O editor do WikiLeaks descreve, já em outubro, como seu asilo tornou-se uma prisão cruel e à margem da lei: “estou na embaixada sem luz solar há seis anos e isolado das pessoas há sete meses, inclusive dos meus filhos pequenos”
A jornalista norte-americana Cassandra Fairbanks divulgou no domingo (7) via o site The Gateway Pundit depoimento inédito do jornalista e fundador do WikiLeaks, Julian Assange, perante um tribunal equatoriano em outubro do ano passado, em que este acusa o governo de Moreno de atuar para revogar seu asilo político a mando dos EUA e do Reino Unido e denuncia a mordaça, isolamento e arbítrio a que está submetido dentro da embaixada.
O depoimento fez parte da tentativa da defesa de barrar o iníquo ‘protocolo de asilo’ do governo Moreno imposto a Assange em março do ano passado.
No final de semana, manifestantes se mantiveram em vigília em Londres diante da embaixada, contra a iminente expulsão – em “horas a dias” – de Assange, o editor que expôs os crimes de guerra dos EUA no Iraque e Afeganistão.
Como Fairbanks registrou, um amplo leque se reuniu em sua defesa, de “comunistas a Brexiters”. Foi ela quem testemunhou recentemente, ao tentar ver Assange, que a situação na embaixada mais parecia “visita a presídio federal nos EUA”.
LIBELO CONTRA O SILENCIAMENTO
O depoimento de Assange é uma corajosa defesa dos princípios democráticos, por um jornalista e editor ferozmente perseguido por denunciar crimes de guerra, vigilância eletrônica em massa, ataques aos direitos humanos e corrupção.
O silenciamento de Assange completou um ano no dia 28 de março.
Via link de vídeo, Assange descreveu ao tribunal o impacto de sua prolongada detenção: “estou nesta embaixada sem luz solar há seis anos e essencialmente isolado há sete meses da maioria das pessoas – incluindo internet, telefone – e de meus filhos pequenos”.
“Tem sido uma experiência difícil e também interferiu em minha capacidade de trabalhar e tocar a vida, sob meus princípios profundamente arraigados, pelos quais lutei por toda a minha vida, que é defender o direito à liberdade de expressão, o direito das pessoas de saberem, o direito à liberdade de imprensa e o direito de todos à participação na sociedade em geral”, afirmou.
“DURAS VERDADES”
Assange apontou que a mordaça imposta por Quito o impedira de responder às falsidades lançadas contra ele. O que resultou em “um clima de difamações e notícias falsas que poderiam ser esperadas contra alguém que estava no labor de expor organizações corruptas muito grandes e muito poderosas ou organizações que abusam dos direitos humanos.”
Sobre a essência das acusações de que é vítima, Assange salientou “as duras verdades sobre as guerras dos EUA no Iraque e no Afeganistão”, trazidas pela publicação de documentos obtidos pelo WikiLeaks.
“Não houve alegação de que eu tivesse feito outra coisa senão o que um jornalista faz, só que eu fui muito bom e eficaz.” Inclusive as denúncias foram reproduzidas simultaneamente pelos maiores jornais do mundo.
Ele explicou que, depois dessa publicação, precisou buscar asilo político no Equador em 2012. A alegada fonte dos documentos, Chelsea Manning, havia sido “presa, brutalmente tratada em uma prisão e, finalmente, condenada a 35 anos” sob o governo Obama.
Ao mesmo tempo, os EUA começaram uma investigação mundial sobre o WikiLeaks. “Até mesmo meu próprio país, a Austrália, a meu ver, participou indevidamente dessa investigação”, disse Assange
EQUADOR ALTIVO DE CORREA
Como o jornalista explicou, ele se dirigiu ao Equador – por ser um país democrático e soberano (sob a presidência de Rafael Correa) – porque o Reino Unido e a Suécia se recusavam a dar a garantia de que não seria extraditado para os EUA, onde ele provavelmente enfrentaria acusações falsas por suas atividades de publicação. O pretexto para tudo era a investigação sueca sobre ‘impropriedade sexual’, abandonada anos depois sem que qualquer acusação fosse feita.
Ainda assim, o Reino Unido manteve a ordem de prisão por Assange por ‘violação de fiança’ de um caso que nem existia mais. Evidenciando que o problema não era a ausência a uma audiência, as autoridades britânicas “gastaram 13,6 milhões de libras esterlinas” no cerco à embaixada.
MORDAÇA
Assange então questionou a decisão do governo Moreno de silenciá-lo. Ele afirmou que o regime havia “jogado um jogo em que tentou apresentar essas restrições muito graves à minha dignidade humana como se fosse sobre a internet. Não é. Está restringindo todas as minhas ligações telefônicas”. Três jammers foram instalados no prédio para suprimir a internet de Assange.
Ao tribunal Assange lembrou que “o fato de que um governo controla uma parte específica do espaço não significa que possa violar sua Constituição, possa violar os direitos reconhecidos pela ONU, que possa se envolver em punição sem processo”.
“Não se pode admitir que um jornalista que dá suas opiniões em uma rede social seja considerado um criminoso, expulso e colocado na prisão, inicialmente no Reino Unido e depois nos Estados Unidos, por 45 anos. Nenhum jornalista, nenhum cidadão, deve aceitar que o que ele fala possa ser definido de um dia para outro por razões de conveniência política”.
