Vazamento de 13,4 milhões de documentos revela: da rainha inglesa à Apple, “quando se trata de pagar imposto, existe uma regra para os super-ricos e outra para o resto de nós”
Um gigantesco vazamento de 13,4 milhões de documentos sobre a evasão de impostos em 19 paraísos fiscais veio a público na segunda-feira (06), sob o nome de “Paradise Papers” – os Papéis dos Paraísos [Fiscais] –, revelando que, da rainha inglesa Elizabeth II ao secretário do comércio de Trump, Wilbur Ross, e ao primeiro-ministro canadense Justin Trudeau, mais ministros como Henrique Meirelles (Brasil) e Luis Caputo (Argentina), passando por um magnata saudita e astros do showbizz até monopólios como a Apple, Uber, Nike e Glencore, “quando se trata de pagar impostos, existe uma regra para os super-ricos e outra para o resto de nós”, na apurada descrição do líder trabalhista inglês Jeremy Corbyn.
Ainda maior que os “Panama Papers”, a denúncia foi igualmente obtida pelo jornal alemão Süddeutsche Zeitung e posteriormente repassada ao Consórcio Internacional de Jornalismo Investigativo (ICJI) – que busca ser um tipo de ‘WikiLeaks’ mais palatável ao establishment e com sede em Washington -, e sua divulgação envolveu, ainda, o Guardian inglês e o New York Times norte-americano.
Via paraísos fiscais offshore, magnatas e monopólios evitam pagar impostos e têm facilitada a lavagem de dinheiro e a ocultação do produto da corrupção. Com a globalização e a metástase do rentismo, os paraísos fiscais tiveram um crescimento exponencial, o que também favorece as máfias e os traficantes.
Metade dos documentos se refere a um escritório de advocacia, Appleby, que gosta de se apresentar como “o Rolls Royce” dos escritórios especializados em evasão fiscal offshore. São 19 os paraísos fiscais arrolados: Antígua e Barbuda, Aruba, Bahamas, Barbados, Bermudas, Ilhas Cayman, Ilhas Cook, Dominica, Grenada, Labuan, Líbano, Malta, Ilhas Marshall, São Cristóvão e Nevis, Santa Lúcia, São Vicente, Samoa, Trinidad e Tobago e Vanuatu.
Outro antro investigado é a Asiaciti Trust, baseado em Singapura. Existe até mesmo uma “instituição” que representa os escritórios que proporcionam fachada para a lavagem de dinheiro, o International Financial Centers Fórum (IFC), que, aliás, declarou que os paraísos fiscais nas dependências da coroa britânica têm “os mais altos padrões regulatórios”.
Conforme o vazamento, 11 milhões de libras esterlinas da rainha Elizabeth II foram “investidos” em um “fundo” das Ilhas Cayman. Um dos principais líderes conservadores, Lord Ashcroft, foi flagrado com US$ 450 milhões em um ‘trust’ em um paraíso não identificado. Ashcroft, apesar de ser membro da câmara dos lordes, a câmara alta que não é eleita, sempre se negou a pagar impostos na Inglaterra e inclusive mantinha seu domicílio fiscal fora do país!
O “trust” é aquele tipo de evasão fiscal popularizada pelo ex-presidente da Câmara Federal e atual presidiário Eduardo Cunha, autor da inesquecível justificativa “sou o usufrutuário”. Agora os pegos com a boca na botija na modalidade foram os ministros da Economia brasileiro Henrique Meirelles e argentino, Luis Caputo. Assim como o atual primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, através do administrador de seus “investimentos”.
Entre as corporações transnacionais cujas digitais foram descobertas nos Paradise Papers, estão a Apple, “que secretamente moveu partes do império para Jersey depois da disputa sobre assuntos fiscais”. Também a mineradora Glencore, a Uber e a Nike.
Estudo divulgado em maio do economista Gabriel Zucman da Universidade da Califórnia, Berkeley, e mais dois colegas escandinavos, “Evasão e Desigualdade Fiscal”, demonstrou que os super-ricos, o 0,01% do topo, escondem cerca de 25% da sua riqueza especialmente em paraísos fiscais. “Na nossa estimativa, o 0,01% da distribuição possui cerca de 50% do total [riqueza offshore]”.
A evasão fiscal nos EUA transformou-se em um empreendimento em escala industrial e incorporado ao modus operandi dos monopólios ianques. Estima-se que as corporações norte-americanas detenham US$ 2 trilhões em dinheiro nos paraísos fiscais offshore para escapar do pagamento de impostos dos EUA – o que equivale a 14% do PIB. Só a Apple mantém US$ 240 bilhões – das suas reservas de caixa de US$ 256 bilhões – no exterior, a fim de evitar pagar imposto se repatriar o dinheiro.
Quando vazaram os Panama Papers, o então primeiro-ministro islandês Sigmundur Gunnlaugsson se viu forçado a renunciar depois que documentos mostraram que ele e sua esposa operavam uma empresa de fachada nas Ilhas Virgens Britânicas para driblar os impostos islandeses e lucrar com o resgate pós-2008. Ainda é cedo para saber quem vai ao chão no atual round.
Quanto ao que move o ressurgimento da questão exatamente neste momento, o que parece é que a mídia está buscando direcionar para a “interferência russa”, com análises desinteressadas da mídia relacionando o secretário do comércio de Trump, o bilionário Wilburt Ross, dono da Navigator, com uma empresa russa que entre seus acionistas tem “um genro de Putin”, a Sibur. Mas Ross já reiterou que quando comprou a empresa, esta já tinha acordo com os russos, e não o contrário.
Também se fala em “agentes estatais russos” fazendo “investimentos no Twitter e Facebook”, como se não fosse o Consenso de Washington que tivesse imposto ao planeta a revoada de capitais do mundo inteiro para Wall Street – e quando isso falha, a casa cai, como em 2008. Mas a acusação de que oligarcas russos fizeram uso de paraísos fiscais para obter mais um naco dos clubes de futebol ingleses Arsenal e Everton, pelos precedentes no caso deve ser a mais pura verdade.
O Guardian pergunta se os paraísos fiscais “não foram longe demais”. Em carta dirigida aos líderes mundiais, mais de 300 economistas, inclusive o Prêmio Nobel, Sir Angus Deaton, advertiram que “a existência dos paraísos fiscais não aumenta a riqueza global ou o bem-estar global; não serve a propósito econômico útil”. Naturalmente, os monopólios, os ladrões, os corruptos, os fraudadores de imposto e, agora se sabe, até sua majestade, discordam.
ANTONIO PIMENTA