NATHANIEL BRAIA, de Haifa, Israel
“A teologia da prosperidade tem uma lógica bélica, hierárquica, exclusivista e intolerante”, afirma o pastor Henrique Vieira em seu trabalho “Uso da memória de Israel no contexto de extremismo evangélico brasileiro”, apresentado no dia 14, na Universidade de Haifa (Israel), no segundo dia de debates da Conferência “Política e Religião no Brasil e nas Américas”
A professora Yael Mabat, estudiosa da moderna cristandade na América Latina da Universidade de Beer Sheva, destacou o uso da Bíblia pelos que perpetraram o golpe que afastou Evo Morales na Bolívia. “Um dos que estavam ao lado de Luis Camacho que entrou no palácio do governo e colocou a bíblia no chão, no hall de entrada, declarou ‘Não mais Pacha Mamma’ [como é designada a Terra na língua quechua dos indígenas bolivianos]”, afirmou a professora ao apresentar sua análise denominada “Guardando o Shabat [Sábado], lendo a Bíblia e se tornando um ‘cristão verdadeiro’, as Índias Adventistas do Sétimo Dia e a Igreja Católica, Puno Peru de 1900 a 1930”.
O professor Omar Ribeiro, antropólogo da Universidade de Campinas, que estudou manifestações religiosas em Moçambique antes de depois da revolução que libertou o país da condição de colônia portuguesa, ajpresentou a tese denominada “Discreta e Delicada: uma sinagoga em meio a guerras”. Em sua fala, afirmou haver testemunhado o processo de entrada da Igreja Universal em Maputo [capital de Moçambique]: “O governo socialista e revolucionário de Moçambique, que no início apresentava contradições com Israel por contra de sua política em relação aos palestinos, hoje tem boas relações institucionais com a Igreja Universal que prega, entre os moçambicanos, a adoração a Israel”.
Pela sua importância e clareza, publicamos os principais trechos da intervenção do pastor Henrique Vieira:
A memória bíblica de Israel vem sendo, cada vez mais, utilizada por determinados setores evangélicos no Brasil. Contudo esta memória é acessada por meio de uma interpretação equivocada dos textos bíblicos que acaba por defender uma perspectiva religiosa geralmente amparada na Teologia da Prosperidade, numa lógica bélica, exclusivista, hierárquica e intolerante.
Cabe inicialmente destacar o caráter heterogêneo e diverso do segmento evangélico no Brasil. Não há unidade ou uniformidade nesse campo. É da natureza histórica e conceitual do Protestantismo a diversidade de perspectivas teológicas e eclesiásticas. Está em sua gênese (século XVI) a contundente afirmação do sacerdócio universal dos crentes e a livre interpretação das escrituras. São afirmações teológicas e políticas de efeitos concretos.
No contexto do humanismo, do Renascimento Cultural e Científico, da acumulação primitiva de capital e da formação dos Estados Modernos, as Reformas Protestantes aparecem com mais uma expressão da crise do mundo feudal e da configuração de um novo modelo de sociedade. Tratava-se de mudanças políticas, econômicas, culturais, científicas e epistemológicas. A religião, como parte da experiência humana, não poderia ficar fora daquele contexto de mudanças profundas.
Toda experiência religiosa está calcada no chão da história. Em certa medida é tributária do tempo, é antropológica. Teologia não é o estudo sobe Deus, mas o estudo das narrativas humanas sobre Deus. São afirmações simples, mas importantes para a compreensão histórica.
As Reformas Protestantes eram, portanto, mais uma causa e efeito daquele momento histórico, acentuando a noção antropocêntrica do Humanismo e do Renascimento. No cerne dessa experiência estava a valorização do indivíduo e de suas capacidades de questionamento e produção de conhecimento. A versão protestante deste conceito vinha na crítica ao clero, às indulgências, à lógica penitencial e ao suposto caráter infalível do papa em questões de fé.
O conceito de sacerdócio universal aponta para a possibilidade de que cada indivíduo acessar diretamente a Deus por meio da graça revelada na pessoa de Jesus.
O protestantismo chega ao Brasil de forma sistemática e definitiva ao final do século XIX.
Hoje existem as Igrejas históricas, tais como a Batista, Metodista, Congregacional, Pesbiteriana Luterana e Anglicana, assim como aquelas do chamado Movimento Pentecostal (Assembleia de Deus como maior expressão) e do Movimento Neopentecostal (Universal do Reino de Deus como maior expressão).
