me embora/ não vou ficar mais/ avassalado/ pelo Astral Inferior,/ vou fugir/ naquele Grange/ ou naquele suíço”. [3]
Jorge Barbosa (1902-1971), ao utilizar a palavra “evasão” como um desejo, reafirmava em Poema do mar, na Claridade n. 8, de Mai. 1958, os poetas claridosos e sua revista enquanto adeptos do evasionismo: “Este convite de toda a hora/ que o Mar nos faz para a evasão!/ Este desespero de querer partir/e ter de ficar”.[4] No entanto, poetas escrevem sobre diversos temas e de diferentes maneiras, não sejamos apressadamente estreitos e superficiais. Um poeta e revolucionário como Amílcar Cabral, líder da luta que mais tarde conquistaria a independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde, distinguia o grupo, em Apontamentos sobre poesia caboverdiana, como fundador, o antes e o depois da literatura nas ilhas, embora criticamente apontasse: “As mensagens da Claridade […] têm de ser transcendidas. O sonho da evasão, o desejo de ‘querer partir’, não pode eternizar-se. O sonho tem de ser outro, e aos Poetas – os que continuam de mãos dadas com o povo, de pés fincados na terra e participando no drama comum – compete cantá-lo”.[5] Dos novos da revista Claridade, sairia Onésimo Silveira, destacado poeta e editor de Ovídio Martins e outros antievasionistas.
Mais tarde, em 1986, ao publicar Cântico da manhã futura, Osvaldo Alcântara voltaria a insistir no tema, apesar do seu resignado conformismo ter recebido franca oposição do movimento antievasionista e, como verificaremos, de um poema exemplar. Na seção do livro intitulada “Itinerário de Pasárgada” (já publicada na Revista Atlântico, fev. de 1947, portanto contemporânea de Rapsódia da Ponta-de-Praia), encontram-se cinco poemas: Passaporte para Pasárgada, Saudade de Pasárgada, Balada dos companheiros para Pasárgada, Dos humildes é o reino de Pasárgada (de fato, um poema religioso: “Ó Rei! Faz com que eu possa ouvir a música das coisas/ e seja cego para os contornos./…/ Ó Rei! A minha voz é como um hino inexpresso…/ Mas recebe no teu reino/ aqueles que andam a expiar os pecados/ de que todos se esqueceram!”) e Evangelho segundo o rei de Pasárgada. Além desses, na mesma obra, o poema Há um homem estranho na multidão faz menção a uma Pasárgada aristocrática: “tocou piano no palácio do Rei de Viena,/ e convenceu príncipes e grã-duquesas a suspenderem a vida/ enquanto ele lhes servia de companheiro e de coragem/ para o território inacessível de Pasárgada…”.
Saudade de Pasárgada é revelador: “Saudade fina de Pasárgada…/ Em Pasárgada eu saberia/ onde é que Deus tinha depositado/ o meu destino…/ E na altura em que tudo morre…/ Cavalinhos de Nosso Senhor correm no céu;/ a vizinha acalenta o sono do filho rezingão;/ Tói Mulato foge a bordo de um vapor; /…/ Na hora em que tudo morre,/ esta saudade fina de Pasárgada/ é um veneno gostoso dentro do meu coração.” Alcântara tem saudade de um Éden que ele não conhece, embutida em mero desejo de evasão a bordo de um vapor. Embora saiba que se trata de um veneno, considera-o gostoso. [6]
Tal perspectiva geraria um forte contraponto de Ovídio Martins (1928-1999), dos mais destacados poetas da história de Cabo Verde, a partir da percepção de que se evadir não resolve qualquer problema, apenas mantém as coisas como estão ou as torna ainda piores.
Envolvido com a luta pela independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde ante o salazarismo colonialista, Ovídio Martins sofreu pena de prisão e exílio nos Países Baixos, onde estavam outros compatriotas. O poema em contraponto, indispensável em qualquer seleção da poesia africana de língua portuguesa, tornou-se conhecido no seu livro de maior repercussão, precisamente Gritarei, berrarei, matarei: não vou para Pasárgada, publicado na Coleção Anti-evasão, em Rotterdam, pela editora Caboverdiana, um ano antes da Revolução dos Cravos, a revolução portuguesa do 25 de abril de 1974 que derrotou o salazarismo e acelerou a independência das então colônias africanas.