Assange também indicou os artigos da constituição equatoriana que estão sendo violados – ou sob ameaça: “Artigo 16.2, acesso universal às tecnologias de informação e comunicação; Artigo 66.2, direito de expressar a opinião e expressar livremente o pensamento em todas as suas formas e manifestações; “Artigo 20, confidencialidade das fontes dos jornalistas; artigo 41, proteção das pessoas a quem foi concedido asilo ou santuário e respeito ao princípio do não retorno; e Artigo 79, em nenhum caso a extradição de um equatoriano será concedida” (Assange tem cidadania equatoriana desde 2017).
ACOELHAMENTO, PERFÍDIA E FMI
Assange assinalou então como as mudanças políticas no Equador colocaram em risco seu asilo. Divisões – das quais disse não querer participar – no partido do governo, que fizeram com que o novo governo, enfraquecido, começasse a procurar se apoiar nos EUA, o que, como denunciou, causou “uma quantidade indevida de influência por parte dos Estados Unidos”.
Declaração que foi rebatida como “maliciosa e perversa” pelo procurador-geral do regime Moreno ali presente, que refutou a “influência de Estados Estrangeiros” e asseverou que o Equador era “um país soberano”.
Assertivas negadas pelo New York Times menos de dois meses depois, que revelou que Moreno tentou “vender Assange aos EUA” em “troca do alívio da dívida”. Por coincidência, em fevereiro deste ano o FMI liberou afinal US$ 4,2 bilhões que o Equador pedira. A mordaça começou em março.
Em novembro passado, ocorreu o ‘vazamento casual’ de que existia um júri secreto nos EUA operando há anos para extraditar Assange e, agora em março, Chelsea Manning voltou a ser presa por se negar a falar em um interrogatório secreto contra o editor.
Como registrou Fairbanks, membros do governo dos EUA acreditam que o Equador está fazendo o que foi pedido. Um ex-funcionário graduado do Departamento de Estado disse ao Buzzfeed em janeiro que “até onde sabemos, [Assange] está preso”.
VIOLAÇÃO DO ASILO
“O que está ocorrendo não é sobre o Protocolo. O que ocorre desde 28 de março é algo muito mais sério. É o governo equatoriano que se posiciona para violar o asilo, para me entregar aos EUA”, denunciou Assange.
Ele acusou o regime de “deliberadamente vazar para a imprensa material escandaloso seletivo” e sufocá-lo para não refutar as alegações.
Investida que atribuiu à publicação em março de 2017 dos documentos Vault 7, uma coleção de documentos da CIA expondo suas operações globais de guerra cibernática. “O que resultou em muitas ameaças contra o WikiLeaks e que, em junho deste ano, minha suposta fonte, Joshua Schulte, agente da inteligência da CIA, fosse pego, colocado na prisão e estão tentando sentenciá-lo a 135 anos ”, disse o jornalista ao tribunal. Os “Vault 7” revelaram que a CIA faz pirataria e joga a culpa em outros países, com inserção de pegadas digitais falsas.
“Sabemos que os senadores escreveram para o vice-presidente dos EUA, Mike Pence, dizendo-lhe para dizer ao presidente Moreno para me entregar”. Ele assinalou que em 28 de junho Pence se reuniu com o presidente equatoriano Moreno, a quem “levantou a questão de Assange”, segundo a Casa Branca. Conversa que foi considerada “construtiva” e com decisão de “estreita coordenação sobre os próximos passos”.
EXTRADIÇÃO “PALATÁVEL”
“É disso que estamos falando. Então não vamos jogar aqui. O Estado equatoriano, por várias razões políticas, procura violar a lei e realizar uma campanha pública para tornar aceitável a entrega de um jornalista perseguido aos EUA, como resultado da pressão, bem documentada, do governo dos EUA”, completou Assange.
O tribunal não concedeu a liminar pedida pela defesa de Assange, o que não chega a surpreender: no ano passado o governo Moreno interferiu no Judiciário, afastando juízes à vontade, até mesmo no tribunal constitucional do país.
Outro forte motivo para a perseguição dos EUA a Assange é o inestimável apoio que o WikiLeaks e personalidades associadas prestaram ao denunciante do grampo em massa da NSA, Edward Snowden, rompendo o cerco que Washington tentou montar – e que incluiu até mesmo fazer aterrissar o avião do presidente boliviano Evo Morales que sobrevoava espaço aéreo europeu -, e evitando a captura e prisão dele.
Nas hostes do establishment democrata, Assange é odiado por ter posto a nu a fraude nas primárias para escolher como candidata a perdedora Hillary Clinton.
CORRUPÇÃO DO CLÃ MORENO
Completando o complexo quadro, site equatoriano, vazou os “INA Papers”, que documentam a existência de contas secretas em paraíso fiscal panamenho para recebimento de propinas, envolvendo o irmão do presidente Moreno, gastas na compra de apartamento de luxo na Espanha, presentes e ostentação, o que já provocou uma investigação no parlamento equatoriano.
Em outra frente, no dia 25, o Relator Especial da ONU para Privacidade, Joe Cnnataci, irá à embaixada do Equador em Londres, em resposta a pedido da defesa de Assange contra seu virtual encarceramento ali. Moreno também alegou que a privacidade dele está ameaçada pelo WikiLeaks, por causa do vazamento de foto dele com a família gozando no exterior das propinas recebidas nas contas offshore – apesar de não existir nenhum vínculo entre a foto e o site. O Relator Especial da ONU para Tortura e Detenção Aviltante, Nils Melzer, advertiu Equador e Reino Unido que a extradição de Assange “viola a lei internacional”.
A.P.