O procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ilan Fonseca de Souza, denunciou, em pesquisa para sua tese de doutorado apresentada à Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), que o chamado “trabalho autônomo” dos motoristas de aplicativos, na realidade, representa uma relação direta de patrão e empregado.
De acordo com o pesquisador, “o trabalho atualmente realizado por motoristas de aplicativo pode ser enquadrado como uma relação de emprego, tendo em vista se tratar de relação de assalariamento, ou seja, de venda de força de trabalho. Mais do que isso, o trabalho uberizado tem a subordinação enquanto destacado elemento determinante. A intermediação das ordens através da inovação tecnológica dos aplicativos não diminui a intensidade do poder diretivo patronal e não se deve legitimar o mito da neutralidade tecnológica. A inovação digital, ao contrário, apenas reforça o poder de mando patronal ao permitir uma vigilância constante, simultânea e absoluta de uma grande massa de trabalhadores, em uma relação jurídica cuja modalidade de remuneração revive o longínquo salário por peça”.
Em entrevista ao portal Uol, Ilan Fonseca falou sobre a pesquisa e também avaliou o recente projeto apresentado pelo governo para o setor. Na avaliação do procurador, que participou, pelo MPT, do grupo de negociação do governo com as empresas, havia “muita esperança de que fosse um projeto, ainda que não houvesse reconhecimento do vínculo de emprego, que conseguisse atender aos interesses da categoria dos motoristas. Parece que as representações [dos trabalhadores] que ali estiveram não tinham essa legitimidade em relação a toda a base da categoria, e o projeto parece atender 100% os interesses das plataformas”.
O procurador avalia que o projeto não impõe limites às empresas sobre os trabalhadores, sendo esses submetidos a diversos tipos de pressão, cobranças e punições, constatadas pelo próprio procurador durante pesquisa de campo em que esteve por 352 horas ao volante, entre 1º de dezembro de 2021 e 30 de março de 2022. “A empresa faz uso de uma série de prerrogativas típicas de um poder patronal, mas fica o tempo todo falando em empreendedorismo. O trabalhador se sente autônomo, mas trabalha 12, 14, 16 horas por dia”, afirma.
NEM AUTÔNOMO, NEM TRABALHADOR COM CARTEIRA
“O que mais me preocupa é o fato de se estar criando no Brasil um terceiro gênero em que você não é nem autônomo, nem trabalhador com carteira assinada”. De acordo com Ilan, além de não garantir os direitos dos motoristas de aplicativos, a lei abre brecha para que empresas de outros setores estabeleçam uma relação com os empregados semelhante ao Uber.
“Você tem um trabalhador hoje que é de uma grande rede varejista e ele trabalha de forma subordinada, com ordens verbais diretas. Essa rede varejista vai falar assim: ‘e se a gente criar uma plataforma digital?’. Então, ela vai fazer uma construção jurídica para dizer ‘olha, a nossa situação é muito semelhante à da Uber. Ele trabalha com metas, ele se apresenta aqui no horário que quiser. É uma coincidência que ele apareça aqui sempre das 8h às 18h’. Isso representa um precedente perigosíssimo. O Brasil já vive com um índice de informalidade que beira sempre a 40%”, ressalta.
Em seu trabalho de pesquisa, Ilan mostra também como são falsos os argumentos de que o avanço de tecnologias requer a revisão de direitos trabalhistas, discurso de fachada daqueles que querem mesmo é enterrar qualquer direito para os trabalhadores.
“A tecnologia não inviabiliza o direito do trabalho, mas, ao contrário, esse ramo juslaboral surge por força da tecnologia e, com ela, se aperfeiçoa, jamais devendo recuar, pois é no momento histórico de saltos tecnológicos que o direito do trabalho ganha vida. Se o moinho a vapor exigia novas funções, novas situações sociais e uma nova mentalidade, atualmente o trabalho dos motoristas mediado por aplicativos exige novas funções, novas situações sociais e uma nova mentalidade, em especial dos operadores do direito, mas sempre de acordo com a principiologia atávica a esse ramo do direito, uma vez que a contemporânea revolução digital também convive, inexoravelmente, com a venda da força de trabalho e com a assimetria de poderes entre patrões e empregados.”
“A subordinação clássica está muito presente no transporte de passageiros mediado por plataformas. Nesse sentido, presentes os demais requisitos da relação de emprego, como pessoalidade, onerosidade e não eventualidade, não há empecilho jurídico para que se reconheça a existência desse contrato de trabalho”, afirma o procurador.
Em abril de 2022, a Terceira Turma do TST reconheceu o vínculo de emprego entre um motorista de aplicativo e a Uber do Brasil, afirmando que, no caso em questão, estavam presentes “elementos que caracterizam a relação de emprego: a prestação de trabalho por pessoa humana, com pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação”. Já o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda analisará o tema, com histórico, no entanto, desfavorável aos trabalhadores no caso dos entregadores, anulando decisões favoráveis de instâncias da Justiça do Trabalho, que têm reconhecido vínculo entre motociclistas e empresas.
O objetivo da minha pesquisa foi suscitar esse debate, ou seja, trazer luz às condições de trabalho de motoristas de app no Brasil mas principalmente demonstrar que eles são empregados como quaisquer outros, porém sem direitos até o momento.