Câmara debateu, em Comissão geral, a quebra de patente de vacinas para baratear produção no Brasil. A voz dissonante, entre os expositores, foi a do representante do governo, alegando que fazer esse procedimento via projeto de lei, de “forma unilateral”, gera insegurança jurídica
A Câmara dos Deputados se reuniu, nesta quinta-feira (8), pela manhã e início da tarde, em comissão geral, para debater a quebra de patentes das vacinas e insumos para o combate à Covid-19. Os deputados ouviram especialistas e representantes de diversos órgãos e entidades relacionados ao tema. O debate ocorreu no plenário da Casa por meio de sistema virtual.
Ao abrir a sessão, o deputado Aécio Neves (PSDB-MG), que a presidiu, desfiou os números estarrecedores: “O avanço da Covid-19 é, sem dúvida alguma, a maior tragédia sanitária do século, incomparável do ponto de vista de outras ocorrências no campo da saúde pública. Já são 2 milhões e 800 mil mortos no mundo, mais de 550 mil nos Estados Unidos; 341 mil no Brasil; 166 mil na Índia.”
“O Brasil é hoje o epicentro da pandemia no planeta, com um saldo inimaginável: 1/3 das mortes diárias por Covid-19 no planeta vem acontecendo no Brasil, mesmo o País possuindo menos de 3% da população mundial. Houve mais mortos no Brasil no mês passado (março), do que na pandemia inteira em 109 países ao redor do mundo, que juntos somam algo em torno de 1,5 bilhão de habitantes”, esmiuçou Aécio.
O evento foi sugerido pela deputada Alice Portugal (PCdoB-BA) e por outros 16 deputados de sete partidos (PCdoB, PDT, PP, PT, MDB, PSB e Republicanos). A intenção dos parlamentares era obter mais esclarecimentos sobre o posicionamento do Brasil em relação à quebra de patentes de vacinas e ainda ressaltaram que o assunto está em debate tanto na OMC (Organização Mundial do Comércio) quanto na OMS (Organização Mundial da Saúde).
Comissão geral é uma sessão plenária da Câmara dos Deputados quando interrompe seus trabalhos ordinários para, sob o comando do seu presidente, debater matéria relevante, por proposta conjunta dos líderes ou a requerimento de 1/3 dos deputados, discutir projeto de lei de iniciativa popular ou receber ministro de Estado.
LEIS PARA TORNAR OS MEDICAMENTOS MAIS ACESSÍVEIS
Ao abrir o debate como autora do requerimento da comissão, a deputada Alice Portugal procurou desmistificar a questão da “quebra de patentes”.
“Um amplo estudo de três organizações internacionais — Organização Mundial do Comércio, Organização Mundial da Saúde, Organização Mundial de Propriedade Intelectual —, conhecido como Trips, preparou um documento que mostra a interação entre saúde, propriedade intelectual e comércio ou acesso a remédios”, explicou.
E desenvolveu: “O seu objetivo foi desmistificar a complexidade de leis e políticas e torná-las mais acessíveis para os países poderem, de fato, usar as flexibilidades autorizadas nos acordos internacionais para tornar os medicamentos aceitáveis e acessíveis globalmente a quem necessita deles.”
“Na Europa, de 2016, no combate à Hepatite C, gastava-se 60 mil euros (R$ 402 mil) por paciente. Um acordo firmado sob ameaça de quebra fez com que o valor por paciente reduzisse para 10 mil euros, ou seja, é uma economia gigante e a garantia de vida digna para os portadores do vírus”, exemplificou.
“OU NÓS SALVAMOS AS VIDAS OU NÃO TEMOS MAIS O QUE FAZER“
O presidente nacional do PDT, Carlos Lupi, foi ao centro do problema, ao chamar a atenção para o fato de a humanidade ter a necessidade de ser atendida na questão da imunização, independentemente de morarem em países ricos ou pobres.
“Hoje nós temos quatro países que detêm o ciclo total dos insumos e da vacina, quatro países, China, Índia, Estados Unidos e Rússia. Esses quatro países que completaram o ciclo representam mais ou menos 43% a 45% da população do mundo. Eles não têm nem como atender a sua população, quanto mais fazer com que esses insumos cheguem à África, à Índia, ao Brasil. Então, há um dado concreto: ou nós salvamos as vidas ou nós não temos mais o que fazer”, pontificou.
“O que está em jogo hoje não é o lucro, não é uma patente, não é o direito industrial. O que está em jogo hoje é a vida do ser humano. Não é possível que o Congresso Nacional, do qual tive a honra de participar, quando fui deputado federal, não é possível que o Senado Federal não tenham essa sensibilidade.”
“Eu quero só fazer um pedido: nós temos, urgentemente, que deixar todas as nossas vaidades de lado, e o Congresso tem que fazer um decreto legislativo — isso está na Constituição —, um decreto legislativo em que toda a Casa se una para a quebra de patentes imediata, para ontem, dessas vacinas. É para ontem. Nós temos o Butantan, nós temos a Fiocruz, que podem, com a quebra de patentes, imediatamente começar a fabricar as vacinas aqui em território nacional”.
