The Intercept Brasil divulga outras mensagens de Moro e de procuradores da força-tarefa da Lava Jato
A declaração do ex-juiz federal e atual ministro Sérgio Moro, na sexta-feira (14), de que “eventualmente, pode ter havido algum descuido formal” em suas trocas de mensagens com o procurador Deltan Dallagnol, é algo incompreensível.
A dificuldade da compreensão está em que não foi isso o que aconteceu.
O objetivo de Moro é, declaradamente, o de passar que esse suposto “descuido” foi coisa lícita: “Eventualmente, pode ter havido algum descuido formal, mas, enfim, isso não é nenhum ilícito” (grifo nosso).
Afinal, quem não comete um “descuido”?
No entanto, a questão é se um juiz pode acertar estratégias, conduzir e até sugerir testemunhas para uma das partes – a acusação, exercida pelo Ministério Público – ou não.
De acordo com o sistema jurídico que existe no Brasil, não pode.
Portanto, quando se trata de um juiz – que sabe disso, porque essa é uma premissa básica de sua própria função – não é possível descrever essa transgressão como um “descuido”. Muito menos como um “descuido formal”.
Em suas entrevistas, na quinta (13/06) e na sexta-feira (14/06), Moro insistiu em que não houve nada ilícito em suas relações com Dallagnol.
Disse ele ao jornal “O Estado de S. Paulo”:
“A mensagem que diz que é mais delicada em relação a mim, o que é? É uma notícia-crime. Alguém informa que tem informações relevantes sobre crimes e eu repasso para o Ministério Público. Isso está previsto expressamente no Código de Processo Penal, artigo 40, e também no artigo 7 da Lei de Ação Civil Pública diz que ‘quando o juiz tiver conhecimento de fatos que podem constituir crime ou improbidade administrativa ele comunica o Ministério Público’. Basicamente é isso, eu recebi e repassei. Porque eu não posso fazer essa investigação” (grifo nosso).
Vejamos o que isso quer dizer – ou seja, quais os fatos.
Como nós apontamos, a troca de mensagens do dia 7 de dezembro de 2015 é aquela que mostra claramente a transgressão de Moro em seu papel de juiz, ao oferecer a Dallagnol uma testemunha, isto é, uma testemunha de acusação (v. Os delitos de Sérgio Moro).
Por isso, nas entrevistas, Moro se concentrou no conteúdo dessas mensagens do dia 7 de dezembro.
Somente para lembrar, essa troca de mensagens foi a seguinte.
Às 17h42min56s:
MORO: Então. Seguinte. Fonte me informou que a pessoa do contato estaria incomodado por ter sido a ela solicitada a lavratura de minutas de escrituras para transferências de propriedade de um dos filhos do ex-Presidente. Aparentemente a pessoa estaria disposta a prestar a informação. Estou então repassando. A fonte é séria.
DALLAGNOL: Obrigado!! Faremos contato.
MORO: E seriam dezenas de imóveis.
Às 18h08min08s, depois de se comunicar com “a pessoa do contato”, o procurador enviou uma mensagem a Moro:
DALLAGNOL: Liguei e ele arriou. Disse que não tem nada a falar etc… quando dei uma pressionada, desligou na minha cara… Estou pensando em fazer uma intimação oficial até, com base em notícia apócrifa.
MORO: Estranho, pois ele é quem teria alertado as pessoas que me comunicaram. Melhor formalizar então.
MORO: Supostamente teria comentado com (SUPRIMIDO) que por sua vez repassou a informação até chegar aqui.
DALLAGNOL: Posso indicar a fonte intermediária?
MORO: Agora já estou na dúvida.
MORO: Talvez seja melhor vcs falarem com este (SUPRIMIDO) primeiro.
DALLAGNOL: Ok.
DALLAGNOL: Ok, obrigado, vou ligar.
A LEI
Segundo Moro, sua atitude de repassar uma informação, útil à acusação, para a própria acusação (isto é, para Dallagnol, membro do Ministério Público) é respaldada pelo artigo 40 do Código de Processo Penal (CPP) e pelo artigo 7 da Lei de Ação Civil Pública.
Vejamos o que diz o Código de Processo Penal, citado por Moro:
“Art. 40. Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia.”
Isso nada tem a ver com aquilo que Moro fez – fornecer, ocultamente, uma dica de uma suposta testemunha de acusação, para a acusação.
