O escândalo com a decisão do atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, que, a pedido de Flávio Bolsonaro, suspendeu todos os processos e investigações com base em informações do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e da Receita Federal ao Ministério Público, provocou várias manifestações (v. Decisão de Toffoli de acobertar Flávio Bolsonaro gera protestos nos meios jurídicos).
Como notou um promotor, Toffoli não apenas suspendeu uma decisão tomada pelo pleno do STF por ampla maioria, como, também, suspendeu a lei:
“A Lei n.º 9.613, de 3 de março de 1998, dispõe sobre os crimes de lavagem de dinheiro.
“A mesma lei criou o Coaf, órgão responsável, dentre outras funções, por examinar e identificar as ocorrências suspeitas de práticas ilícitas, notadamente lavagem de dinheiro.
“Ao apurar a lavagem de dinheiro, normalmente se descobrem outros delitos, como corrupção, tráfico de drogas, de pessoas e de armas, além de vários outros que geram vultosas quantias em dinheiro.
“Cabe ao Coaf, ao se deparar com movimentação financeira suspeita, que traga indícios de prática de infrações penais, comunicar às autoridades competentes para a devida apuração. É o que dispõe seu artigo 15: ‘O Coaf comunicará às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos nesta Lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito’.
“O Presidente do STF, ao determinar a necessidade de autorização judicial para o acesso aos dados do Coaf, simplesmente suspendeu a eficácia desse dispositivo, ou seja, o órgão não mais poderá comunicar a ocorrência de delitos para as autoridades competentes. Como ele irá fazer então, encaminhar as peças para o magistrado, que não pode investigar no sistema acusatório de processo? Será o Magistrado quem vai dizer se há ou não os elementos necessários para se iniciar a investigação e não o titular da ação penal pública? E se o Magistrado resolver não encaminhar as informações para o Ministério Público ou Polícia Judiciária, o que será feito dessas informações? O MP não poderá recorrer por desconhecer as informações encaminhadas pelo Coaf?” (v. César Dario Mariano da Silva, O STF e o Coaf. O começo do fim da Lava Jato, OESP 17/07/2019).
Que um único ministro do STF possa suspender as decisões coletivas (ou, como preferem os juristas, “colegiadas”) do próprio STF, e, ainda por cima, possa suspender a lei – sem que esta estivesse em discussão ou fosse contestada pelo ministro – é coisa tão absurda, que jamais existiu nem durante a ditadura (aliás, provavelmente, em nenhuma ditadura).
Em sua nota, a procuradora geral da República, Raquel Dodge, observa que “o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou constitucional o envio de informação pelo Conselho de Controle de Atividades Financeira (Coaf) ao Ministério Público” no julgamento das “Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 2386, 2390, 2797 e 2589”.
Esse julgamento não é o mesmo a que nos referimos anteriormente, que tem o mesmo conteúdo, mas que teve como relator o ministro Edson Fachin (RE nº 601.314, v. Toffoli decide acobertar crimes de Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz).
O que quer dizer que o STF aprovou duas vezes – e por ampla maioria – a constitucionalidade do encaminhamento, pelo Coaf e pela Receita, de casos suspeitos ao Ministério Público.
Mas, quem era o relator dessas ADIs, citadas pela procuradora geral da República em sua nota, que foram julgadas em fevereiro de 2016?
Quem era o relator, cujo voto foi vencedor por larga margem no julgamento ocorrido no pleno do STF (apenas dois ministros, Marco Aurélio de Mello e Celso de Mello, votaram contra)?
O relator chamava-se Dias Toffoli (v. o relatório e a decisão do STF).
Portanto, na decisão de agora, Toffoli está suspendendo a si mesmo – ou, pelo menos, uma decisão de que ele mesmo foi o autor ou assinou a autoria.
O que aconteceu entre 2016 e agora, para que Toffoli mudasse de posição?
Nada, exceto sua adesividade ao governo – e estamos falando do governo Bolsonaro, o governo mais alérgico às leis e ao Direito (para não falar no “Estado Democrático de Direito”) que já houve por aqui nos últimos 34 anos.
Toffoli é uma conhecida mediocridade que, em má hora, o PT colocou no STF, talvez por emulação com o PSDB, que colocou Gilmar Mendes no mesmo lugar.
A aderência de Toffoli, além de sua tentativa de rever a História do Brasil para tornar o golpe de 64 algo muito democrático (“hoje, não me refiro nem mais a golpe nem a revolução. Me refiro a movimento de 1964”), manifestou-se em um ridículo “pacto” com Bolsonaro, iniciativa pela qual apanhou mais que ratazana em bairro pobre.
Agora, ele paralisou investigações em todo o Brasil, para beneficiar um dos Bolsonaro-boys.
Alguns bolsonaristas, algo estropiados com as descobertas sobre a Família Bolsonaro, quiseram ver, na decisão de Toffoli, um modo de proteger o jornalista Glenn Greenwald, que estaria sob investigação com base em dados fornecidos ao Ministério Público pelo Coaf ou pela Receita.