ENTIDADES SÃO UNÂNIMES
A “Opas/OMS considera que medidas legislativas que forneçam sustento legal à aplicação nacional rápida e oportuna de licenças compulsórias em casos de emergência de saúde pública internacional ou nacional continuem para fortalecimento das capacidades de planejamento e resposta do sistema de saúde diante de emergência, de forma transparente, previsível e visando produção, importação ou venda de material sanitário para atender emergência de saúde pública”, disse Socorro Gross Galiano, representante da Organização Pan-Americana da Saúde.
“No contexto da pandemia, o pleno do CNS [Conselho Nacional de Saúde] já se manifestou favorável ao Projeto de Lei 1.462, de 2020, que trata da licença compulsória para os casos de emergência nacional decorrentes da declaração de emergência em saúde pública de importância nacional ou de importância internacional e aprovou a Recomendação 67, de 2020, que recomenda a adoção de medidas para a garantia do acesso à vacinação enquanto estratégia de enfrentamento à pandemia da Covid-19”, falou o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Pigatto.
“Há exatos 20 anos, a Fiocruz mostrou que, sem o Brasil ter um complexo da saúde, nós teríamos um SUS com ‘pés de barro’ e a vida estaria sob ameaça”, lembrou o coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, Carlos Gadelha.
“Falamos com a sociedade, com a classe política e, infelizmente, a hipótese se mostrou correta: são importados 90% dos insumos farmacêuticos ativos de que nós necessitamos; os insumos farmacêuticos de 90% dos remédios e vacinas que dão efeito; os sensores e componentes de 80% dos equipamentos, como no caso dos ventiladores; 60% dos equipamentos de proteção individual para proteger os nossos profissionais de saúde”, acrescentou.
VOZ DISSONANTE
O representante do governo foi a voz discordante dentre os expositores, “no calor do momento, discutindo como País é a passagem de uma legislação, de um PL que unilateralmente quebre as patentes da vacina”.
“Nenhum país do mundo quebrou unilateralmente a patente de vacinas de Covid, nem a Índia, que pode produzir os insumos e os princípios ativos, nem a China. Por que o Brasil, que não pode produzir, vai fazer isso? Por que nós sempre optamos pela solução mais fácil?”, questionou.
“Existem estudos empíricos que mostram que, quanto mais previsão de direitos sociais na Constituição, menor a efetividade. Por que nós sempre achamos que colocar na lei resolve os problemas do mundo?”.
“Se fosse assim, o Brasil seria um paraíso. E é aí que nós precisamos pensar como nós fazemos a realidade com os textos legais, porque senão poderíamos passar um PL — e tenho certeza de que o presidente da República passaria uma medida provisória —, proibindo a Covid no País: Art. 1º Fica proibida a Covid no Brasil.”
“Mas não podemos fazer isso porque não se torna realidade. E esse aqui é o caso. Israel não quebrou a patente da principal vacina que eles usaram, que foi a Pfizer. Muito pelo contrário. Se nós quebrarmos as patentes, poderemos prejudicar o ritmo atual”, finalizou.
O deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP) respondeu ao representante do governo. “Quero responder não para convencer aqueles que têm responsabilidade na tragédia brasileira como este representante do Ministério da Economia que aqui compareceu. Ele chegou a fazer uma ironia com o Parlamento, com o próprio Brasil, com o povo brasileiro, dizendo assim: “Por que é que o Brasil sempre procura a solução mais fácil? Ele finge que não sabe, mas está mentindo”.
“Eu vou dar alguns exemplos. Primeiro, essa não é a solução ‘mais fácil’. Só na cabeça dele. Segundo, o Brasil inicialmente boicotou todo tipo de isolamento social da figura do presidente da República, do governo que ele apoia. O Brasil deixou, digamos, nunca fez, a triagem dos contatos dos contaminados. O Brasil demorou muito, até hoje falha no fornecimento de equipamentos de proteção individual para os profissionais de saúde. O Brasil boicotou até onde foi possível o consórcio mundial da Organização Mundial da Saúde, o Covax, comprando o correspondente em vacinas para apenas 10% da população mundial, e até o momento só chegaram 1 milhão de doses”, enumerou.
“Esse governo fez na votação da Organização Mundial do Comércio, digamos, praticamente um suicídio — mas quem ele [esse] suicida é o povo brasileiro —, votando contrário à possível e necessária quebra de patentes ou suspensão temporária”, continuou Chinaglia.
“Inicialmente eram dois países: Índia e África do Sul, hoje são 108 países pelo menos apoiando. Por que estamos debatendo aqui? Porque o Brasil, o Parlamento, precisa fazer dois movimentos simultâneos: primeiro, sinalizar para a OMS que o Parlamento brasileiro é favorável à suspensão; segundo, pressionar esse governo porque nós estamos agindo em legítima defesa da vida dos brasileiros”, explicou.
“E finalmente, nós temos já 108 países. A OMS fez uma reunião com o Ministro da Saúde brasileiro no fim de semana anterior. Portanto, é passada a hora de até a OMS vir pedir ao Brasil para ajudar na quebra de patentes”.
M. V.