A situação de insegurança alimentar no Brasil é trágica. Em São Paulo, Estado mais rico e desenvolvido do país, as Unidades Básicas de Saúde (UBSs), além de tratar de doenças, médicos têm enfrentado a fome durante as consultas, diariamente.
A médica da UBS Jardim Campinas, na Zona Sul de São Paulo, Daniela Silvestre, contou em entrevista ao portal UOL, que durante um atendimento, uma mulher, de 30 anos, grávida, estava cambaleante, magra e debilitada e a primeira resposta à pergunta da profissional de saúde foi se ela tinha alguma coisa para comer, pois há dois dias, a gestante não comia.
Na UBS Jardim Três Corações, também na Zona Sul de São Paulo, Felipe Santos de Oliveira, 23, passava mal. Ele relatou: “Comecei a sentir tontura e a mulher do lado perguntou se eu estava bem. Eu caí, apaguei. Foi muito rápido. Acordei e estava todo mundo assustado. Eu estava sem entender o que aconteceu”.
Ao desmaiar, todos foram acudi-lo, até que perguntaram se Felipe havia tomado café. Ele contou que fazia mais de 24 horas que não comia. O rapaz desmaiou de fome.
Uma enfermeira que trabalha na UBS de Parelheiros revelou, sob condição de anonimato, que toda semana crianças vão à unidade para algum atendimento e pedem comida durante as consultas. Ela ainda contou que idosos diabéticos não estão conseguindo controlar seus índices glicêmicos porque é, apenas, pão e bolacha que eles têm para comer em casa. Por causa desta situação, feridas que nunca cicatrizam e crises que os fazem procurar hospital, são as consequências.
A enfermeira também contou que os profissionais do posto pedem doações e fazem vaquinhas entre si para a compra de comida e ajudar essas pessoas. Idosos acamados e mães com filhos pequenos têm prioridade na distribuição. Outra medida é enviar os pacientes que se queixam de fome à assistência social para tentar incluí-los em algum programa municipal, estadual ou federal. Contatos com ONGs e igrejas também são feitos.
CASOS RECORRENTES
O secretário municipal de Saúde, Edson Aparecido, disse que os casos de pessoas que procuram unidades de saúde por causa de fome começaram a aparecer há três meses. O primeiro deles foi em Parelheiros, também na zona sul.
Sandra Sabino, secretária-executiva municipal de Atenção Básica, Especialidades e Vigilância em Saúde, fez um levantamento logo que soube do caso de Parelheiros, três meses atrás e descobriu que a mesma situação é vivida em toda a periferia da capital paulista. A lista de bairros inclui São Mateus, São Miguel Paulista, Guaianazes, Ermelino Matarazzo, Itaim Paulista, Grajaú, M’Boi Mirim, Parelheiros, Jardim Ângela, Pirituba e Perus.
De acordo com o monitoramento da Prefeitura, a situação é ‘estável’ e isso quer dizer, absolutamente, todos os dias, alguém vai até um posto de saúde, em São Paulo por sentir fome.
19 MILHÕES DE BRASILEIROS PASSAM FOME
Os níveis de fome e insegurança alimentar do país são, hoje, os mesmos daquele que eram vistos no começo dos anos 2000, apontou o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar feito pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar.
O estudo ainda mostra que atualmente, 43,4 milhões de brasileiros não possuem alimento suficiente para as três principais refeições diárias. Além disso, de acordo com a pesquisa, 19 milhões de brasileiros estão passando fome.
Nas áreas rurais, os níveis de insegurança alimentar dobram segundo o levantamento. Isso ocorre principalmente em locais com falta de água, como é o caso do árido e semiárido brasileiro.
O problema é seis vezes maior do que a média nacional quando o chefe de família está desempregado. Quando o trabalhador possui um emprego informal, a insegurança alimentar é quatro vezes maior.
Vanessa Pereira, de 40 anos, moradora de Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo, sai de casa diariamente para vender balas e água nas ruas do centro da cidade e buscar doações para alimentar dois dos nove filhos que ainda vivem com ela. Seu marido, Flávio Alessandro, também de 40 anos, perdeu o emprego como operador de máquinas em eventos no início da pandemia. Desde então ele está buscando bicos como pedreiro, mas não consegue encontrar trabalho.
