SIDNEI SCHNEIDER
(HP, 11-12/03 e 13-17/03/2015)
Uma antologia de 422 páginas sempre é motivo de releitura da obra de um poeta. Paulo Hecker Filho: poesia reunida (Instituto Estadual do Livro/Corag, 2014), organizada pelos poetas Alexandre Brito e Celso Gutfreind e lançada em dezembro último, traz o “nosso recorte”, como escreveu um deles na dedicatória do meu livro, da vasta obra do autor. Focada em 18 livros e um inédito, deixando de fora a poesia traduzida e o teatro em versos, é obra de vulto de um dos mais significativos escritores brasileiros, falecido em 2005. Leitor informado e permanente de clássicos e novos, com uma biblioteca de 40 mil volumes, o que mais fez na vida foi ler e escrever nos mais variados gêneros, incluída a crítica. Considerava o amor e a amizade suas tarefas essenciais, e que nada poderia substituir a vida, nem mesmo a arte, muito menos a dele.
PARTILHA
O mundo é belo demais para um só homem.
Olhem comigo o dia que nos coube, tomem,
me deixem repartir tanta luz derramada,
que se eu ficar sozinho, eu vou ficar sem nada.
(Perder a vida, 1985)
A partir do título do poema, tem-se uma ideia do que propõe a poesia de PHF, e muito pouco se precisaria acrescentar. Talvez apenas chamar atenção, no caso do poema, para os versos longos metrificados que nem parecem sê-lo, para uma inusitada rima que relaciona o som vocálico que inicia a palavra homem com a bem marcada consoante inicial da palavra-frase tomem, a ampliar o efeito afirmativo do primeiro verso no segundo. Nos últimos, não é exatamente a rima entre adjetivo e pronome indefinido o que esplende, mas a ocorrência de uma palavra que passa por dentro de outra deixando o seu perfume. Assim, em derramada, vê-se nitidamente a palavra amada, implicando sobre o sentido do conjunto, no qual ressoa. Alguém poderia objetar que o autor talvez não tenha pensado nisso enquanto escrevia. No entanto, Hecker não era rabiscador de versos, mas profundo conhecedor da poesia universal, e aquilo que o poeta quis ou não quis fazer jamais saberemos, o que temos é o seu poema, o que efetivamente se pode ler nele ou não, reservadas certas significâncias de época e lugar. Mesmo porque, no caso de um autor vivo, este tenderia a ler de modo diferente o seu poema após alguns dias, um ano ou três décadas da sua finalização, e costuma aceitar o que outros percebem no seu texto quando ele mesmo não o percebeu. Se a poesia admite uma vasta gama de leituras, que podem agregar sentido às já comumente aceitas, ninguém considere que, por isso, se possa admitir qualquer leitura ou uma leitura qualquer, se esta menosprezar o que objetivamente se encontra no poema através dos seus signos.
Sendo a quarta vez que escrevo sobre a obra de PHF, sinto a tentação de refrisar poemas preferidos, contudo é hora de dar vasão a outros. Hecker tinha opiniões muito precisas e estudadas sobre diversos assuntos, fosse literatura ou história, costumes ou política, filosofia ou teatro, ciência ou dança, artes plásticas ou cinema. Não se trata aqui, com o poema seguinte, de extrair da vida do autor o significado do seu poema e limitar a recepção, mas de não isolar qualquer uma das partes que compõem o todo literário: o autor-compositor, a obra-partitura, o leitor-intérprete e, muitas vezes esquecida, a sociedade. A sociedade que demandou e a que usufrui a obra, sendo estas, no início da sua divulgação, a mesma. Se toda obra é expressão social, que se dá através da articulação forma-conteúdo durante sua realização, no ato da leitura interferem também: (1) a experiência social do leitor, que cria sua particular subjetividade, sendo que a apropriação coletiva da obra pelos leitores, se esta tem grandeza artística o suficiente, amplia e agudiza o seu significado, transcendendo o que o autor realizou através de suas próprias forças – melhor dizendo, a produção de sentido individual do autor encontra a produção de sentido coletiva dos leitores e se completa; (2) o contexto social em que esta leitura acontece, sua específica situação de instante e lugar, que age marcadamente sobre o sentido: um poema cômico dito no picadeiro ou durante o velório do palhaço. Em tempos de progressiva submissão oficial aos interesses do capital financeiro e seus monopólios, é um refrigério ler algo sobre não se dobrar ou submeter a pressões, se vão contra nossa soberania e independência, seja no âmbito nacional ou individual:
IDEIAS (trecho final)
Eu gosto dos filósofos, o que pensam
não mudam nem a pau, cicuta ou Hitler.
