O Instituto Nacional de Advocacia (Inad) – uma Ong com sede na Barra da Tijuca, Rio – não tem razão para pedir a punição do juiz Jeronimo Azambuja Franco Neto por sua fundamentação na sentença da causa do Sindicato dos empregados de hotéis de São Paulo contra o restaurante “Recanto da XV”.
Muito menos tem razão em basear o seu pedido porque o juiz teria “atacado covardemente cinco autoridades públicas” (quais sejam: Weintraub, Moro, Guedes, Damares e Bolsonaro).
Na ação, o Sindicato pedia à Justiça que impedisse o restaurante de continuar desrespeitando o “piso salarial normal, o seguro de vida e acidentes em grupo, a assistência funerária” e que as homologações das demissões fossem realizadas na entidade dos trabalhadores, tal como estipula o acordo coletivo da categoria.
O que disse o juiz, em sua fundamentação, ao conceituar a situação que permite um desrespeito às leis, como aquele que estava sendo contestado pelo Sindicato?
O juiz Franco Neto escreveu o seguinte:
“O ser humano Weintraub no cargo de Ministro da Educação escreve ‘imprecionante’. O ser humano Moro no cargo de Ministro da Justiça foi chamado de ‘juizeco fascista’ e abominável pela neta do coronel Alexandrino. O ser humano Guedes no cargo de Ministro da Economia ameaça com AI-5 (perseguição, desaparecimentos, torturas, assassinatos) e disse que ‘gostaria de vender tudo’. O ser humano Damares no cargo de Ministro da Família defende ‘abstinência sexual como política pública’. O ser humano Bolsonaro no cargo de Presidente da República é acusado de ‘incitação ao genocídio indígena’ no Tribunal Penal Internacional.
(…)
“… as palavras supra bem elucidam o que denomino merdocracia, isso mesmo, o poder às merdas. O sufixo ‘cracia’ significa poder e domínio. Já o substantivo ‘merda’ pode significar excrementos orgânicos, alguém pejorativamente ou interjeição de sorte no meio cultural (a ser vítima de diversas censuras, como no caso do filme Marighella censurado no Brasil ou na esdrúxula censura judicial ao Especial de Natal do Porta dos Fundos). A acepção aqui privilegiada é aquela quando referida a uma merda feita, uma cagada, ou seja, fez algo errado.
“Em suma, merdocracia vem a sintetizar o poder que se atribui aos seres humanos que fazem merdas e/ou perpetuam as merdas feitas. E tudo isso em nome de uma pauta que se convencionou chamar neoliberal, ou seja, libertinar a economia para que as merdas sejam feitas. Mas há a merda fundamental por trás dessa pauta. A existência do Estado nos marcos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e da Constituição do Brasil (1988) é voltada à promoção da igualdade e dos direitos humanos fundamentais, elementos de inteligência odiados pela ignorância merdocrata.
“(…) a pauta neoliberal nada mais é do que a perpetuação das pulsões escravistas tão preponderantes em países como Brasil e EUA. Neoliberalismo e escravismo acabam sendo coisas que se retroalimentam.
“No fascismo clássico, havia a figura monolítica construída e personificada em um salvador perfeito e infalível, como no caso da construção goebbeliana de um alucinado Hitler. Somos atualmente bombardeados pelas merdas (como no caso das fake news) de modo a se construir uma identidade fascista. Cada um se torna seu próprio algoz e/ou algoz dos demais movido pelo ódio ao indesejado.
“… E é nessa onda neofascista que está a ser promovido um genocídio dos direitos humanos fundamentais no Brasil.
“No aspecto do trabalho, são também exemplos da proliferação neofascista a cadavérica Reforma Trabalhista (verdadeira deformação precarizante do trabalho humano digno), a tal Lei da Liberdade Econômica (um despautério que se pretende acima da Constituição do Brasil) ou a destruição da Seguridade Social enquanto trilhões dos tributos regressivos são destinados a bilionários do mercado financeiro rentista (como denuncia a Auditoria Cidadã da Dívida).
“E aqui nem preciso lembrar as múltiplas medidas provisórias, melhor designadas de merdas progressivas oriundas do Presidente da República, cujo ser humano ocupante Bolsonaro elogiou o torturador Ustra na sessão do Golpe de 2016 e, como já dito, é acusado de ‘incitação ao genocídio indígena’ no Tribunal Penal Internacional. Uma delas, a MP 905/2019, chega a feder pelo mau odor na sua inconstitucional mutilação dos domingos preferenciais e dos feriados no art. 1º da Lei 605/49.