No entanto, foi Flávio Bolsonaro que pediu aquilo que Toffoli concedeu – e o filho de Bolsonaro foi o maior beneficiado.
Quanto a Greenwald, não apareceu, até agora, nenhuma investigação sobre ele – e, se houvesse, depois da divulgação que fez das mensagens do então juiz Moro e do procurador Dallagnol, essa investigação pareceria muito suspeita.
Greenwald não tem nada a ver com isso, mas a verdade é que a decisão de Toffoli, além de Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz, beneficia várias classes de bandidos.
Por exemplo, paralisa investigações sobre o Primeiro Comando da Capital, também conhecido pela sigla PCC.
“Isso tudo tem um alcance muito grande, pode afetar todas as investigações que envolvem lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, evasão de divisas, tráfico de drogas e pessoas e o crime organizado das mais variadas formas, inclusive o PCC”, disse Gianpaolo Smanio, chefe do Ministério Público de São Paulo.
Ele também estranha que Toffoli tenha passado por cima da lei:
“É importante esclarecer que tudo isso está previsto na Lei de Lavagem de Capitais, de 1998. O Coaf foi criado exatamente para fazer o controle desse fluxo de capitais no País e garantir a defesa da ordem econômica.”
Até João de Deus, o estuprador em série, animou-se. Segundo seu advogado, Alberto Toron, “num caso houve informação direta do Coaf para o MP e pode gerar questionamento”.
Em sua nota sobre a decisão de Toffoli, os procuradores das forças-tarefas das Operações Lava Jato e Greenfield observam que “a referida decisão contraria recomendações internacionais de conferir maior amplitude à ação das unidades de inteligência financeira, como o COAF, inclusive em sua interação com os órgãos públicos para prevenir e reprimir a lavagem de dinheiro”.
O exótico, aqui, é que esse foi, exatamente, um dos principais argumentos de Toffoli para, há dois anos, considerar constitucional o compartilhamento de informações do Coaf e da Receita Federal com o Ministério Público:
“O Brasil se comprometeu, perante o G20 e o Fórum Global sobre Transparência e Intercâmbio de Informações para Fins Tributários (Global Forum on Transparency and Exchange of Information for Tax Purposes), a cumprir os padrões internacionais de transparência e de troca de informações bancárias, estabelecidos com o fito de evitar o descumprimento de normas tributárias, assim como combater práticas criminosas. Não deve o Estado brasileiro prescindir do acesso automático aos dados bancários dos contribuintes por sua administração tributária, sob pena de descumprimento de seus compromissos internacionais” (cf. STF, ADI 2.386, relatório de Dias Toffoli, p. 3).
Agora, Toffoli esqueceu do que escrevera há dois anos. Seu saber jurídico muda de acordo com os ventos políticos.
C.L.
Abaixo, a nota das forças-tarefas da Operação Lava Jato e da Operação Greenfield:
“As forças-tarefas das operações Greenfield e Lava Jato em Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro externam grande preocupação em relação à decisão monocrática emitida pelo presidente do E. STF, Min. Dias Toffoli, que determinou a suspensão de investigações e processos instaurados a partir do compartilhamento com o Ministério Público de informações fiscais e bancárias sobre crimes ‘que foram além da identificação dos titulares das operações bancárias e dos montantes globais’, sem prévia decisão do Poder Judiciário.
“A referida decisão contraria recomendações internacionais de conferir maior amplitude à ação das unidades de inteligência financeira, como o COAF, inclusive em sua interação com os órgãos públicos para prevenir e reprimir a lavagem de dinheiro.
“As forças-tarefas, ao longo dos últimos cinco anos, receberam inúmeras informações sobre crimes da Receita, do COAF e do BACEN, inclusive a partir da iniciativa dos órgãos quando se depararam com indícios de atividade criminosa. A base para o compartilhamento na última situação é o dever de autoridades de comunicar atividade criminosa identificada.
“Embora seja inviável identificar imediatamente quantos dos milhares de procedimentos e processos em curso nas forças-tarefas podem ser impactados pela decisão do E. STF, esta impactará muitos casos que apuram corrupção e lavagem de dinheiro nas grandes investigações e no país, criando risco à segurança jurídica do trabalho.
“A suspensão de investigações e processos por prazo indeterminado reduz a perspectiva de seu sucesso, porque o decurso do tempo lhes é desfavorável. Com o passar do tempo, documentos se dissipam, a memória de testemunhas esmorece e se esvai o prazo de retenção pelas instituições de informações telefônicas, fiscais e financeiras.
“Por tudo isso, as forças-tarefas ressaltam a importância de que o caso seja apreciado, com a urgência possível, pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, manifestando confiança de que a Corte definirá a questão com a necessária urgência, conferindo segurança jurídica para o desenvolvimento das investigações e processos suspensos.”
Matérias relacionadas: