Show de horrores na abertura e condição de Olimpíada do Genocídio tornam Paris 2024 um sintoma agudo da crise da contestada ordem unilateral sob predomínio de Washington
A Olimpíada de Paris 2024 está se tornando mais notória pelas discussões que suscitou, do que propriamente pelos méritos nos esportes, desde ter se tornado a Olimpíada do Genocídio pela presença de Israel, até o escândalo da abertura, um deboche sobre a história da França, em que sequer faltou um pastiche vergonhoso da Última Ceia, depois dito pelos seus defensores de ser retrato de uma “festa pagã”, com direito a drag queens e outros adereços, um coro de rainhas Maria Antonieta com a cabeça decepada cantando a música dos revolucionários sans-cullotes “Ah! Ça Ira”, e um desfile de um cavaleiro do apocalipse pós-moderno pelo rio Sena, complementado pelo hasteamento da bandeira olímpica de cabeça para baixo.
Um show de horrores e de mau gosto, uma provocação contra o país do iluminismo e da primeira revolução democrática.
Mas consistente com a mediocridade macronista que aflige a França, a sabujice aos EUA, e a indisfarçável decadência sem elegância da ex-potência colonial, também esta, parte da crise da espoliação do planeta pelo chamado ‘Ocidente’.
Além, claro, de vexames como atletas que adoeceram por nadarem nas águas do Sena. Como registrou o jornal Le Monde, a qualidade da água no dia em que a prefeita Anne Hidalgo se banhou no Sena (17 de julho), estava aquém dos limites recomendados pelas autoridades de saúde.
FIM DE UMA ERA
Um articulista português, que o portal Estátua de Sal transcreveu, Carlos Matos Gomes, muito oportunamente classificou Paris 2024 como os “Jogos Olímpicos do fim de uma era”.
Matos Gomes fez um paralelo com a Regata de Kiel, em 1914, em que alemães e britânicos confraternizaram momentaneamente, enquanto em Sarajevo o assassinato do Arquiduque da Áustria punha em marcha o mecanismo da guerra pela partilha do mundo entre as potências europeias, e com a Olimpíada de Berlim de 1936, sob Hitler, a três anos da eclosão da II Grande Guerra e da pavorosa chacina nazista.
Agora, ele clama, de novo diante da “armadilha de Tucícides”, na decadência indisfarçável da ordem unilateral norte-americana, e irrupção da maioria global, do multilateralismo, luta por soberania e desenvolvimento, pois é nessa condição contraditória que o mundo presencia as Olimpíadas de Paris.
Como apontou o jornal Libération, ao descrever aquela cena do cavaleiro do apocalipse no Sena: “Já não sabemos em que ano estamos. 1936? 2073?”.
E continuou: “a música é épica, os cantores gritam e nos fazem oscilar entre o chauvinismo e o desejo do fim do mundo. Grande demônio, cavaleiro, revele-se!”, explicitou a publicação.
No entanto, nas palavras de outro articulista, o Libé admitiu que a ridícula cena parecia “plagiada da capa do último álbum de Beyoncé, Cowboy Carter”.
VOMITÓRIO
A perplexidade que se sucedeu à agressão contra a Última Ceia – na verdade, contra a Renascença e contra o iluminismo – levou mais recentemente o próprio Vaticano a se pronunciar, depois de desculpas esfarrapadas dos organizadores e até exclusão de vídeos da abertura no youtube.
“A Santa Sé, entristecida por algumas cenas da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris, não pode deixar de se juntar às vozes que se levantaram nos últimos dias para deplorar a ofensa causada a muitos cristãos e crentes de outras religiões”, lê-se no comunicado.
O Vaticano salienta que, “num evento de prestígio em que o mundo inteiro se une em torno de valores comuns”, não deveria haver espaço para “alusões que ridicularizem as convicções religiosas de muitas pessoas”.
Ao que parece, os autores da mixórdia consideraram que outros deveriam ser os “valores comuns”, nada desses anacronismos sobre “mais rápido, mais alto, mais forte” do Barão de Coubertin. E ainda acharam que podiam servir a gororoba goela abaixo do mundo inteiro em horário nobre e ao vivo, sob pretexto da “inclusão”, “diversidade” e “sorosidade”, mas transudando a niilismo, obsessão por chocar e caretice.
OLIMPÍADA DO GENOCÍDIO
Mas foi ao assumir a condição de Olimpíada do Genocídio que os Jogos de Paris atingiram o ponto mais baixo da degradação.
Uma mancha que jamais terá como ser apagada: a presença de Israel, contra o qual não foi acionada a cláusula da “trégua olímpica”, apesar do inclemente genocídio contra os palestinos em Gaza, aos olhos do mundo, e sob investigação da Corte Internacional de Justiça da ONU. Genocídio que não para um minuto, e com o açougueiro de Tel Aviv, ovacionado de pé no Congresso do EUA, aonde foi pedir mais bombas para matar mais crianças e mulheres.
De acordo com a respeitada revista médica britânica The Lancet, que já fez anteriormente estimativas para a matança no Afeganistão e Iraque, a escala do genocídio se aproxima de 200 mil, entre mortes diretas e indiretas.
O banimento de Israel foi expressamente pedido pelo Comitê Olímpico Palestino e pelo do Irã, mas foi ignorado pelo Comitê Olímpico Internacional. Então, o genocídio não foi considerado suficiente para o banimento do regime de apartheid – aliás, em outras épocas em que o fascismo não estava com tanta folga, a África do Sul ficou proibida de participar de Olimpíadas entre 1964 e 1992.
Também Nkosi Zwelivelile Mandela, neto de Nelson Mandela, pediu que “Israel do apartheid” fosse banido dos Jogos Olímpicos de Paris, denunciando que mais de 400 atletas palestinos que poderiam participar das Olimpíadas foram mortos, juntamente com sua equipe de treinamento e treinadores, na invasão de Gaza pelas tropas coloniais israelenses.
Enquanto o genocídio com quase 200 mil mortos não era razão suficiente para acionar a cláusula da trégua olímpica e vetar a infame presença de Israel, o COI, usando de evidente dupla moral, vetou a participação dos atletas russos, cujo país resiste à guerra movida pela Otan pela anexação da Ucrânia, depois de o regime instalado em Kiev por um golpe de Estado da CIA em 2014 perseguir e bombardear por oito anos a população russa étnica do Donbass, proibir o uso da língua russa, rasgar os acordos de pacificação de Minsk, e se proclamar regime herdeiro dos colaboracionistas de Hitler na II Guerra Mundial.
Mas, sob as luzes de Paris, sempre haverá pontos inesquecíveis nos Jogos de 2024. Como quando nossa Rebeca se torna a atleta brasileira com mais medalhas da história. O carinho com que a pequena delegação palestina foi recebida. A homenagem aos mártires da luta anticolonial pela delegação argelina. O desfile da delegação de atletas refugiados. Ou, ainda, Céline Dion, cantando do alto da Torre Eiffel, para o mundo, “L’Hymne à l’Amour”, imortalizado por Edith Piaf.