Nem oferecendo a própria cabeça, e apesar de ‘fatiamento’ desesperado de última hora, a primeira-ministra Theresa May conseguiu empurrar goela abaixo do parlamento – e dos britânicos – seu ‘acordo Brexit’ regateado com Bruxelas. Por 344 votos a 286, o plano May foi derrotado pela terceira vez, no dia originalmente marcado para a saída oficial do Reino Unido da União Europeia.
Enquanto a votação ocorria no parlamento, milhares de britânicos foram às ruas de Londres em defesa do Brexit e em repúdio às tentativas de passar por cima do referendo de 2016. Logo após o resultado, a União Europeia anunciou uma cúpula de emergência no dia 10 de abril, dois dias antes do prazo oficialmente anunciado de saída sem aprovação de acordo, depois de ter emitido na véspera uma declaração arrogante.
O terceiro rechaço consecutivo do acordo Brexit da primeira-ministra na Câmara dos Comuns levou o líder trabalhista Jeremy Corbyn a pedir a renúncia de May e a convocação de eleições gerais, petição apoiada pelos nacionalistas escoceses do SNP.
“CHEGANDO AO LIMITE’
“As implicações da decisão da Câmara são sérias. A consequência jurídica agora é que o Reino Unido tem de sair da União Europeia em 12 de abril. Em apenas 14 dias. Isso não é o suficiente para concordar, legislar e ratificar um acordo, no entanto, a Casa deixou claro que vai não permitir uma saída sem acordo. Nós vamos ter que concordar em um caminho alternativo para a frente”, lamuriou-se May.
Ela também chantageou os deputados dizendo que, agora, o mais provável é que os ingleses tenham de participar do desgastante processo eleitoral do Parlamento Europeu em maio. Mas acabou tendo de admitir que “estamos chegando aos limites desse processo nesta casa” – o que só uma eleição geral poderia solucionar.
ELEIÇÕES JÁ
O líder oposicionista Corbyn afirmou que o parlamento “tem sido claro que este acordo tem que mudar agora, tem que ser encontrada uma alternativa”. “Se a primeira-ministra não pode aceitar isso, então ela deve ir – não em uma data indeterminada no futuro, mas agora, para que possamos decidir o futuro deste país através de uma eleição geral”.
O líder dos nacionalistas escoceses (SNP), Ian Blackford, disse que o acordo Brexit do governo May estava “absolutamente morto”, o que só poderia ser corrigido por “uma eleição geral ou segundo referendo”. “A primeira-ministra não tem nenhuma credibilidade. Devemos colocar isso de volta ao povo”.
Também um representante da ala pró-Brexit dos conservadores, Steve Baker, cobrou a renúncia de May, já que seu acordo já havia sido rejeitado duas vezes – por 230 votos em janeiro e 149 em março.
No fracasso de May, não faltou sequer o jeitinho britânico. Fatiou seu acordo Brexit em dois, para driblar a proibição regimental de votar o mesmo tema mais de duas vezes. O Acordo propriamente dito, de 585 páginas, foi à votação e barrado. A aprovação até esta sexta-feira 29 de março era uma exigência de Bruxelas, para aceitar estender a data limite de saída do bloco até 22 de maio. A “Declaração Política” de 36 páginas não foi à votação.
O placar menor da derrota de May tem uma explicação simples: a oferta de renúncia trouxe para seu lado, no momento, todos os eurocéticos conservadores que se vêem como o próximo primeiro-ministro, como o louro Boris Johnson, o carola Jacob Rees-Mogg e o ex-secretário do Brexit, Dominic Raab.
SEM CACIFE
Além do seu isolamento no parlamento britânico, é visível que os governos da União Europeia já não acreditam que May seja capaz de liderar a aprovação de qualquer acordo entre Londres e Bruxelas.
Na véspera, uma reunião na sede da UE definira três imodestas pré-condições para o caso de não-acordo. Até 18 de abril o Reino Unido teria de sinalizar que irá pagar à UE 39 bilhões de libras esterlinas (multa pela saída) – mesmo se o parlamento não ratificar o acordo. Manutenção do ‘backstop’ na fronteira inter-irlandesa – e portando da jurisdição europeia acima da britânica – para salvaguardar o Acordo de Sexta Feira Santa que pacificou a Irlanda do Norte – o que se choca com o entendimento de grande parte dos parlamentares britânicos de que isso implica em que todo Reino Unido ficará sob as regras da UE sem direito de opinar, por tempo indeterminado. Por fim, “respeito aos direitos de residência e coordenação de segurança social”.
