Polícia culpou ainda o STF por “migração” de criminosos para o Rio após decisão que restringia operações no estado
Após operação do Batalhão de Operações Especiais (Bope) em conjunto com a Polícia Rodoviária Federal (PRF) na Vila Cruzeiro, Zona Norte do Rio de Janeiro, deixar 25 mortos, a Polícia Militar carioca culpou o Supremo Tribunal Federal (STF) pela migração de criminosos para o estado nos últimos meses.
Uma moradora foi morta por bala perdida. Gabriele Ferreira da Cunha, de 41 anos, estava na entrada da Chatuba, que fica ao lado da Vila Cruzeiro, e morreu na hora.
“A gente começou a reparar essa movimentação, essa tendência deles de migração para o RJ, a partir da decisão do STF [que limitou operações policiais em favelas durante a pandemia de Covid-19]”, disse o coronel Luiz Henrique Marinho Pires em entrevista.
A decisão da Corte que Pires se refere é a de junho de 2020, quando o ministro Edson Fachin restringiu operações do Rio de Janeiro durante a pandemia da Covid-19. A exceção seria em casos excepcionais.
Desde então, os batalhões tiveram que justificar ao Ministério Público todas as operações. O número de mortes por agentes de segurança caíram nos primeiros meses depois da decisão, mas as ocorrências voltaram a subir com a retomada da normalidade da pandemia.
“Isso vem acentuando nos últimos meses. Esse esconderijo deles nas nossas comunidades é fruto basicamente dessa decisão do STF. É o que a gente entende, a gente está estudando isso, mas provavelmente deve ser fruto dessa decisão do STF”, continuou o coronel.
O operação da Polícia do Rio de Janeiro foi iniciada na madrugada desta terça-feira (24) e não tinha como objetivo cumprir mandados de prisão. De acordo com o tenente-coronel Uirá do Nascimento Ferreira, comandante do Bope, a ação – a segunda mais violenta da história do Rio de Janeiro – era de “inteligência”.
Os confrontos armados começaram por volta das 4h, quando uma equipe de vigilância à paisana foi identificada e atacada. A ideia era surpreender um comboio com 50 traficantes da facção criminosa Comando Vermelho com um aparato policial que já estava montado fora da comunidade para prender em flagrante os criminosos.
Toda ação foi frustrada com a equipe sendo identificada. Dessa forma, PM decidiu fazer uma operação de emergência com cerca de 80 agentes e mais 26 da Polícia Rodoviária Federal (PRF), além de helicópteros e veículos blindados.
“O número de munições disparadas pelos criminosos foi excessivo, então não restou outra alternativa às equipes de operações especiais e da PRF de fazer frente à força imposta pelos criminosos. Eles realmente montaram emboscadas, haja vista que nosso helicóptero blindado sofreu três disparos”, tentou justificar o coronel.
“Ninguém merece passar por isso”, afirmou o ouvidor-geral da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Guilherme Pimentel.
ENTIDADES REPUDIAM AÇÃO
A megaoperação policial foi a segunda mais letal da cidade. A primeira foi a que resultou em 28 mortes no Jacarezinho, incluindo a de um policial civil. A ação policial no Jacarezinho completou um ano na última quinta-feira (13). As mortes desta terça-feira, na Vila Cruzeiro, serão alvo de procedimento investigatório criminal pelo Ministério Público do Rio.
“Essas operações policiais em favelas colocam em risco a vida de toda a população, impedem o funcionamento de serviços públicos e do comércio, inviabilizam a saída de milhares de pessoas para trabalhar e estudar, gastam rios de dinheiro e não resolvem absolutamente nenhum problema de segurança”, emendou o ouvidor.
“Sabemos que essas operações jamais seriam toleradas em bairros nobres da cidade. É preciso que também não sejam mais toleradas nas favelas do Rio de Janeiro”, destacou.
Outras vinte e uma entidades e políticos – entre eles a Anistia Internacional, o Observatório das Favelas, Instituto Marielle Franco e a deputada Dani Monteiro (Psol), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, assinaram uma nota conjunta pedindo o “cessar fogo imediato” na Vila Cruzeiro.