ANTI-EVASÃO
Ao camarada poeta João Vário
Pedirei
Suplicarei
Chorarei
Não vou para Pasárgada
Atirar-me-ei ao chão
e prenderei nas mãos convulsas
ervas e pedras de sangue
Não vou para Pasárgada
Gritarei
Berrarei
Matarei
Não vou para Pasárgada. [7]
Para os diretores da referida coleção, Onésimo Silveira e Humberto Bettencourt Santos, “a poesia de Ovídio Martins é um canto de amor e de luta, ritmado por uma obsessão constante de libertação”.[8] O título homônimo da coleção e do poema deve-se ao fato deste último pertencer originalmente ao primeiro livro de Ovídio, Caminhada, de 1962. [9]
Baltasar Lopes (Osvaldo Alcântara), sem causar grandes incômodos ao salazarismo nem aos que a ele se submetiam internamente, não foi obrigado a ir para o exílio. Contudo, vários anos depois das referidas contendas, em um balanço pessoal, cobrou de Ovídio Martins uma suposta contradição, por ter este criticado o evasionismo e vivido na Europa, enquanto ele, Baltasar, teria ficado no arquipélago: “se os meus ‘jovens’ contraditores se tivessem dado ao cuidado de lançar mão de um comezinho bom-senso, não cairiam na bernardice de darem […] a prova evidente da mais rematada ignorância […] em dar alfinetadas tendentes a obscurecer a imagem de um fiel cristão que durante toda a sua vida (que já é bem longa hélas!), se dedicou a servir a sua terra como pôde e soube, título que nem a todos é lícito invocar, sem a mais descarada pouca vergonha” (grifos da coluna). O suposto cristão Baltasar Lopes não se refere, nem sequer por um instante, ao que e a quem expulsou Ovídio Martins de Cabo Verde: a ditadura salazarista, seus sequazes internos e a repressora PIDE, cujos maus tratos deixaram o poeta precocemente surdo. O pesquisador Alberto Carvalho resume: “[Baltasar Lopes], enquanto elemento do grupo Claridade, contaminado pelo malefício do ‘evasionismo’ de Jorge Barbosa, veria o conjunto de poemas ‘Itinerário de Pasárgada’, do seu pseudônimo Osvaldo Alcântara, infectado pelo mesmo desvio antipatriótico”. [10]
Após a Segunda Guerra, surgiram pelo menos três grupos antievasionistas: são tantos poetas que nos limitaremos a citar os do Suplemento Cultural (1958) ou da Geração Nova Largada, unidos pelo grito Não vou para Pasárgada, como Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Onésimo Silveira, Aguinaldo Fonseca e Terêncio Anahory, que se propõem a resgatar a história e a identidade nacional, incitando à ação. [11]
Outros poetas do arquipélago ainda abordariam o tema, como se pode ver nestes versos colhidos pela pesquisadora brasileira Érica Antunes Pereira, aqui brevemente comentados. Filinto Elísio percebe uma mudança: “lusoáfricas berço terço/ o terceto da nova poesia// onde passava a Pasárgada/ passa agora o pássaro da paz” (A poesia do reverso – Poesia II). António de Nevada é crítico à evasão: “Raios partam Pasárgada/ E as suas Musas,/ Raios Partam” (Vozes em uníssono: Cantos III, IV, V e VI). José António Lopes vê uma queda: “Que empeste o fogo do sacrifício/ que desabe o transversal da pasárgada/ e boceje o cemitério das bruxas/ na hora em que o inferno exalar um bafo quente/ de defuntos sobre o mundo fétido/ dos poetas… Amém…” (Da Pasárgada a UR-Kassdins). Nzé di Sant’y Agu, pseudônimo de José Luís Hopffer Almada, parece querer construí-la na imaginação e de fato: “assumir-nos/ como criaturas decentes e dignas/ sob o olhar finalmente compadecido/ da lonjura fraterna da terra prometida/ da distância próxima e tacteável/ de uma outra terra dentro da nossa terra/ da ilha de todos os poemas/ pasárgada/ de carne e espírito saciados” (Parábola sobre o castanho sofrimento). Mário Lima não sabe onde está: “Meu Deus!/ Onde estou?/ Éden?/ Olimpo?/ Pasárgada?” (Festival na Boa Vista). Danny Spínola não vê mais que um aceno: “E tive consciência, então, do longínquo aceno dos delfins,/ Das suas acrobacias e das suas estranhas e místicas melodias/ Em eterno e terno convite à paixão lunar do meio-dia em Pasárgadas de sol” (Pasárgadas de Sol). Yolanda Morazzo percebe e denuncia a privatização do que é de todos, mas não vê solução alguma, restando-lhe a fuga do real: “Manuel Bandeira/ foi-se embora para Pasárgada/ eu vou emigrar do planeta/ num tapete voador/ antes da privatização do espaço” (Fuga ao diabo). Armênio Vieira é crítico e irônico: “Polifonte: não tem pátria, por opção./ Tanto se lhe dá que faça sol/ ou caia neve, nada o aquece/ ou arrefece. Até gosta de Pasárgada,/ que, entre outras coisas,/ é o melhor sítio do mundo/ para se andar de burro” (Derivações). [12]