NÃO-ACORDO ‘MUITO REAL’
A isto se seguiu declaração logo depois da votação, em que a Comissão Europeia adverte que o “cenário de não-acordo em 12 de abril” é agora “provável”. Acrescenta que a UE tem estado se preparando para isso “desde 12/2017” e que está “plenamente preparada”. “Permaneceremos unidos”.
Vem então a ameaça: “Benefícios do Protocolo de Entendimento, inclusive o período de transição, não serão replicados no cenário de ‘não-acordo’”. “Mini-acordos setoriais não são uma opção”.
“O risco de um não-acordo Brexit é muito real”, salientou o premiê holandês, Mark Rutte.
Mas um negociador europeu acredita ainda em uma janela de oportunidades para um acordo, diante dos resultados indicativos das votações de quarta-feira passada, em que as posições favoráveis à manutenção de algum tipo de união aduaneira receberam votações expressivas. Na segunda-feira, os deputados vão retomar esse esforço.
Além do ‘não-acordo’ – que por sinal foi vetado em votação do parlamento britânico – e das eleições gerais, uma outra possibilidade seria a extensão da data de saída por um prazo mais longo, havendo declarações várias sobre “seis meses” e “um ano”.
No entender do ex-governador do Banco da Inglaterra (o BC inglês), Mervyn King, o Reino precisaria de seis meses de preparação para uma saída da UE sem acordo, comentário em que rebateu os rumores de que um não-acordo seria um “suicídio nacional”.
DIVISÃO
Todo o processo do Brexit tem provocado uma enorme divisão dentro da sociedade britânica, com a saída da UE tendo vencido o plebiscito de 2016 por 17,4 milhões a 16,1 milhões (52% a 48%). Na afluente e cosmopolita Londres, as benesses da União Europeia parecem muito mais brilhantes do que nas cidades desindustrializadas sob o Thatcherismo e seus discípulos. Na semana passada, os ‘remainers’ (favoráveis a ficar) reuniram na capital inglesa centenas de milhares, em torno de um novo referendo e de abandonar o artigo 50, que deflagrou as negociações de saída.
Os principais partidos estão completamente divididos sobre o Brexit, com alas contra e a favor, e até o governo. Divisão que a desastrosa gestão do processo de negociação do Brexit por May só fez agravar, dado seu foco nos interesses dos especuladores da City londrina – que fazem intermediação para Wall Street – durante as negociações com Bruxelas.
Assim como, entre os adeptos do Brexit, a par com setores progressistas que querem a nacionalização das ferrovias, a preservação do sistema único de saúde (NHS) e uma política de desenvolvimento, há aqueles que vêem nele o terreno mais propício a aprofundarem as “relações especiais” com Washington e Wall Street, o parasitismo, o que de alguma forma consideram que estaria travado no quadro europeu, na disputa com outros monopólios.
‘APAGUE A LUZ’
Como observou o Morning Star, o que levou à surpreendente vitória do Brexit foi o repúdio à política neoliberal na União Europeia – uma política que chegou a tais extremos pós-2008 que até a mera implementação de medidas keynesianas é impedida por restrições ao gasto público. E que tem como base que, na origem, a União Europeia foi constituída para favorecer bancos e monopólios e a livre movimentação de capitais, em detrimento dos povos europeus.
Até segunda-feira, certamente nas tradicionais casas de apostas inglesas estará em disputa o que resultou do fiasco de May desta sexta-feira. Enquanto o eurocético Baker asseverou que “esta deve ser a derrota final para o acordo de Theresa May, está terminado e devemos seguir em frente”, houve quem achasse que, como a margem da derrota foi menor do que a anterior, “estamos avançando na direção certa”. Mas, conforme o Guardian, a sensação geral no governo May é de “descrença e atordoamento”. Ao ser indagada sobre o que aconteceria em seguida, uma fonte palaciana disse simplesmente: “o último, apague as luzes”.
ANTONIO PIMENTA