“A merdocracia neoliberal neofascista está aí para quem quiser ou puder ver. A ela esta decisão não serve, pelo contrario, visa a contribuir para sua derrocada. Conquanto dever ético de qualquer um, jurei cumprir a Constituição do Brasil, muito conectada à Declaração Universal dos Direitos Humanos. O lugar de fala da presente decisão, portanto, não é voltado ao mercado nem ao lucro, os quais já têm seus bilionários, sabujos e asseclas de estimação. O lugar de fala da presente decisão é o trabalho humano digno voltado à igualdade e aos direitos humanos fundamentais”.
OPINIÃO
O Inad argumenta, também, em seu pedido ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para que puna o juiz Franco Neto – “inclusive, com a aposentadoria compulsória” – que ele manifestou sua opinião pessoal política, na sentença, ao chamar de “golpe” o impeachment da srª Dilma Roussef, e a pregar a inocência de Lula (“O ser humano Dallagnol no cargo de Procurador da República, imbuído da lucratividade com suas palestras e holofotes (como revela The Intercept Brasil), propagou fazer jejum para o aprisionamento de Lula em um sistema penal, como já dito, fracassado e racista no Brasil. Cabe lembrar que Jesus Cristo vivia como mendigo nômade a perambular na pobreza, amava os odiados, como leprosos e prostitutas, e foi crucificado pelo sistema penal da época”).
É verdade – e, nesse caso, ele está errado.
Porém, não existe lei que proíba um juiz de expressar a sua opinião pessoal em uma sentença. Caso contrário, as sessões do pleno do STF seriam impossíveis…
O que um juiz não pode fazer é desprezar as provas em prol de sua opinião. Mas não está proibido de expressar a sua opinião nos autos.
Tanto é verdade que, no pedido de punição ao CNJ, apelou-se para uma resolução que nada tem a ver com o assunto (com uma lógica algo carente: “Se o CNJ proíbe o uso da logo institucional nas redes sociais dos magistrados, a fim de não vincular a imagem do órgão com os posicionamentos pessoais do juiz, logicamente a proibição se estende a emissão de opinião pessoal no corpo de uma sentença judicial”).
Por fim, diz a Ong da Barra da Tijuca, o juiz teria usado expressões ofensivas.
“Merda” é um vocábulo do latim clássico (primeira declinação), inclusive usado na poesia romana: “Sed nemo potuit tangere: merda fuit”, ou seja, “Ninguém pôde tocá-la: era uma merda” (Marcial, Livro III, Epigrama XVII).
Muito mais ofensivo que seu uso em português pelo juiz Franco Neto é a pretensão de que a eleição de Bolsonaro não pode ser questionada.
E se o juiz Franco Neto escrevesse o seguinte, sobre o Supremo Tribunal Federal, como fez o maior dos advogados brasileiros?
“Não é de agora que a soberania da mais alta instituição federal tem por cotidiano panorama as desenvolturas de um lupanar. Por artes não se sabe de que destino obsceno, a colônia das traviatas, no Rio de Janeiro, tende a se apinhar à sombra da autoridade. As michelas aqui não se arreceiam das razias policiais, como em Paris, onde ninguém imaginaria o Palácio da Justiça num bairro de marafonas. Graças à brandura da nossa índole, a regeneração das nossas Madalenas começa à mesa das confeitarias e dos alcázares, entre as empadinhas e as maravilhas, elegantemente saboreadas em comum pelas hetairas e os delegados, quando o exemplo moralizador não desce de mais alto; do que há tradições edificantes. Não admira, pois, que essa força centrípeta vá estreitando o agrupamento, e que a nossa estação central da ordem pública tenha a sua sede entre os mais célebres quarteirões de pecadoras. Pelos Sansões de tantas proezas assinaladas se deve sentir muito atraída a vocação das Dalilas baratas. Mas o que ninguém esperaria é que as janelas do mais alto tribunal do país olhem para o interior de um alcoice, é que o seu auditório tenha uma vista aberta para a garnacha dos juízes, outra para o fraldelim das perdidas, é que não se veja inconveniente em permitir entre o sacrário da Constituição e a alfurja de um prostíbulo maior distância que a de uma rua” (Rui Barbosa, Porneia, Obras Completas, vol. XXVI, tomo VII, p. 256).
Convenhamos que Bolsonaro, Weintraub, Guedes, Damares & cia. são muito mais indecentes que as traviatas que cercavam o STF no longínquo ano de 1899.
C.L.