Um antigo jornalista, isento de simpatias progressistas, diz que jamais houve, no Brasil, algo tão imoral quanto a pressão de Bolsonaro para demitir Roberto Leonel de Oliveira Lima, presidente do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
Para demiti-lo, Bolsonaro quer, inclusive, passar por cima do ministro sob o qual está o Coaf, Paulo Guedes – depois de fazer um esforço desesperado para tirar o Coaf do Ministério da Justiça, cujo titular, Sérgio Moro, considera menos confiável que Guedes (v. HP 29/05/2019, Bolsonaro faz Senado colocar Coaf sob Guedes para blindar filho das investigações).
Por quê?
No último dia 31, Roberto Leonel, presidente do Coaf, declarou, após o presidente do STF, Dias Toffoli, suspender todas as investigações do país que têm por base as informações do Coaf (e também da Receita Federal e do Banco Central):
“Não cabe ao Coaf questionar decisões judiciais. No entanto, não há como negar a preocupação com o impacto imediato da decisão liminar e, principalmente, caso seja mantida no julgamento de mérito. Nesse cenário, a efetividade do sistema brasileiro de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, que tanto evoluiu nos últimos anos, ficaria sensivelmente prejudicada” (v. ‘Combate à lavagem ficaria prejudicado’, OESP, 31/07/2019).
A declaração, além de moderada, é óbvia: o Coaf somente existe, por lei (Lei n.º 9.613/1998), para ser um órgão de inteligência contra a lavagem de dinheiro sujo, dinheiro oriundo da corrupção, do tráfico de drogas e outras atividades ilícitas.
Dias Toffoli, quando, para impedir as investigações sobre os ilícitos de Flávio Bolsonaro, suspendeu todas as investigações do país com base em informações do Coaf, suspendeu também a efetividade prática do órgão, praticamente o anulou (v. HP 17/07/2019, Toffoli decide acobertar crimes de Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz).
Daí, a declaração do presidente do Coaf.
Nessa entrevista, Roberto Leonel foi perguntado se as informações sobre a “movimentação global” não eram suficientes para o combate ao crime (em sua decisão, Toffoli proibiu a passagem ao Ministério Público e à Polícia de quaisquer informações “que vão além da identificação dos titulares das operações bancárias e dos montantes globais”).
A resposta do presidente do Coaf foi a seguinte (transcreveremos toda ela, sem tentar resumir, pelo evidente interesse):
“Para tentar ilustrar como apenas a movimentação global não é útil na maioria dos casos, imagine, por exemplo, um supermercado popular, cujo perfil seja de vendas principalmente em dinheiro. No entanto, os recursos financeiros que chegam na conta bancária da empresa são oriundos de transferências eletrônicas. Isso não é normal. Seria esperado que a conta recebesse depósitos em dinheiro. O que pode estar ocorrendo, por exemplo, é a venda de reais para doleiros. A movimentação global não demonstraria essa realidade.
“Outro caso que pode ser afetado é quando um banco faz a comunicação de operações suspeitas em que relata que o cliente em questão pode ser um ‘laranja’. (O cliente) Consta como diretor de uma empresa, movimenta valores expressivos, mas não demonstra conhecer detalhes do negócio nem de suas operações.
“Há um tipo de situação simples, mas de grande relevância para a sociedade, que também pode ser citada como exemplo: comunicações de operações suspeitas relatando a fragmentação de saques ou depósitos em espécie, também conhecida como ‘smurfing’, técnica muito utilizada pelo narcotráfico.
“Nesse caso, uma única operação de alto valor é fracionada em pequenas operações realizadas no mesmo dia ou em dias próximos. Isso é feito para tentar evitar que a instituição financeira envie uma comunicação automática devido ao valor em espécie ou que seja obrigada a identificar o portador dos recursos. A comunicação poderia ainda estar enriquecida com detalhes como o fato de as cédulas depositadas estarem úmidas ou com forte cheiro, reforçando os indícios dessa tipologia clássica. Nessa situação, a análise apenas do montante global não permitiria a identificação dessa prática.”
O presidente do Coaf, evidentemente, não se referiu ao caso Flávio Bolsonaro/Queiroz – e a nenhum outro caso. Provavelmente, quando mencionou a última operação ilegal, favorita do narcotráfico, nem pensou que esse procedimento coincidia com o caso de Flávio Bolsonaro, em cuja conta o Coaf detectou 48 depósitos de R$ 2 mil, no espaço de um mês (v. HP 19/01/2019, Quem fazia os depósitos na conta de Flávio Bolsonaro?).