Sabem levar o samba à última nota.
Senti quando tentei.
(Meu filho, 1992)
Da vida, resta apenas a obra, o que se realizou para o bem comum, representada pela última palavra do registro abaixo, muito além do seu significado imediato e sublinhada de modéstia:
O POEMA
O universo te atravessa. O universo,
com seus lagos, montanhas, desertos,
espaços intermináveis, os astros.
Te atravessa.
Nada sobra de ti nem dele,
a não ser, talvez, o poema.
(Dias e noites, 1999)
O amor aos filhos permeia a sua obra: “Os filhos crescem/ Aquela coisa mais querida do mundo/ de repente tem opinião.” (Os filhos crescem – Nem tudo é poesia, 2001). Cedo demais, PHF teve perdas: “Minha filha, minha mulher, meu pai/ mortos./ E eu era eles./…/ O que prossegue em mim/ viveu e morreu.” (Um pouco além – Nem tudo é poesia); “Lembro de tudo, das roupas às opiniões,/ mas é o teu rir que cai como ácido em mim/ porque ainda se ri cheio de vida./ Estás tão viva/ como se eu telefonasse agora para o Rio/ e respondesses Pai!” (Pai – Dias e noites). O filho se mete em dificuldades e adoece: “Rechaças qualquer piedade//…// Mas ao menos meu olhar/ passa a mão por tuas faces./ E uma vez não dizes não,/ como se, também, amasses…” (Menino dureza – Meu filho). Mas também faleceria, restando-lhe uma das filhas. Como viver depois disso? Hecker, de quem não se ouviu lamentações fora da escrita literária, felizmente sempre teve na poesia um modo de vida, verbalizava exatamente isso, para todos os momentos, alegres ou tristes: “Salva o mundo/ a tarde de abril/ em Porto Alegre/…/ A luz torna Deus desnecessário/ e mesmo a felicidade/…/ Se a vida não existisse,/ essa luz criaria.” (Abril – Não se mate, 1992); “Se deu tanta coisa errada, é o risco de viver,/ vai se ver ninguém se importa.// Se sempre há mundo e o mal,/ não impedem a beleza,/ único ponto final.” (Ponto final – Nem tudo é poesia).
Os poemas têm vida própria, os últimos citados, por exemplo, não se restringem à tragédia pessoal, será preciso lê-los também sob outros pontos de vista, como a este:
O QUE NOS CABE (estrofe inicial e final)
Sê firme como quem não fosse.
Sê sábio como quem não sabe.
A vida não é dura nem doce.
A vida é o que nos cabe.
(Perder a vida)
Emoção todo mundo tem, poesia requer trabalho. Ter o que dizer, não simples estados de ânimo. O texto base, se escrito de uma vez, venha como vier, envolto no que vier; já anotações de versos isolados só mais tarde irão se unir num todo, ou não; seja qual for o método de composição, este exige no mínimo uma segunda fase. De bastante trabalho, já que em poesia tudo significa, qualquer caractere, e em alto grau. O demasiado espontâneo, dada a enorme pressão midiática que atinge a todos, tende a reproduzir as ideias dominantes e conservadoras, ainda que as mais rebuscadas. Assim, o trabalho com a forma também impede, como advertia Auden, as “respostas automáticas,/ forçando-nos a segundos pensamentos”. O aparente sopro, que venha pronto e acabado, bastante criticado por João Cabral, naquilo que se possa chamar de poesia, é raro. E tão importante quanto a escrita, a seleção: escavar a montanha inteira para extrair uma única grama de Rádio, como esclareceu Maiakóvski, referindo-se à mineração, e, de variadas formas, muitos outros. O poeta talvez não seja mesmo um escritor, já que edifica um objeto a partir da língua, essa coisa tão nossa e diária – um objeto de beleza, como queria Keats, no famoso verso. Ao sobrepor sentidos e leituras possíveis, cria uma espécie de escultura avessa ao linear, com a qual se propõe a fazer coisas no mundo, não como toda e qualquer linguagem faz, mas sim de modo especial, artístico e duradouro. Poesia requer uma vida de poeta, defendia PHF, alguém que se arrisque a gastar a existência nisso, sem nenhuma garantia, sempre em construção, enquanto fazedor de linguagem e ser humano:
PESSOA
O poeta, o pintor, o músico, o artista em suma, é fundamentalmente o que ele seja como pessoa. A arte se aprende, se houver a pessoa.
