“É vergonhoso perdoar a dívida de empresas ligadas a igrejas, mas com finalidade econômica, sem nenhuma finalidade social, nem comunitária, nem filantrópica, nem nada”, afirma o pastor Jair Alves, em entrevista ao HP.
“Esse projeto”, prossegue o pastor, “foi do David Soares, cujo pai dirige a Igreja Internacional da Graça de Deus, uma das maiores igrejas devedoras”.
“Essas igrejas que têm grandes dívidas coincidem com aquelas igrejas chamadas neopentecostais, que para mim são organizações que realmente visam o lucro”, acrescenta o pastor, da Igreja Metodista, e dirigente da Frente Evangélica pelo Estado de Direito.
Segue a entrevista:
HP: Já não há uma imunidade tributária garantida pela Constituição?
PASTOR JAIR ALVES: A Constituição já garante imunidade tributária a diversas entidades, associações…
Agora, imunidade tributária é uma coisa, isenção é outra. A imunidade é uma coisa antiga, com a qual eu concordo, está dentro do conceito de condição de culto, uma vez que há liberdade de credo.
Então, para garantir a liberdade de culto, eu acho que precisa de imunidade.
Mas essa isenção de agora se refere à Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL), o que é outra coisa, estamos falando de uma especialidade do Direito Tributário, é outra coisa.
Agora, as igrejas, os templos, devem ser isentos, dentro daquilo que já está previsto na Constituição. Exemplo disso é o IPTU, IPVA, quando o veículo está em nome da Igreja – eu sou pastor, a minha igreja tem uma Kombi que usamos para suas atividades e não paga IPVA.
Taxas de cerimônia, casamento, etc. não têm que pagar imposto sobre elas, não incorre sobre elas o Imposto Sobre Serviço.
HP: Como apareceu essa emenda?
PASTOR JAIR ALVES: Estávamos falando de imunidade. Agora, essa CSLL, esse 1 bilhão que o Soares quer perdoar, não tem a ver com isso. Isso é esquisito. Esta isenção que ele quer sobre Lucro Líquido não está prevista na imunidade, certo?
Aí, há um paradoxo. Se as igrejas são instituições sem fins lucrativos, como podem apresentar lucros? Só quando são recursos advindos de atividades com fins lucrativos, aí têm que pagar.
PARADOXO E JABUTI
Não é à toa que o Congresso aprovou o perdão de uma dívida gigantesca por meio de uma manobra que os deputados chamam de “jabuti”.
E jabuti é botar dentro de um projeto de lei um item que não tem nada a ver com o que está sendo debatido, com o que está sendo votado.
Isso foi aprovado a toque de caixa, alguns parlamentares votaram com receio, às vésperas das eleições, de se indisporem com as igrejas e seus fiéis.
Eu sei inclusive que há um debate no STF, referente a extensão de imunidade a Fundos de Pensão, ONGs, mas isto está sendo debatido…
HP: Qual a origem dessas dívidas agora perdoadas?
PASTOR JAIR ALVES: As dívidas das igrejas — que podem somar até R$ 1 bilhão — são resultado de multas (e encargos) aplicadas pela Receita Federal após fiscalizações mostrarem que algumas igrejas haviam feito pagamentos sem recolher os tributos devidos, o que foi considerado como manobra para distribuir lucros, tecnicamente chamada de distribuição disfarçada de lucros, o que evitaria o pagamento do tributo. Aluguéis de prédios, publicidade em veículos, transformados em pagamentos a líderes e pastores.
Então, mais uma vez, esse jabuti, do qual estamos falando, foi inserido para barrar cobranças sobre dívidas ao Estado, resultado de fiscalização, e isso foi inserido em um projeto com intuito totalmente diferente. Não tem nada a ver.
Eu acho que o país não pode abrir mão de um bilhão de reais dessa forma, ainda mais em tempos de pandemia.
MÁQUINAS DE GANHAR DINHEIRO
Vamos ver outra coisa. Essas igrejas neopentecostais são verdadeiras máquinas de ganhar dinheiro. Não têm intenção religiosa nenhuma.
O Edir Macedo quis construir até um banco! Possuem TVs, construtoras, é um grupo de empresas, que fazem joint ventures com empresas que abrem no exterior…
Aí, em um ano eleitoral, vem esse negócio com finalidade de agradar aos pastores, sobretudo os dessas igrejas aí. Essa é a minha visão.
HP: Isso tem relação com a Teologia da Prosperidade?
PASTOR JAIR ALVES: Vale a pena uma palavra sobre esse fenômeno da Teologia ou do Evangelho da Prosperidade.