“Hoje mesmo se eu falar que eu almocei eu ainda não almocei. O meu marido comeu um pão que ele trouxe da rua e é assim que a gente tá vivendo. Sobrou um pouquinho de arroz na panela e um pouquinho de feijão para dar à noite para os meus filhos”, contou Vanessa. O cardápio é sempre o mesmo: arroz e feijão, sem mistura. Às vezes comem ovo, “mas é muito difícil”.
Enquanto havia auxílio emergencial, a família, ainda, conseguia come, mas já enfrentava dificuldade. Com as parcelas de R$ 600 somadas aos R$ 212 do Bolsa Família, Vanessa conseguia pagar o aluguel de R$ 500, as contas e comprar algo no mercado. Depois, quando o valor caiu para R$ 300, não comprava comida nem pagava as contas, mas ao menos garantia o dinheiro do aluguel.
Atualmente, com o aluguel atrasado, ela vai ter que entregar a casa e ainda não sabe para onde ir.
Nos últimos 12 meses, a inflação acumulada de alimentos e bebidas atingiu 11, 71%, segundo o IPCA. O reajuste no preço dos alimentos chegou a 40% durante a pandemia. A indústria de alimentos prevê que os preços devem continuar elevadíssimos em 2022.
Com o valor médio do novo auxílio, o Auxílio Brasil, que extinguiu o auxílio emergencial da pandemia e só é pago para quem antes já recebia o Bolsa Família, que também foi descontinuado, o beneficiário conseguirá comprar, em São Paulo, 39% de uma cesta básica de alimentos, calculada em média em R$ 639,47 na capital paulista. Enquanto isso, as desigualdades são aprofundadas e a fome aumenta.
Dados da pesquisa “A favela e a fome” do Data Favela, uma parceria entre o Instituto Locomotiva e a Cufa (Central Única das Favelas), mostra que a média diária de refeições entre os moradores de comunidades é de 1,9 por dia.
Pelo menos 8 em cada 10 famílias não teriam condições de se alimentar, comprar produtos de higiene e limpeza, ou pagar as contas mais básicas caso não tivessem recebido doações.
A recepcionista Patrícia Jesus, 33, moradora de uma ocupação na Chácara Maria Aparecida, em Mauá, perdeu o emprego no início da pandemia, e tendo três filhos pequenos e um adolescente para alimentar, ela começou a fazer faxinas. Com a piora da crise, mal conseguia tirar R$ 300 por mês. Começou cancelando a internet, terminou trocando itens da própria casa em troca de alimentos para os filhos.
Sem Bolsa Família e auxílio emergencial, ela não tem renda. Nas redes sociais, faz postagens oferecendo algo em troca de alimento. “Às vezes aparece uma pessoa boa e fala ‘não, vou te doar’. E outras pessoas que não estão numa situação muito boa falam que podem ajudar trocando, sabe? É assim que eu tenho mantido eles para não chegar ao ponto de dizer que estamos morrendo de fome”.
PROTESTO
Moradores de Heliópolis, maior favela de São Paulo, na Zona Sul da capital, realizaram protesto contra a fome e o desemprego, na noite da última quarta-feira (24). Os manifestantes empunhavam panelas vazias, cartazes e velas (em referência ao preço da conta de luz e em homenagem às vítimas da Covid-19).
A “Marcha da Panela Vazia” começou às 18h30, com concentração em frente à sede da Unas (União de Núcleos e Associações dos Moradores de Heliópolis e Região) em Heliópolis, e percorreu as ruas da região.
“É muito triste sua filha pedir um pão e você não poder dar porque está tudo tão caro”, diz Simone de Bezerra Oliveira, 51, que está desempregada e participou do protesto.
Segundo estimativa da organização, cerca de mil pessoas participaram. Os manifestantes também entoaram coros de “Fora Bolsonaro” e receberam apoio de moradores nas janelas da comunidade, que batiam panelas e protestavam contra o governo.
O ato foi organizado por grupos de moradores e associações locais, como a Unas e a Associação Nova Heliópolis (Associação dos Moradores de Heliópolis e Ipiranga).