(A cidade e o homem, 2004)
Um poeta “maior”, respondeu PHF a uma jornalista, é quem escreveu uns trinta poemas de primeira linha. Ela perguntou então quantos ele já possuía. Sorrindo, ele disse uns trinta e cinco, para não perder a brincadeira. Diga-se que o humor parece ser um componente importante da poesia sul rio-grandense. Como Mario Quintana, PHF chegava a ele, veja-se este pequeno poema em prosa:
E ELA SABIA
Ligo ao INSS pra saber a multa no atraso de uma contribuição. A mocinha dá o valor da contribuição, da multa, dos juros e o total, com irretorquível clareza.
– Você está tão por dentro – lhe digo –, que deve até saber por que Deus criou o mundo. Por que, hem?
E ela ri cansada de saber.
(Nem tudo é poesia)
PHF era o mais destacado crítico formal e informal do RS do seu tempo, já que, além dos textos para jornais e revistas – Estadão, Zero Hora e Correio do Povo, principalmente – escrevia cartas a escritores maduros e iniciantes com detida análise crítica. Celso Gutfreind, ante seus primeiros escritos, recebeu uma, hoje rememorada com muita descontração: “Adorei o teu maravilhoso livro de poemas. Há nele quatro versos ótimos.” Particularmente, aprendi com PHF algo muito útil para a apreciação de livros e júris de concursos: primeiro buscar o livro bom, depois os poemas bons e, se nada disso houver, os versos bons, pois há quem, a rigor, não obtenha um só poema, mas que verso! Ele também escreveu, a sério mas com muita ironia, uma espécie de sociologia do literato, que conclui: “É ir ao poeta pelo seu poema/ e folhear em pessoa o poeta menor” (Os poetas menores – Vento, águia, coelho, 1991).
Amigo, o amigo mais amigo dos seus amigos, não deixava por menos se o assunto fosse literatura. Após ler um largo elogio a sua obra em jornal literário do Paraná, produzido por um conhecido jornalista e escritor gaúcho, pôs-se a escrever uma crítica literária sobre a produção deste, para ser publicada no mesmo veículo, e disse: “Vamos ver se agora vai continuar me elogiando.” Em outro caso, após receber comentário crítico sobre obra de terceiro, oriundo de um escritor muito comedido, publicou-a, só para ver o que acontecia. Hecker fazia das suas, mas não perdia a camaradagem.
Deixando as anedotas de lado, mas sem abandonar o humor, um poema declaradamente antirromântico, posto que boa parte dos românticos suspirava pela morte como se ela fosse mulher atraente, subverte o raciocínio: “No ar tocável/ como uma flor úmida,/ completa ela veio/ a tão esperada.//Borboletas viam-se/ na luz que ela fazia./ Tantas/ que eu entontecia.// No terceiro olhar,/ ela me escolheu./ Me daria a vida, a tão adiada.// E não fui com ela,/ sina amaldiçoada!/ Tive de escrevê-la/ e não vi mais nada…” (Sina – Cartas de amor, 1986).
Perder a vida foi o seu livro de poesia melhor acolhido. Além dos poemas já citados, vejamos alguns trechos. Irei sem versos brinca com um afamado poeta: “Rilke, meu caro,/ que com tanto cuidado/ construíste a tua morte,/ desculpa,/ a quem desiste da sua.” Lição de muros retira sabedoria de velhos muros “feitos para durar”, que “tombados, seguem muros pelo chão” e “não cederam à ilusão”: “Nos ensinam a ser pobres/ (o que nos faz quase nobres),/ a resistir, conviver.” Cinéfilo convicto, após sair de um filme sobre Van Gogh, escreve Sede de viver, que descortina um futuro similar em esperança ao final de Vidas Secas, de Graciliano Ramos: “Mas um dia talvez teus girassóis floresçam…/ Basta agora que sofras e em luz cantes/ para que a vida e o homem se mereçam.” Ah! Mocidade lembra que, se trágica e melancólica às vezes, sua poesia nunca perdeu o alumbramento, erigido livro a livro: “E era tão cheia de manhãs a vida/ que o dia inteiro não as consumia!” Em E eu, que nada disso fiz…, entre fingidor e verdadeiro, ocorre um balanço: “Uns constroem cidades,/ outros universais sistemas./ Fundam universidades,/ têm históricos amores,/ recebem todos os louvores,/ fazem fortuna ou poemas.// E eu, que nada disso fiz/ e sem ter qualquer defesa?/ Eu, que fui sendo feliz?/ Eu que perdi a vida…/ Que beleza!”