Essas igrejas que aqui proliferam já tomam posições na África, na Ásia…
São megaigrejas. Elas têm um patrimônio que vão acumulando, por sujeitos que se auto-intitulam bispos e até apóstolos. O patrimônio destes milionários é espantoso. Haja visto o Edir Macedo ter saído na revista Forbes…
São milhões e milhões de dólares.
E como ele maneja isso? Alguém da igreja chega para o pastor Edir Macedo e diz: – Toma aqui, pastor, o senhor fica com essa mansão aqui em Campos do Jordão. Aí ele diz: – Ah que bom, eu vou pra lá. Aí ele chega lá, gosta da mansão e liga para o tesoureiro da Igreja dele e fala:
– Escuta, tesoureiro, meu irmão querido, posso deixar essa casa que me presentearam no nome da Igreja, assim eu não pago IPTU?
Daí o tesoureiro responde: – Pode, claro!
Então esses enriquecimentos, essas manobras para encaixar tudo na lei de imunidade, precisam de fiscalização mais severa. Esse aproveitamento que ele está fazendo aí, em um país como o nosso, onde há pobreza extrema… Isso acaba alimentando essa pobreza.
Essa Teologia da Prosperidade vai adiante em meio a essa pobreza extrema, se alimenta dela, dessa instabilidade medonha que existe, dessa fragilidade violentíssima.
HP: Há interesses políticos?
PASTOR JAIR ALVES: Há um governo que não dá conta. Aí o que faz? Isenta os Soares, por quê?
Porque eles estão apoiando o governo de plantão. 70%, desses evangélicos votaram no Bolsonaro, é o que dizem as estatísticas. Aqui em São Paulo, esses pastores estão apoiando os candidatos ligados ao atual governo federal.
Aliás, o Bolsonaro não deu o perdão das dívidas. Ele vetou a parte do projeto que autorizava o perdão, vetou, porque auditores da Fazenda lhe enviaram uma carta alertando que incorreria em crime de responsabilidade fiscal.
Mas escreveu que, se fosse deputado, aprovaria esse perdão. Ele derrubaria o veto dele próprio. É demais! Chega a ser inacreditável. E as igrejas aplaudindo isso.
É benefício a negócios, negócios extremamente lucrativos, e não é à toa que já prometem votar nele de novo.
O dano é grande. Na Coreia do Sul, uma dessas igrejas está sendo punida por ter realizado cultos desrespeitando recomendações sanitárias e o pastor é acusado de distribuir o Covid. Abrindo a igreja e dizendo – como muitos aqui também dizem – que é “uma estratégia do Satanás”. Se você mostra no microscópio que o vírus existe, respondem que o máximo que vai provocar no fiel é uma gripezinha. Esse negacionismo é ideológico. Ele é utilizado porque verificam que tem apelo.
SACRALIZAÇÃO DO DINHEIRO
Eu sou teólogo, e estudei que na experiência neopentecostal, na compreensão deles, o dinheiro é um elemento de mediação na relação com o sagrado. É louco. Eu tive acesso a uma tese de doutorado em que o autor escolheu para estudo exatamente a Igreja Internacional do Reino da Graça. E aí ele verifica que o dinheiro surge para ela como uma questão sociológica e ele mostra que o dízimo toma outro rumo. Na minha igreja protestante histórica, o dízimo é visto como contribuição ao talento, da disponibilidade do pastor para contribuir a causas comunitárias e sociais. Na igreja neopentecostal, não. O dízimo é dinheiro. Para eles é algo que pertence a Deus.
Aí eu pergunto: o que existe de sagrado em uma cédula de dinheiro? Então nesse espaço religioso eles conferem uma “alma” a este objeto, aí que é o dinheiro. Uma “alma” com muita importância.
O dinheiro está sempre na realidade com a qual eles conduzem suas trocas. Por exemplo, tem um pastor neopentecostal americano que declarou: – Olha, eu tenho um carro para cada dia da semana. Carros importados de última geração. E as minhas contas bancárias estão bem gordas mesmo.
E ele mostra essas contas, dizendo que isso aí é bênção de Deus. Deus está multiplicando pra ele. Ele é cada vez mais santificado… É um homem de Deus.
Agora, isso acontece em um contexto de uma sociedade centralizada em uma sistemática de mercado, surge do jeitinho como apontava Shakespeare: “Oh, deus visível, apto a soldar impossibilidades”, em sua profunda ironia…
É assim. A base de sustentação dessas igrejas é o dinheiro, é a grana! Nada a ver com Espírito Santo, com Bíblia.
Em suma, é como se diz: a Teologia da Prosperidade é a nova versão religiosa do neoliberalismo. É isso. Dá pra desconfiar que é isso mesmo! Um negócio cada vez mais complicado, enquanto ficam cada vez mais ricos.