Existe um crescimento vertiginoso das igrejas evangélicas no Brasil, em especial entre as camadas populares. São múltiplos e complexos os fatores que ajudam a explicar esse crescimento. Entendo que o caráter informal de linguagem simples, de acolhimento e pertencimento comunitário se constituem parte integrante dessa explicação.
Contudo existe um tempo histórico, global e brasileiro que contribui para tal crescimento. Uma sociedade cada vez mais urbanizada, atravessada pela lógica do neoliberalismo, do consumismo e do individualismo, do esvaziamento do sentido coletivo de vida, de concorrência e competição e perda de laços afetivos de sociabilidade, tende a abrir feridas e carências profundas que são potencialmente preenchidas pela vivência comunitária dessas igrejas. Muitas vezes se trata do único espaço de convivência e comunhão, que pessoas, desprezadas por uma sociedade elitista e desigual, conseguem encontrar. Enfim, no esgarçamento das relações sociais provocado pela dinâmica do neoliberalismo, determinadas expressões religiosas ganham força como maneira de orientação da vida.
Então nesse momento cabem as perguntas: Que tipo de experiência evangélica cresce no Brasil? Como a memória bíblica de Israel é acessada neste contexto e com quais objetivos?
FUNDAMENTALISMO E EXTREMISMO
A experiência evangélica predominante e hegemônica possui traços fundamentalistas e extremistas. É um campo em disputa, porém é preciso admitir a tendência fundamentalista que tem se consolidado.
Entendo fundamentalismo a partir dos seguintes critérios: verdade absoluta a partir de uma Revelação supra-histórica; literalismo bíblico; idealização do passado e aversão às mudanças do tempo presente; aversão à diversidade; vocação de imposição doutrinária. O extremismo seria o fundamentalismo elevado ao extremo e materializado em ações diretas ou indiretas de violência e em um projeto de poder. Esta distinção se faz necessária. Contudo ambos, em alguma medida, se nutrem de e, ao mesmo tempo, alimentam uma perspectiva de intolerância e conservadorismo.
O ACESSO AO SUCESSO MATERIAL
Nesse contexto, a memória bíblica de Israel aparece como chave interpretativa e discursiva que dá base para determinadas afirmações. Memória acessada por meio de uma interpretação equivocada. Os textos retirados de seu contexto histórico e literário, são utilizados na perspectiva da Terra Prometida e da abundância material. A frase comum é “não sou dono do mundo, mas sou filho do Dono”. Esta afirmação induz a ideia de que crendo em Deus se é mais do que vencedor e a noção de vitória tem a ver com sucesso material.
Nesse ponto, a memória bíblica de Israel é vastamente utilizada. Apresenta-se a ideia de um povo vencedor, destinado ao sucesso, que é filho de Deus que é dono da prata e do ouro e que suas promessas são de riqueza e abundância materiais. Apresenta-se a ideia do povo cristão como verdadeiro povo herdeiro destas promessas.
Cabe destacar que a história bíblica é acessada por meio de uma hermenêutica, uma interpretação dos textos religiosos, que desconsidera totalmente o panorama histórico.
Enquanto que, na compreensão teológica que reivindico, esses textos refletem a história de um povo oprimido chamado por Deus a sua plena liberdade. Como está dito no livro do Êxodo. “Deus ouviu o grito dos oprimidos e desceu para libertá-los”. Este povo é chamado a cuidar do órfão e da viúva, a fazer da justiça uma ética permanente fruto de seu compromisso com Deus. Quando esse povo se afasta da ética da justiça e da libertação e constrói um Estado opressor, os profetas são levantados para convocar o povo ao arrependimento. Dentro de um panorama histórico dos textos se percebe, na verdade, o compromisso de Deus com os pobres, os famintos, os estrangeiros, os sem terra e um chamado de Deus à justiça social como demanda espiritual.
TEOLOGIA DA PROSPERIDADE E NEOLIBERALISMO
Já com relação à teologia da prosperidade vejo que, portanto, é um absurdo hermenêutico, pois esvazia o caráter popular, comunitário e coletivo dos textos, dando a eles uma interpretação individualista, descontextualizada, fomentando uma lógica meritocrática e que isenta as estruturas injustas da sociedade atual. Costumo dizer que a Teologia da Prosperidade é a justificação teológica do neoliberalismo.
A memória bíblica de Israel também é utilizada para justificar uma perspectiva religiosa exclusivista e hierárquica. Exclusivismo tem relação com a noção de povo escolhido por Deus. Nesse ponto se verifica uma operação hermenêutica que entende o povo cristão como verdadeiro herdeiro das promessas de Deus em laços complementares com o povo judeu. Se o povo judeu foi escolhido em termos históricos, o povo cristão se apresenta como a genealogia espiritual que interpreta adequadamente as promessas contidas naqueles textos.