A paulatina substituição no trabalho, expediente que impede a melhoria salarial, gera um belo poema:
AS MOÇAS DA CAIXA
Para onde vão as caixas do super depois dos vinte anos?
Passa o tempo e elas nessa idade, e ainda menos!
O olhar vê até o pensamento de um furto,
as mãos sabem as teclas… É de casar!
Pelo menos com a maioria,
a começar pelas sérias que, com corda,
abrem um riso de aumento de salário.
E a paciência sem comentários
com os mal-educados e as loucas,
a saúde que descostura o uniforme
no busto e nos quadris…
Mas de repente somem,
vão para outra filial, que manda as suas,
também com vinte anos, não nos dão paz!
Há um convênio com as mães para só terem filhas dessa idade?
Obrigam-se as moças a ir até os vinte e depois para o céu?
Olhando-as, se vê que continua aberto.
Sem esquecer os cabelos, todas as pernas são santas.
(Vento, águia, coelho)
Seria mesmo necessário adendar que foi elogiado por Manuel Bandeira (Itinerário de Pasárgada), Carlos Drummond de Andrade (“Não conheço outro caso, entre nós, de uma aventura intelectual tão vivida aos 20 anos”), Mario Quintana (“Eu só tenho dois poetas prediletos no Rio Grande: Paulo Hecker Filho e… eu”), Ferreira Gullar, Moacyr Scliar, Antonio Carlos Secchin, Sergio Faraco, Armindo Trevisan? Sim, mas apenas no sentido de ampliar o interesse pela sua obra.
O volume incorpora poemas dos três primeiros livros, pouco conhecidos atualmente, já que o autor reescreveu e publicou alguns deles em livros posteriores e passou a defender que sua obra poética iniciaria com Perder a vida, de 1985. Desobedientes como filhos-aprendizes ante o mestre-pai, os organizadores recolocaram Ah! Terra (1950), Triângulo (1952) e Patética (1955) em debate e circulação. Tenho defendido que a poesia de PHF é afeita à logopeia, à dança do conceito entre as palavras, mais do que à imagem (fanopeia) ou à sonoridade (melopeia), ainda que exista tanta música e imagem nos seus versos, pois essas características não se encontram isoladas. A grande presença de substantivos abstratos acentua, corrobora essa percepção. E não é que no primeiro livro, por ocasião desta resenha, encontrei uma instigante estrofe? “Pensas em tudo,/ docemente em tudo./ Ou não pensas, sentes/ o teu pensamento.” (Madrugada – Ah! Terra), no qual pensar contém um sentir docemente, definindo-se um tom marcante da sua poética. Para divulgar Poesia reunida, foi produzido ainda um bonito vídeo pela cineasta e escritora Laís Chaffe, diretora do Instituto Estadual do Livro, disponível no YouTube.
Conforme o já dito no início, algo para este leitor inesgotável que foi o Hecker sempre teve precedência, aqui exposto no livro inédito, cujo título provém de outro poema sobre o filho:
DESENHO
Em cena um pede um abraço
e ao recebê-lo dá com a vida.
O abraço é o que nos justifica,
o poema apenas o desenha.
(O príncipe no exílio, inédito)
Somente para deixar explícito que além dos poemas reunidos há muitos outros de qualidade, fato amplamente reconhecido pelos organizadores, este curtinho:
COM OS OUTROS
No que ando pela rua
evidente é a humanidade
e em seguida eu faço parte
e nem me procuro mais.
(Nem tudo é poesia)
Hora de encerrar, mas a vida não para, nem mesmo com o fim, tal o entrelaçamento em que inadvertidamente vivemos: “Quando eu morrer, Gabriela,/ eu vou ficar nos outros, não além./ Nestes que vão passando – nós passamos!” (Gabriela – Perder a vida). Falta dizer apenas que uma das palavras que mais aparece nos seus livros de poesia é justamente a palavra vida.