Existe quem queira inutilmente dourar o “evasionismo”, achando indevida ou exagerada a libertadora crítica de Ovídio Martins, fundamental, desde que se observem os limites, à vitória da independência. “Era um protesto”, se diz dos claridosos, “era um desdém”, para concluir adversativamente, “mas não era voltar as costas à caboverdianidade”. Pode ser, mas só até certo ponto, visto que foi um protesto limitado e, a partir de um preciso momento, grosseira e estupidamente limitante, que a vida e a luta coletiva obrigatoriamente iriam alargar até que estourasse. No entanto, quem o diz não consegue desdizer, ainda que de modo tortuoso, que aquela “era a fuga à erosão colonial”, ou seja, um freio ao desenvolvimento da poesia e da luta real do povo cabo-verdiano. [13]
Entre nós, Millôr Fernandes publicou no antigo Jornal do Brasil a paródia Que o Manuel Bandeira me perdoe, mas… vou-me embora de Pasárgada: “Vou-me embora de Pasárgada/ Sou inimigo do rei/ Não tenho nada que quero/ Não tenho e nunca terei”. Mas como a Pasárgada de Millôr se parece com o Brasil, “A gente só faz ginástica/ Nos velhos trens da Central/ Se quer comer todo dia/ A polícia baixa o pau/ E como já estou cansado/ Sem esperança num país/ Em que tudo nos revolta/ Já comprei ida sem volta/ Pra outro qualquer lugar/ Aqui não quero ficar”, a evasão do mundo idílico acaba parecendo a evasão do mundo real, ainda que se possa supor que o país do qual a voz poética quer fugir seja exatamente o contrário do lugar para o qual ela gostaria de ir, apesar de no poema ser este um lugar não determinado, qualquer outro lugar menos este em que ela se encontra, antevendo-se assim uma proposta de mudança, sendo que é desse frágil equilíbrio que se constrói o poema. No indefectível lugar de sonho onde tudo caberia, possivelmente para não gerar versos água com açúcar, o grande Manuel Bandeira (ele se considerava um poeta menor), não pôs a mulher amada e desejada e, tuberculoso crônico, lá imaginou não a saúde, mas um tipo de substância que vai da cafeína à morfina, da nicotina à cocaína: “Em Pasárgada tem tudo/ É outra civilização/…/ Tem alcaloide à vontade/ Tem prostitutas bonitas/ Para a gente namorar”. A menção de Millôr, “Pasárgada já não tem nada/ Nem mesmo recordação/…/ A droga é falsificada/ E prostitutas aidéticas/ Se fingem de namoradas”, ao dar conta que no mundo real a droga já existe, não ultrapassa criticamente o fingido desejo por esta, saindo-se melhor na descrição do que vem depois. [14]
Já o moçambicano Rui Knopfli, em Terra de Manuel Bandeira, simula aderir ao mote manuelino, somente até o poema ganhar corpo: “Como deixar ao abandono o olhar/ luminoso dessa mulher que eu amo?/ Quem responderá às inquietas/ perguntas de minha filha pequena/ (cabelo curto, olhos de sonho)?/ Quem, no sereno da noite, para as beijar/ com ternura e nos braços acalentar?/ E esta vida, este sítio,/ e estes homens e estes objectos?/ E as coisas que amei e as que esqueci?/ E os meus mortos e as doces recordações,/ as conversas de café e os passeios no/ entardecer fusco da cidade?/ E o cinema todos os sábados, segurando/ com força a mão de minha mulher?/ Eles nem são amigos do rei/ e a entrada lá é limitada./ Por isso é que eu não fujo/ duma vez, pra Pasárgada.” [15]
Em outro poema de Gritarei, berrarei, matarei: não vou para Pasárgada, Ovídio Martins busca tirar o véu de uma mistificação, recorrente também nos piores governos da história do nosso país:
PROCESSO
Não é verdade
meu irmão
não acredites nisso
A fome que vimos
gramando
século de riba de século
não foi a estiagem
que a pariu
Quem é
que mirrou teus seios
ó mãe!
