Estudo preliminar revelou pistas de que o anti-inflamatório Enbrel poderia “prevenir, tratar e retardar a progressão da doença de Alzheimer”
Em decorrência da patente ter expirado e, portanto, o medicamento não poder mais gerar lucros de monopólio, a gigante farmacêutica norte-americana Pfizer decidiu não prosseguir com pesquisa e, pior, esconder que um anti-inflamatório para a artrite de sua fabricação, Enbrel, pode reduzir em 64% o risco de Alzheimer conforme estudo preliminar de 2015.
A pesquisa que faltava foi orçada em US$ 80 milhões, uma quantia pequena para um produto que só em 2018 gerou receita de US$ 2,1 bilhões para a Pfizer. Lançado em 1998, a patente do Enbrel expirou no ano passado, e a partir deste ano os fabricantes de genéricos já podem oferecer o medicamento muito mais barato (com lucro, claro, mas não lucro de monopólio). No mundo, são mais de 29 milhões de pessoas que sofrem de Alzheimer, cinco milhões delas nos EUA.
A denúncia, apresentada pelo jornal Washington Post, desencadeou um grande debate sobre a prevalência do lucro nas decisões da indústria farmacêutica quanto à pesquisa de medicamentos. Até aqui, as denúncias eram principalmente sobre a ocultação de efeitos colaterais negativos. Para os cartéis farmacêuticos, o “ciclo de vida útil” de um medicamento é de 20 anos, durante os quais a patente garante lucros de monopólio.
A última tentativa, dentro da Pfizer, de salvar a pesquisa, foi uma apresentação em PowerPoint a um comitê interno em fevereiro do ano passado, que ressaltava que “o Enbrel poderia potencialmente prevenir, tratar e retardar a progressão da doença de Alzheimer”.
Argumento que não motivou os executivos, que não só vetaram a pesquisa, como também mandaram esconder o estudo preliminar e, finalmente, fecharam a divisão neurológica, com 300 funcionários e pesquisadores. Originalmente, a patente do Enbrel era da Wyeth, que foi comprada pela Pfizer em2009. A Pfizer detém os direitos internacionais sobre o Enbrel, com outra empresa, a Amgen, detendo a comercialização nos EUA e Canadá.
“BLOCKBUSTER DA PFIZER”
Conforme o Washington Post, o Enbrel é um “blockbuster” – campeão de vendas – da Pfizer, mas, exaurida a patente, a estratégia da gigante farmacêutica vem sendo jogar sua força de marketing sobre outro remédio para a artrite reumatóide, o Xeljanz, cuja patente só expirará em 2025 nos EUA e 2028 na Europa. A previsão da Pfizer é fazer os lucros crescentes com o Xeljanz substituírem os lucros declinantes com o Enbrel. Mas, segundo a corporação, o que a fez desistir da pesquisa e esconder o estudo preliminar foram razões de ordem “científica” e “humanitária”.
A polêmica teve início com um estudo estatístico de 2015 de equipe da Pfizer, investigando centenas de milhares de pedidos de seguro médico de pessoas com artrite reumatóide e outras doenças inflamatórias e o uso de Enbrel.
Pacientes anônimos foram divididos em dois grupos iguais de 127 mil pessoas cada, um o dos com diagnóstico de Alzheimer e outro, o dos pacientes sem. Foi verificado que havia mais pessoas, 302, tratadas com Enbrel no grupo sem diagnóstico de Alzheimer, comparado com 110 tratados com Enbrel no grupo diagnosticado com Alzheimer.
Como destacou o Post, os números podem “parecer pequenos”, mas tinham a seu favor que investigação de pedidos de seguro de saúde de outro banco de dados e a referente ao Humira, medicamento da AbbVie que funciona como o Enbrel, produziram números semelhantes.
Resultados positivos também apareceram quando analisados para ‘perda de memória’ e ‘comprometimento cognitivo leve’, o que foi considerado como indício de que o Enbrel poderia ter benefícios para o tratamento dos estágios iniciais da doença de Alzheimer.