Tal narrativa cria uma imagem de eleição, seleção e vocação para o domínio sobre o conjunto da sociedade. Exclusivismo e intolerância também caminham lado a lado nesse ponto. É como se houvesse uma autorização divina para se impor mecanismos de controle sobre a sociedade a partir de uma suposta verdade.
É como se existisse um povo com mais direitos, é como se Deus tivesse escolhido um povo para conduzir a sociedade.
Numa compreensão mais contextualizada dos textos bíblicos se percebe a escolha de Deus por um povo oprimido para que aquele povo pudesse dar testemunho da justiça para outros povos. Sendo assim não se tratava de um exclusivismo intolerante, mas da responsabilidade de sinalizar a justiça, o acolhimento, a misericórdia e o amor para todos os povos. A escolha de Deus é por uma condição humana, econômica e social: trata-se da condição dos pobres e oprimidos. Deus revela a universalidade de Seu amor a partir da experiência concreta das vítimas da Terra.
ESVAZIAMENTO DOS TEXTOS BÍBLICOS
Contudo a perspectiva exclusivista esvazia o sentido histórico e acaba por ampliar verdadeiros projetos de poder. Dentro dessa lógica, ainda aparece um forte teor hierárquico a partir da memória sacerdotal dos textos bíblicos. A figura do sacerdote é acessada para justificar a posição de autoridade de determinadas lideranças religiosas. Em termos estéticos, linguísticos e de vestuário determinados líderes remontam à imagem dos sacerdotes e dessa forma ampliam seu lugar de intocabilidade, isto é, de poder inquestionável e absoluto.
Inevitável dizer que esta narrativa religiosa não consegue celebrar a diversidade, toma cada vez mais os grandes meios de comunicação e aparelho do Estado brasileiro.
É fundamental dizer que esta narrativa evangélica fundamentalista e extremista não inaugura mas potencializa violências já existentes na sociedade brasileira.
Seria um erro brutal escolher o campo evangélico como o mal da democracia brasileira – com as fragilidades justamente porque marcadas por forte desigualdade social, exploração sobre o povo e pelo racismo – inclusive porque, como já foi dito aqui, trata-se de um campo heterogêneo.
RACISMO
Também se faz necessário afirmar que no caso brasileiro não é suficiente falar em intolerância religiosa, pois é preciso acentuar seu caráter de racismo. Não é por acaso que as religiões de matriz africana, as espiritualidades derivadas direta ou indiretamente da África foram e ainda são perseguidas. O racismo é uma operação sistêmica, um projeto de sociedade e um modelo de colonização que cria a imagem do inimigo, elaborando sua inferioridade, forjando sua subalternidade e, dessa forma, autorizando seu extermínio.
“Como cristão, discípulo de Jesus, pastor ligado aos movimentos populares e à luta por uma sociedade mais justa, fraterna e solidária, muito me entristece ver a bíblia ser usada para oprimir e estimular discursos e práticas de ódio”
A noção exclusivista e bélica atrelada ao uso da memória de Israel cria uma perspectiva permanente de guerra contra o “mal” e este “mal” comumente é associado às religiões de matriz africana. Terreiros são invadidos, mães e pais de santo são perseguidos em “nome de Jesus” e a partir de uma apropriação da memória bíblica de Israel.
USO DA BÍBLIA PARA OPRIMIR
Como cristão, discípulo de Jesus, pastor ligado aos movimentos populares e à luta por uma sociedade mais justa, fraterna e solidária, muito me entristece ver a bíblia ser usada para oprimir e estimular discursos e práticas de ódio.
A história do próprio cristianismo também precisa ser contada a partir da ótica daqueles que sempre estiveram à margem do poder. Gosto de reivindicar a caminhada de São Francisco de Assis, Tereza Dávila, Dom Helder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Martin Luther King, Irmã Dorothy e milhões de outros que a partir de sua fé em Jesus se engajaram na promoção da vida, da paz que é fruto da justiça, do amor que vence as opressões e celebra a Natureza. A memória bíblica de Israel, dentro da minha caminhada teológica, é fonte essencial para declarar que Deus escolheu os oprimidos.
Sempre que um povo é vítima de espoliação, massacre, preconceito e genocídio, este é o lugar que Deus escolhe estar para fazer seu rosto ser visto e seu grito ser ouvido. Na memória bíblica de Israel aprendi que por amor, Deus escolheu os pobres e que toda forma de opressão é anti-bíblica.