
Segundo a PF, ex-chefe da Polícia Civil, um dos mandantes do assassinato de Marielle, buscava lucrar enquanto criminosos “empilhavam corpos pela região metropolitana do Rio”
A Polícia Civil do Rio de Janeiro se tornou um balcão de negócios para bicheiros e milicianos, afirma a Polícia Federal. As declarações constam no relatório sobre os suspeitos de serem mandantes do assassinato de Marielle Franco, produzido pela PF.
As investigações apontam que a corporação foi cooptada entre 2015 e 2019 durante a gestão do delegado Rivaldo Barbosa, preso no domingo (24). Barbosa é apontado, juntamente com os irmãos Chiquinho Brazão, deputado federal (União Brasil-RJ) e Domingos Brazão, conselheiro do TCE (Tribunal de Contas do RJ) como um dos mentores da morte da vereadora e do seu motorista, Anderson Gomes, em 2018.
A corporação diz que Barbosa criou uma organização criminosa dentro da Polícia Civil suspeita de cometer crimes como corrupção, obstrução, tráfico de influência, fraudes processuais e abuso de autoridade. “Conforme visto em linhas recuadas, a Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro, devidamente capitaneada por Rivaldo Barbosa, se tornou um ambiente pernicioso para que organizações criminosas das mais diferentes espécies encontrassem ali um refúgio para a impunidade dos seus crimes”, diz relatório da PF.
Segundo o documento, a organização criminosa era composta “por agentes públicos que, mediante suas condutas ‘omissivas’ (em não apurar crimes) e ‘comissivas’ (pelo direcionamento consciente e voluntário de atos de investigação para focos diversos da realidade) permitem a manutenção do esquema criminoso envolvendo contraventores e milicianos”.
A PF acredita que Rivaldo Barbosa buscava auferir lucros enquanto criminosos “empilhavam corpos pela região metropolitana do Rio de Janeiro”. Para a corporação, essa é a “faceta mais abjeta” da atuação do delegado na Polícia Civil.
O órgão cita em seu relatório uma investigação do Ministério Público que apura a suspeita de que o ex-chefe da Polícia Civil “recebia vantagens indevidas da contravenção para não investigar/não deixar investigar os homicídios por eles praticados, decorrentes das disputas territoriais para exploração do jogo do bicho”.
Barbosa comandou a direção da Divisão de Homicídios entre outubro de 2015 e março de 2018, quando foi nomeado chefe da Polícia Civil. Ficou no cargo até 2019, com o fim da intervenção federal no Rio de Janeiro.
Para reforçar as denúncias da atuação criminosa do delegado, a PF cita uma decisão da Justiça estadual do RJ em uma ação penal contra o chamado Escritório do Crime que indica suposta atuação de Barbosa para ocultação e obstrução de outros crimes ligados ao grupo, que reúne milicianos e bicheiros.
Uma organização criminosa atuando dentro da divisão de homicídios da Polícia Civil “composta por agentes públicos que, mediante suas condutas […]permitem a manutenção do esquema criminoso envolvendo contraventores e milicianos”, diz o documento.
Em sua gestão, o delegado unificou as delegacias de homicídios para viabilizar sua atuação em toda região. Na condição de diretor da divisão, passou a ter mais poder ao ser o responsável por coordenar a investigação de assassinatos. “A criação desse ambiente pernicioso permitiu o fortalecimento de grupos criminosos, tendo em vista que a omissão deliberada na repressão dos crimes de homicídio tem o condão de cultivar um ambiente fértil para todo tipo de criminalidade, sendo esse crime o esgoto no qual desaguam os reflexos dos demais”, afirma a PF.
ESQUEMAS CRIMINOSOS
Desde 2008, quatro ex-chefes da Polícia Civil do Rio de Janeiro já foram presos por suspeita de participação em algum esquema criminoso. Além de Barbosa, em 2008 o então deputado estadual e ex-chefe da Polícia no governo de Anthony Garotinho, Álvaro Lins, foi preso por suspeita de lavagem de dinheiro, formação de quadrilha armada, corrupção passiva e facilitação ao contrabando.
Também em 2008, Ricardo Hallak foi preso pela corporação na Operação Segurança Pública S/A. Ele foi denunciado por corrupção, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro. Em 2022, o Ministério Público do RJ prendeu o ex-secretário de Polícia Civil Allan Turnowski por suspeita de organização criminosa e envolvimento com o jogo do bicho.
Em entrevista à Agência Brasil nesta segunda-feira (25), diante do exposto, especialistas defenderam a reformulação da Polícia Civil do Rio para melhoria da sua conduta e imagem. “Falando da cúpula”.
“É necessário que tenhamos uma reformulação da Polícia Civil, e não estamos falando dos baixos escalões. Estamos falando da cúpula da Polícia Civil, da maneira como a cúpula tem se servido de relações promíscuas com a criminalidade organizada e com o sistema político de forma a não atuar adequadamente para o policiamento que se espera de uma polícia judiciária democrática”, afirma o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do grupo de trabalho sobre Redução da Letalidade Policial do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Daniel Hirata.
Hirata critica ainda a militarização da instituição. “A Polícia Civil, mais uma vez, se encontra no centro de problemas relacionados à instituição que se caracterizou nos últimos tempos por ser muito militarizada – vide a existência da Core [Coordenadoria de Recursos Especiais] – que age de forma ostensiva, o que não é a função da polícia judiciária […]”, avalia.
E “também com ligações espúrias com a criminalidade organizada que remonta à época de Álvaro Lins, com relação aos esquadrões da morte, passando por Ricardo Hallak e Allan Turnowski, este último com relações com a alta cúpula do jogo do bicho, e agora o Rivaldo Barbosa”, finaliza o professor da UFF.
Na avaliação do coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), Pablo Nunes, as prisões relacionadas ao assassinato de Marielle, no domingo, evidenciam o cenário de degradação institucional do Rio de Janeiro. “A gente vive um dramático processo de degradação institucional. A Polícia Civil tem sido, por anos, objeto de questionamentos, de suspeição ao seu trabalho de investigação.”
“Se nada for feito,” continua Nunes, “Rivaldo não será o último. Haverá outros chefes de polícia envolvidos no crime porque esse sistema é falho, não há controle”. Para o pesquisador, o Ministério Público é conivente com “esses malfeitos’. Pablo Nunes destacou que o Rio de Janeiro não conseguirá melhorar a questão da segurança, do aumento da garantia de direitos, do respeito à Constituição se não passar pela refundação das polícias.