Porém, a resposta de Leonel, além de lógica e clara, não revelava nenhum segredo. O presidente do Coaf teve o mérito de acrescentar uma nitidez extra sobre as consequências da decisão de Toffoli, mas nada que não se soubesse (v. HP 17/07/2019, Para livrar Flávio Bolsonaro de investigações, Toffoli suspendeu a lei e até a si mesmo e HP 24/07/2019, Dodge recorre da decisão de Toffoli de acobertar Flávio Bolsonaro).
Então, por que a sanha rancorosa de Bolsonaro contra ele?
Evidentemente, porque o interesse de Bolsonaro é cobrir os negócios corruptos da Família. Na sua opinião (usemos este termo, na falta de um melhor), Roberto Leonel na presidência do Coaf é um obstáculo para esse encobrimento, portanto, para os negócios corruptos da Família.
Ainda mais quando o presidente do Coaf apresentou as consequências de uma aberração judicial que teve o objetivo de acobertar os malfeitos de seu filho, Flávio Bolsonaro.
Aliás, é perfeitamente possível – até mesmo provável – que na cabeça de um desequilibrado, como Bolsonaro, a segunda questão seja mais importante que a primeira, ainda que as duas sejam inseparáveis.
Repete-se a questão de algumas semanas atrás, quando Bolsonaro, depois de prometer a Moro que o Coaf ficaria no Ministério da Justiça, jogou, no Congresso, e desesperadamente, para que o órgão fosse para o Ministério da Economia.
Roberto Leonel foi nomeado por Moro, não por Guedes, antes que Bolsonaro conseguisse tirar o órgão do Ministério da Justiça.
O Coaf, tal como definido pela lei, é um órgão de inteligência contra os crimes de lavagem. Por isso, a lei que o criou é conhecida como Lei de Lavagem de Dinheiro e sua ementa (o resumo que geralmente as leis e decisões judiciais trazem em seu início) é a seguinte: “Dispõe sobre os crimes de ‘lavagem’ ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências” (cf. Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998).
Portanto, o Coaf não é um órgão financeiro ou econômico.
Trata-se de um órgão de combate ao crime.
Por isso era justo que ficasse no Ministério da Justiça e da Segurança Pública.
Entretanto, qual a diferença, para Bolsonaro, do Coaf ficar no Ministério da Justiça ou no Ministério da Economia?
A diferença nada tem a ver com qualquer opção “técnica” ou “institucional”.
A diferença é que, apesar de todo o seu capachismo atual, Moro conta com menos confiança de Bolsonaro do que Paulo Guedes.
Guedes é um sujeito que se preocupa com ganhar dinheiro. O resto, inclusive a moral, a ética, adapta-se a esse objetivo – ou seja, o resto não existe (vide seus golpes em fundos de pensão de estatais – as mesmas que, agora, quer privatizar).
Moro não é isso, o que explica a nomeação de Roberto Leonel – um profissional com 33 anos de experiência, auditor da Receita, inclusive premiado por sua “contribuição ao sistema brasileiro de prevenção e combate à Lavagem de Dinheiro” – para a presidência do Coaf.
Moro é reacionário, algo alucinado, transgrediu regras na sua função de juiz, e está mostrando um servilismo indecente em relação a Bolsonaro.
Mas até pelo modo algo irreal como vê a si próprio – algo messiânico em relação ao combate à corrupção no Brasil – Moro não é a mesma coisa que Guedes.
Por isso, Bolsonaro preferiu que o Coaf, que pegou seu filho quase com as calças na mão, ficasse com Guedes, um elemento que, como o Samuel Blaustein – aquele personagem de Marcos Plonka na antiga Escolinha do Professor Raimundo –, faz qualquer negócio.
O atual ataque de Bolsonaro contra o presidente do Coaf – que Moro nomeou – é uma comprovação disso.
Para Guedes, o problema não é mudar o presidente do Coaf, mas aproveitar a confusão, aprontada por Bolsonaro, para mudar o próprio Coaf. Não encontramos, até agora, outra interpretação para suas declarações, na última quarta-feira:
“Toda vez em que existe um aparente conflito institucional, a solução é o aperfeiçoamento institucional. Cabeças rolarem pode até acontecer, mas a solução exige um aperfeiçoamento de estrutura. É preciso uma solução definitiva para que não haja mais suspeitas e mal-entendidos.”
“Solução definitiva” parece “solução final” – aquela que os nazistas aplicaram aos judeus: desaparecer com eles da face da Terra.
Provavelmente, a solução de Guedes “para que não haja mais suspeitas e mal-entendidos” vai ser a de transformar o Coaf em um órgão de acobertamento a ladrões do dinheiro e dos bens públicos, com prioridade, por enquanto, para a Família Bolsonaro.
A questão é que isso não vai dar certo.
C.L.