Quem é
que te estrangulou
aos dois anos
ó infância!
A estiagem nada
tem com isso
Quem é
que tempo sem conta
te vem explorando
terra nossa
Quem é
que nos anos de crise
te condenou à morte
povo meu [16]
Um profundo sentimento nacional, reflexo da compreensão de que a identidade cultural, em oposição aos padrões do colonialismo, e a unidade política da nação cabo-verdiana eram fundamentais para libertar o país, atravessa a sua produção literária. Ovídio escrevia em português, mas de modo eventual também em crioulo de São Vicente, meio de expressão popular no plano das relações quotidianas, na literatura oral e nas mornas (canções típicas inseparáveis de danças). Resumidamente, em 1962 publicou Caminhada (poemas), em Lisboa, e Tchutchinha (contos), em Angola. E, depois do aclamado Gritarei, berrarei, matarei: não vou para Pasárgada de 1973, o livro Independência (crônicas), já na sua terra, em 1983, do qual selecionamos esta prosa poética:
ILHA A ILHA (trecho)
Cá vamos nós reconstruindo o país. Devagar, é certo, mas avançando. Ilha a Ilha. Dor a dor.
Livres os gestos, mas encontram-se ainda longe nossos jardins suspensos. Deixá-lo. Poesia é agora sentir o futuro-presente.
Foi riscado das nossas estradas a percorrer, o caminho de perdição do serviçal-escravo-contratado. Os capatazes de escravo perderam o emprego.
Cabo Verde está a levantar-se, na força das suas dez ilhas, seus dez versos, suas dez esperanças. […]
Devagar, a reconstrução nacional avança. Ilha a ilha. Dor a dor. Amor a Amor. [17]
Ao preocupar-se com o destino de Cabo Verde, Ovídio Martins não o desconecta da luta progressista na África e no mundo, irmanando-se com os povos de todos os lugares, junto a recordações identitárias do seu país e de si mesmo enquanto sujeito:
POEMA SALGADO
Eu nasci na ponta-da-praia
por isso trago dentro de mim
todos os mares do Mundo
Meu correio são as ondas
que me trazem e levam
recados e segredos
E meus bilhetes
(meus bilhetinhos de saudade)
são suspiros salgados
que as sereias recolhem
da crista das ondas
Nas conchas e búzios
de todos os mares do Mundo
ficaram encerradas
minhas canções de amor
Que eu nasci na ponta-da-praia
Por isso trago dentro de mim
todos os mares do Mundo. [18]
Com a Revolução dos Cravos, Ovídio Martins pôde retornar ao seu país. A 19 de dezembro de 1974, foi assinado um acordo entre o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (fundado em 1956 por Amilcar Cabral, Aristides Pereira, Luís Cabral) e Portugal, instaurando-se um governo de transição em Cabo Verde, governo este que preparou as eleições para a Assembleia Nacional Popular. A 5 de Julho de 1975, foi proclamada a Independência, mesmo ano em que esta ocorreu em Moçambique e Angola, sendo a de Guiné-Bissau em 1973, reconhecida por Portugal em 1974.