Reparemos que Moro não podia comunicar oficialmente essa “dica” ao Ministério Público, pois ele não tinha, na realidade, conhecimento da existência de qualquer “crime de ação pública”.
O que ele tinha era, nas suas palavras a Dallagnol, algo que lhe disse uma “fonte”, sobre a qual frisou: “a fonte é séria”.
Isso, evidentemente, não é o que diz o Código de Processo Penal, que é explícito: “Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública”.
No caso, Moro não podia verificar essa existência – nem ela era derivada de “autos ou papéis de que conhecerem”.
Realmente, o artigo do CPP alegado por Moro é sobre a notícia-crime (notitia criminis) fornecida por um juiz.
Mas o que Moro fez, registrado nas mensagens entre ele e Dallagnol, nada tem a ver com notícia-crime. Muito menos é lícito para um juiz.
[NOTA: É preciso, aqui, uma correção. Em Os delitos de Sérgio Moro, dissemos que “o máximo que ele [Moro] poderia fazer, diante de uma informação desse tipo, era encaminhar a ‘fonte’ para a polícia (que, por sinal, também não é parte do processo)”. Na verdade, isso não é exato. Na sua edição comentada do Código de Processo Penal, diz o jurista Renato Brasileiro de Lima: “Num sistema acusatório, onde há nítida separação das funções de acusar, defender e julgar (CF, art. 129,1), não se pode permitir que o juiz requisite a instauração de inquérito policial, sob pena de evidente prejuízo a sua imparcialidade. Portanto, deparando-se com informações acerca da prática de ilícito penal, deve o magistrado encaminhá-las ao órgão do Ministério Público, nos exatos termos do art. 40 do CPP”. Porém, no caso, Moro não poderia encaminhar algo que não existia – e, aliás, ele não o fez, pois a “dica”, fornecida ocultamente para Dallagnol não é “encaminhamento ao órgão do Ministério Público”.]
Vejamos, então, o artigo 7º da Lei de Ação Civil Pública, também citado por Moro como fundamento para fornecer informações ocultas a Dallagnol:
“Art. 7º Se, no exercício de suas funções, os juízes e tribunais tiverem conhecimento de fatos que possam ensejar a propositura da ação civil, remeterão peças ao Ministério Público para as providências cabíveis.”
Não nos estenderemos em demonstrar – porque é evidente por si mesmo – que isso nada tem a ver com, no curso de uma ação criminal, o juiz fornecer informações ocultas que dão vantagem à acusação, ainda que essas informações não tenham resultado nessa vantagem.
A DISCUSSÃO
Diz Moro, em outro ponto da mesma entrevista:
“A tradição jurídica brasileira permite essas conversas entre juízes e advogados e procuradores, inclusive policiais. A questão das operações, uma vez deferida uma diligência, 50 buscas e apreensões e 50 prisões de pessoas, existem questões de logística que vão ser discutidas com a polícia e com o Ministério Público. Precisamos saber exatamente quando vai acontecer, em que momento vai acontecer e tem que ter um planejamento.”
Tudo isso é verdade.
O que não é verdade é que isso tenha alguma coisa a ver com suas trocas de mensagens com Dallagnol, especialmente com aquelas do dia 7 de dezembro de 2015.
O que se está apontando em Moro é que ele discutiu a estratégia de acusação com os acusadores – a ponto de até oferecer uma testemunha, aliás, baldada.
Isso, um juiz não pode fazer.
Pois essa é a discussão.
Não se está discutindo que existiam – como existiam, e sobejamente – provas dos crimes de Lula, Cunha, Cabral, Vaccari, Dirceu e outros, como ele lembra nessa entrevista.
Para usar uma expressão do próprio Moro em uma de suas decisões, não se está discutindo a parte em que ele tem razão. O que se está discutindo é o ponto em que ele não tem razão.
O que se está discutindo é o farisaísmo de se apresentar como vestal da sociedade, ao mesmo tempo em que, longe do público, se agia ilegalmente (e sem necessidade).
O que se está discutindo é que um juiz, mesmo quando profere condenações mais do que justas, não pode agir, ocultamente, contra a Justiça.
Infelizmente, Moro apareceu com dois supostos argumentos que demonstram sua insistência nessa conduta.
O primeiro é que, apesar das mensagens serem verdadeiras, “eu não excluo a possibilidade de serem inseridos trechos modificados”.