O documento interno da Pfizer, em defesa de avançar com um estudo clínico de quatro anos, com 3 mil a 4 mil pacientes, para confirmar ou não a descoberta, apontava ainda outra razão para isso: os ganhos em relações públicas decorrentes de investigar o tratamento de Alzheimer.
OCULTAÇÃO DE ESTUDO
Ao Post, a Pfizer alegou que sua desistência se deveu a que a análise estatística feita que recomendava o prosseguimento da pesquisa “não atendia seus rigorosos padrões científicos”, acrescentando foi levado em consideração também que, como a droga não atinge diretamente o tecido cerebral, era “baixa” a probabilidade de um ensaio clínico “bem sucedido”.
Já a ocultação do estudo, perdão, como diz a Pfizer, “opção pela não publicação”, se deveu às “dúvidas” sobre os resultados – que poderiam ter levado cientistas a um “caminho inválido” – e para evitar gerar “uma falsa esperança para pacientes que sofrem de uma doença”.
Para dois ex-executivos ouvidos pelo Post, as razões foram, digamos, menos nobres. “Eu acho que o argumento financeiro é que eles não farão dinheiro com isso”, disse o mais sincero. O outro disse o mesmo, só dourando um pouco a pílula: “provavelmente era um desenvolvimento de medicamentos de alto risco, muito caro e de longo prazo que estava fora da estratégia”.
CIENTISTAS QUESTIONAM
As alegações da Pfizer foram rebatidas por especialistas entrevistados pelo Post. “Há muitas evidências sugerindo que a inflamação periférica ou sistêmica pode ser um fator determinante da doença de Alzheimer”, disse Keenan Walker, pesquisador da escola de Medicina Johns Hopkins, sobre a argumentação de que a molécula de TNF-a – sobre a qual o Enbrel age – “é grande demais para atravessar a barreira hematoencefálica”.
“Eu não acredito que o Enbrel precisaria atravessar a barreira hematoencefálica para modular a resposta inflamatória/imune dentro do cérebro”, afirmou Walker. Ele acrescentou que “é uma hipótese justa de que combater a inflamação fora do cérebro com o Enbrel terá um efeito similar dentro do cérebro, disse ele.
No terreno da ética médica, o pesquisador da Johns Hopkins assinalou que “seria benéfico para a comunidade científica ter esses dados por aí. Sejam dados positivos ou dados negativos, isso nos dá mais informações para tomar decisões mais bem informadas.”
Mesmo raciocínio de Bobbie Farsides, professora de ética clínica e biomédica da Brighton e Sussex Medical School, Inglaterra. “Ter adquirido o conhecimento, recusando-se a revelá-lo àqueles que podem agir sobre ele, esconde um benefício potencial e, assim, provavelmente prejudica aqueles em risco de desenvolver a doença de Alzheimer ao impedir a pesquisa”.
“É importante que isso seja publicado e em domínio público”, alertou o reumatologista Christopher Edwards, da Universidade de Southampton, Inglaterra. “Claro que deveriam”, sublinhou Rudolph Tanzi, um dos principais pesquisadores e professor de Alzheimer da Harvard Medical School e do Massachusetts General Hospital.
GATO NA TUBA
Como o Post, agora de propriedade do magnata Jeff Bezos, não costuma bater prego sem botar estopa, a matéria também desinteressadamente advoga a tese de que os genéricos e a “brandura” das leis de patente nos EUA estão prejudicando os pobres cartéis farmacêuticos como a Pfizer.
Assevera o Post que “os lucros estão diminuindo à medida que a concorrência dos genéricos aumenta, diminuindo os incentivos financeiros para novas pesquisas sobre o Enbrel e outras drogas da sua classe”.
O Post também cita Robert I. Field, professor de direito e gestão de saúde na Universidade de Drexel, que declarou que “nossas leis de patente não fornecem os incentivos apropriados”. A terapia medicamentosa para o início da doença de Alzheimer “seria uma dádiva para os pacientes americanos, por isso deveríamos estar fazendo tudo o que pudermos como país para incentivar o desenvolvimento de tratamentos. É frustrante que possa haver uma oportunidade perdida ”, acrescentou.
A.P.