A experiência suscitada pelos poetas cabo-verdianos ultrapassou as limitações da literatura local duplamente, porque a libertou das amarras evasionistas e a tornou patrimônio dos países falantes da língua portuguesa e de todos os que se dispõem a traduzir e estudar a literatura africana. Lá, como aqui, o aprofundamento da soberania é condição para que a nação resolva seus problemas e desenvolva de modo criativo o seu país. A poesia tem uma ineludível função social, se conseguir dizer precisamente, com os meios que lhe são próprios, o que só a ela cabe. Ovídio Martins resumia assim a questão: “Luta-se para se amar livremente, em terra livre, libertada. Ama-se para, com ardor redobrado, se lutar pela nossa terra. O amor torna-se, assim, um acto de luta para que a luta se torne um acto de amor. Para amar”. [19]
Hoje, em nossa pátria, a busca pela evasão da realidade, surgida manifestadamente entre os que mantêm ilusões sobre o que foi o nefasto governo neoliberal que afundou o país, deposto apenas pela metade até o presente momento, impressiona por sua uniformidade. Proposições de mudar-se para fora do país ou, esta a mais lembrada e repetida, fugir para Pasárgada, superam-se em desfaçatez, mesmo nos casos em que são ditas em tom jocoso. É como se os que defenderam a pior das traições, pois a destruição econômica atinge praticamente todos os brasileiros, tivessem combinado de fugir da grave situação política e econômica atual que ajudaram a criar, e alguns entre estes ainda quisessem se divertir com isso. A autocrítica, mais saudável e promissora, como se pode ver, passa ao largo.
Notas:
[1] Ao longo do texto, serão mantidas as diferenças de grafia do português de cada país, em função de dúvidas quanto à uniforme observância do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa nos países que o assinaram.
[2] Itinerário de Pasárgada, In: Manuel Bandeira, Seleta de prosa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 341.
[3] Claridade, São Vicente, n. 5, p. 13, set. 1947, apud João Vasconcelos, Histórias do racionalismo cristão em São Vicente, de 1911 a 1940, São Vicente: Com. Org. 1º Centenário do Rac. Cristão em Cabo Verde, 2012, pp. 204-207.
[4] Claridade, São Vicente, n. 8, p. 97, mai. 1958, apud Alberto Carvalho, Baltasar Lopes, Osvaldo Alcântara e Pasárgada, Signótica, Univ. Fed. de Goiás, v. 26, n. 1, pp. 1-29, jan./jun. 2014.
[5] Cabo Verde, boletim de propaganda e informação, Praia, n. 28, pp. 5-8, jan. 1952, In: Obras escolhidas de Amílcar Cabral, Vol. I: A arma da teoria, unidade e luta, Lisboa: Seara Nova, 1976, pp. 25-29.
[6] Osvaldo Alcântara, Cântico da manhã futura, Linda-a-Velha: Edições ALAC, 1991, passim.
[7] Ovídio Martins, Gritarei, berrarei, matarei: não vou para Pasárgada, São Vicente: Instituto de Promoção Cultural, 1998, p. 25.
[8] Onésimo Silveira e Humberto Bettencourt Santos, prefácio a Gritarei, berrarei, matarei: não vou para Pasárgada, Rotterdam: Caboverdiana, [1973], contracapa.
[9] Ovídio Martins, Caminhada, Lisboa: Casa dos Estudantes do Império, 1962, p. 55.
[10] Alberto Carvalho, Baltasar Lopes, Osvaldo Alcântara e Pasárgada, Signótica, Univ. Fed. de Goiás, v. 26, n. 1, pp. 1-29, jan./jun. 2014.
[11] Simone Caputo Gomes, A poesia de Cabo Verde, um trajeto identitário, Poesia sempre, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v. 23, pp. 263-273, 2006.
[12] Érica Antunes Pereira, Revisitações poéticas: Manuel Bandeira na berlinda dos cabo-verdianos, Diadorim, UFRJ, v. 11, pp.182-198, jul. 2012.
[13] Manuel Ferreira, O discurso no percurso africano I, Lisboa: Plátano, 1989, p. 160.
[14] Millôr Online: www2.uol.com.br/millor/aberto/poemas/014.htm
[15] Rui Knopfli, Terra de Manuel Bandeira, apud Antônio Manuel Ferreira, Variações de Pasárgada, Alere, Univ. do Estado de Mato Grosso, vol. 12, n. 02, pp. 317-339, dez. 2015.
[16] Ovídio Martins, Gritarei, berrarei, matarei: não vou para Pasárgada, São Vicente: Instituto de Promoção Cultural, 1998, p. 13; Dominique Stoenesco, Na morte de Ovídio Martins, Latitudes, Paris, v. 6, pp. 56-59, set. 1999 [análise do poema].
[17] Ovídio Martins, Independência, [Praia]: Instituto Caboverdiano do Livro, 1983, passim.
[18] Ovídio Martins, Gritarei, berrarei, matarei, não vou para Pasárgada, op. cit., p. 21.
[19] Ovídio Martins, Independência, op. cit., p. 49.