Apesar da intenção de Trump em seu ‘discurso do Estado da União’ deste ano ser torná-lo no lançamento da campanha de reeleição, usando o plenário da Câmara de palco de um reality show, o que ficou marcado no mundo inteiro foi o desdém mútuo entre ele e a presidente da Casa, a democrata Nancy Pelosi. Isto é, como a mídia registrou, a ‘desunião da União’.
A grosseria de Trump – que costumeiramente em seus comícios a trata como ‘Nancy Doida’ -, recusando na abertura do ato a mão estendida da presidente da Câmara – não ficou sem troco.
Ao final Pelosi rasgou, folha por folha, uma cópia do discurso, nas costas de Trump e diante das câmeras, cena que viralizou no mundo inteiro.
Ficou evidente que o decoro no cargo e a preservação do respeito entre as instituições norte-americanas não fazem propriamente parte do roteiro de Trump, que nesta quarta-feira irá saborear pizza na absolvição do impeachment, mas já apanhou em público de madame Pelosi.
Ao chegar ao púlpito, Trump foi aclamado em pé pelos parlamentares republicanos, aos gritos de “mais quatro anos”, pesadelo que não deixa boa parte dos norte-americanos dormir tranqüila.
Os congressistas democratas se mantiveram sentados e em silêncio, enquanto Trump mentia de que “o estado de nossa união está mais forte do que nunca”.
Graças a ele próprio, asseverou, o declínio acabou e os dias de glória e poder estavam de volta aos EUA, e que jamais a economia – isto é, a especulação na estratosfera de Wall Street – estivera ‘tão forte’.
“Desde
a minha eleição, as bolsas de valores dos Estados Unidos subiram
70%, adicionando mais de US $ 12 trilhões à riqueza de nossa nação,
transcendendo tudo o que alguém acreditasse ser possível”.
Como
figurantes do reality show, Trump trouxe um radialista de extrema
direita, conhecido pelo racismo, a quem condecorou; dois juízes da
Suprema Corte que nomeou, reacionários de carteirinha, um deles,
denunciado por assédio sexual.
A troupe incluía um soldado que trouxe direto do Afeganistão para encenar a ‘reunião de surpresa com a família’ e a fábula de que o fim das guerras sem fim está próximo; um policial da sua SS da fronteira, recém nomeado vice-chefe, esse, um chicano de sobrenome Ortiz; e – a cereja do bolo -, o convidado especial, o ‘presidente’ Guaidó – aplaudido por republicanos de pé e até por democratas. Só faltaram gritar “o quintal é nosso de novo”.
Na última semana, Guaidó andou pedindo voto para Trump na Flórida.
No
mais, Trump prometeu jamais permitir que “a América seja
socialista’, isto é, que um sistema público de saúde, como
existe na maioria dos países civilizados, seja instaurado nos EUA,
como propõe o pré-candidato Bernie Sanders.
Alertou contra os
malvados da esquerda que querem acabar com os sacrossantos planos de
saúde privados para ‘fazerem os contribuintes norte-americanos
pagarem pela assistência médica aos imigrantes ilegais”.
Asseverou que foram os cortes de impostos para magnatas como ele e a desregulamentação, que fizeram esse espetáculo de economia, cujo desempenho no ano passado escorreu de volta para os ralos 2% de média dos últimos dez anos.
Segundo ele, a concentração de riqueza, sob seu governo, agora favorece os 50% mais pobres, mais do que os 1%. Acredite se puder. Outra fantástica conquista foi ter cortado milhões de pessoas carentes do vale-sopão.
Defendeu
o desvio de dinheiro público para escolas privadas. O que serviu de
gancho para um aceno aos arredios eleitores negros, tendo anunciado
uma bolsa de estudos para uma aluna negra em uma dessas escolas
privadas, que estava, junto com a mãe, na galeria dos convidados de
Trump.Chamou de ‘falidas’ as escolas públicas cujas verbas tenta
saquear.
De volta ao seu tema predileto, a apologia da
xenofobia, Trump condenou as ‘cidades-santuário’ – que
protegem imigrantes da sua caçada – e repetiu a infame acusação de
que os ‘aliens’ não passam de assassinos e estupradores.
Prometeu mais e mais muro.
Vangloriou-se
da perseguição na fronteira, isto é, das jaulas em que crianças
foram jogadas, depois de separadas.
Falando às bases, Trump
também fez apologia da posse de armas, da recriminalização do
aborto que tenta empurrar na Suprema Corte e ainda das orações nas
escolas. Simulou ter uma política ambiental, prometendo plantar
“milhões de árvores”, em meio à crise climática.
Garantiu que tudo que vai bem na América é por causa dele, e o que vai mal, é culpa dos antecessores.
Enquanto entupia as galerias com seus convidados de honra do reality show, um convidado de Pelosi, Fred Guttenberg, pai de Jaime, um estudante morto em um tiroteio em massa em uma escola em Parkland, Flórida, foi escoltado pelos seguranças para foram da Câmara. É assim que a democracia parece nos EUA.
Na seara da política externa, Trump exaltou como grande feito sua ingerência nas eleições de Israel, com seu ‘acordo de apartheid do século’ salva-Netanyahu.
Asseverou que sua guerra comercial vai de vento em popa e que é amigo do presidente Xi.
Justificou o assassinato estatal de autoridade estrangeira, o general iraniano Qassem Suleimani, acusando-o de ter assassinado um militar norte-americano em 2008 no Iraque – resistência que, como se sabe, não era dos iranianos, cujos aliados iraquianos inclusive ingressaram no governo montado por Washington, mas do proscrito Baas de Sadam.
Claro:
a família do morto também estava na galeria dos
convidados.
Modesto, não exibiu explicitamente seu hobby
predileto, o de rasgar tratados internacionais e buscar substituir as
relações internacionais pela lei da selva.
Faccioso, Trump não agradeceu à colaboração democrata na aprovação do maior orçamento do Pentágono da história, embora tenha se gabado de que, com ele na Casa Branca, jamais o poderio militar dos EUA foi tão imponente, e que os inimigos “estão em fuga”.
Revelou que, ao longo de três anos, seu governo conseguiu arrancar dos ‘aliados’ mais US$ 400 bilhões de taxa de ocupação.
Para finalizar, convocou a “República mais excepcional que já existiu em toda a história da Humanidade” para o assalto ao espaço, a última fronteira, “o destino manifesto da América nas estrelas”. O que provavelmente é um aceno à sua recém criada Tropa Espacial e aos monopólios norte-americanos para que pilhem, também, a Lua e Marte, se puderem.
“O melhor ainda está por vir”, prometeu. Em entrevista à CNN, um senador democrata de Maryland, Chris Van Hollen, desancou Trump e seu discurso, dizendo que o Congresso “não é o lugar para um comício MAGA [Make América Great Again]”.”Este é um lugar onde você pelo menos tenta unir o país pelos fins comuns. Em vez disso, temos um presidente que é um megalomaníaco”.
A.P.