“As organizações e movimentos vêm recebendo preocupantes relatos de familiares em desespero, em busca de notícias por entes ainda desaparecidos. Há notícias de que corpos de vítimas e potenciais feridos se encontram na região da mata, divisa entre o Complexo da Penha e do Alemão, e que mães e familiares estariam mobilizados a adentrar o local em meio ao tiroteio no desespero de localizar seus parentes. Ativistas de direitos humanos também estão no meio do fogo cruzado, sendo ameaçados por agentes de segurança que estão no local impedindo a retirada de novas vítimas e reprimindo a manifestação de moradores da área”, diz um trecho do texto.
Antonio Carlos Costa, presidente da ONG Rio de Paz, declarou que ninguém pode considerar “trivial” o trabalho dos agentes de segurança.
“Como ignorar o valor de quem no exercício da sua profissão se expõe a risco constante de morte? Não podemos também amarrar o braço das forças policiais e permitir domínio territorial armado por parte de facções criminosas”, afirmou.
“Por que insistir numa política de segurança pública que nunca deu certo? O que mudou após as 28 mortes ocorridas no Jacarezinho? O que vai mudar após essas mortes na Vila Cruzeiro?”, pontuou.
“A operação que resultou em tantas mortes […] seguiu rigorosamente protocolos de operação policial em favela?”, indagou.
“Como considerar exitosa uma operação policial que resultou na morte de um morador de favela? Celebraríamos essa operação policial se a pessoa morta fosse um parente nosso? Por que o pobre tem de tolerar o que a classe média jamais toleraria?”, destacou.
ATUAÇÃO ILEGAL DA PRF
O ex-secretário nacional de Segurança Pública, José Vicente da Silva diz que “há muito o que ser investigado, principalmente pelo Ministério Público”.
“É uma operação fracassada. Morreu uma inocente. Em relação aos demais considerados suspeitos, ainda não dá para dizer que morreram só criminosos, ainda que haja constatação de que estavam fortemente armados, uma realidade de boa parte das favelas do Rio. Mesmo que apreendidos 13 fuzis, ainda assim não vale a morte de um inocente”, diz.
“Houve o fechamento de escolas, isso leva prejuízo para as crianças. Há um impacto emocional monumental nas pessoas em fogo cruzado, especialmente crianças. Uma operação planejada reduz drasticamente resultados adversos como mortes de bandidos e inocentes e fechamentos comunitários”.
Ele afirma ainda que a PRF, ao participar da ação, estava descumprindo a lei.
“Há uma questão nessa ação: o que estava fazendo a PRF lá? Decerto, estava descumprindo a lei pura e simplesmente, porque o artigo 144 da Constituição, que trata da incumbência das policias, diz que a responsabilidade da PRF são rodovias federais, só que na Vila Cruzeiro não passa nenhuma via federal. Não é a primeira vez que eles saem do policiamento ostensivo para policiamento ostentação, com roupas de combate. É necessário que o Ministério Público Federal veja isso”, ressaltou.
O QUE DIZ A PM
O tenente-coronel Ivan Blaz, porta-voz da PM, disse o objetivo é localizar criminosos de outros estados que se escondem na Vila Cruzeiro.
“O objetivo ainda está mantido de buscar criminosos de outros estados que estão buscando abrigo aqui com essa facção criminosa, que opera na Vila Cruzeiro, no Jacarezinho, na Mangueira, na Providência e no Chapadão. Eles estão hospedando criminosos de outros lugares, entre eles, criminosos do Pará, que determinaram a morte de mais de 13 agentes públicos somente este ano”.
Segundo Blaz, o Comando Vermelho, facção criminosa da Vila Cruzeiro, é responsável pela maior parte dos confrontos no RJ.
“Precisamos desbaratar essa quadrilha que já é hoje responsável por mais de 80% dos confrontos armados do Rio de Janeiro. Essa facção criminosa que opera ali na região da Vila Cruzeiro atua numa campanha expansionista em todo o nosso estado”.
O tenente-coronel disse ainda que a morte da moradora da Chatuba é uma “realidade trágica”.