Essa ênfase numa “possibilidade”, enquanto o problema é o conteúdo que ele admite como verdadeiro (ou, pelo menos, não contesta) somente expõe uma tentativa de fuga.
Até porque as mensagens existem. A “inserção de trechos modificados”, até agora não apareceu.
Junto com esse suposto argumento está a queixa sobre “vazamento”, aliás, “hackeamento”.
Porém, foi o próprio Moro quem escreveu sobre o “efeito salutar da publicidade” quanto às investigações (v. HP 18/11/2016, Anotações do juiz Sergio Moro sobre a Operação Mãos Limpas).
As queixas de Moro sobre a publicação das mensagens são semelhantes àquelas de Lula, do PT, e de outros réus da Operação Lava Jato.
Porém, o que vale para um lado deve valer para todos: o melhor é que a população seja informada daquilo que acontece fora da sua visão.
Certamente, isso nada tem a ver com falsificação de informações. Mas, até agora, nada demonstrou alguma falsificação nas mensagens, divulgadas por The Intercept Brasil, entre Moro e Dallagnol.
NOVAS MENSAGENS
Outras mensagens, divulgadas por The Intercept Brasil na noite de sexta-feira, mostram um diálogo de Moro com o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, hoje aposentado, na época o integrante mais experiente da Operação Lava Jato, veterano da época do escândalo do Banestado.
Foi na noite de 10 de maio de 2017, dia em que Moro interrogou Lula, no processo da propina do triplex de Guarujá.
A iniciativa de se comunicar foi de Moro.
MORO – 22:04 – O que achou?
SANTOS LIMA – 22:10 – Achei que ficou muito bom. Ele começou polarizando conosco, o que me deixou tranquilo. Ele cometeu muitas pequenas contradições e deixou de responder muita coisa, o que não é bem compreendido pela população. Você ter começado com o triplex desmontou um pouco ele.
MORO – 22:11 – A comunicação é complicada pois a imprensa não é muito atenta a detalhes.
MORO – 22:11 – E alguns esperam algo conclusivo.
MORO – 22:12 – Talvez vcs devessem amanhã editar uma nota esclarecendo as contradições do depoimento com o resto das provas ou com o depoimento anterior dele.
MORO – 22:13 – Por que a Defesa já fez o showzinho dela.
SANTOS LIMA – 22:13 – Podemos fazer. Vou conversar com o pessoal.
SANTOS LIMA – 22:16 – Não estarei aqui amanhã. Mas o mais importante foi frustrar a ideia de que ele conseguiria transformar tudo em uma perseguição sua.
A impropriedade aqui é claramente de Moro, que iniciou a troca de mensagens e sugere que os procuradores “editem uma nota esclarecendo as contradições do depoimento com o resto das provas ou com o depoimento anterior dele”.
Na mesma noite, logo em seguida, há uma mensagem de Deltan Dallagnol para Moro (segundo The Intercept Brasil, explicando o sentido desta mensagem, “Dallagnol enviou uma mensagem a Moro para explicar por que não explorou a fundo as contradições do petista”):
DELTAN – 22:16:26 – Informo ainda que avaliamos desde ontem, ao longo de todo o dia, e entendemos, de modo unânime e com a ascom, que a imprensa estava cobrindo bem contradições e que nos manifestarmos sobre elas poderia ser pior. Passamos algumas relevantes para jornalistas. Decidimos fazer nota só sobre informação falsa, informando que nos manifestaremos sobre outras contradições nas alegações finais.
Depois, há uma troca de mensagens entre os dois.
DELTAN – 23:02:20 – Caro parabéns por ter mantido controle da audiência de modo sereno e respeitoso. Estamos avaliando eventual manifestação. A GN acabou de mostrar uma série de contradições e evasivas. Vamos acompanhar.
MORO – 23:16:49 – Blz. Tb tenho minhas dúvidas dá pertinência de manifestação, mas eh de se pensar pelas sutilezas envolvidas.
As demais mensagens divulgadas, entre procuradores da força-tarefa e assessores de imprensa não têm grande importância – o Ministério Público, evidentemente, é parte dos processos, e tem o direito (e até o dever) de discutir sua estratégia, inclusive quanto à divulgação do seu trabalho.
O problema é quem não é parte – isto é, um juiz – agir como se parte fosse.
CARLOS LOPES
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