
MIKO PELED
Publicamos a seguir uma matéria escrita pelo israelense Miko Peled, originalmente publicada no portal mintpress news, intitulada “Como a Lei de Alistamento de Israel atenta contra a própria comunidade ultra-ortodoxa”.
Miko, é um ativista que, nascido e crescido em Jerusalém, filho do general Matti Peled, apoiado no processo de conscientização do próprio pai e em suas próprias observações, tornou-se um ativista contra a opressão israelense sobre o povo palestino. Seu pai, o general Peled integrou as forças armadas israelenses já na fundação do Estado de Israel, em 1948, e integrou o Estado Maior durante a Guerra dos Seis Dias, junto com Moshe Dayan e Itzhaq Rabin.
No seu livro, “The General’s Son”, Miko Peled conta como Matti evoluiu para se contrapor ativamente à ocupação dos territórios palestinos, que resultou daquela guerra, até o fim de seus dias. Nesse processo, Matti, foi um dos primeiros israelenses a visitar Yasser Arafat (ao lado de Uri Avnery) e acabou tornando-se um dos principais assessores de Itzhaq Rabin como primeiro-ministro até a celebração dos Acordos de Oslo firmados por Rabin e Arafat. No livro, Miko Peled descreve o dia do assassinato de Rabin como um dos dias mais tristes da vida de seu pai, o general Peled.
Nesta matéria, ele trata de um dos assuntos que mais evidenciam o caráter excludente do governo que se estabeleceu no país, após o assassinato de Rabin: a opressão até aos religiosos judeus ortodoxos. Eles já estavam nas cidades históricas de Jerusalém e Safad quando os sionistas por lá chegaram e aos quais Ben Gurion, ao fundar o Estado Judeu – ciente de que o novo estado mergulharia em um belicismo e hostilidade ao mundo árabe circunvizinho e em especial aos palestinos – prometera deixar em paz (que é como viviam secularmente com os palestinos) e que eles só fariam serviço militar enquanto voluntários. Agora querem obrigá-los a se alistarem e servirem. A repressão policial cai violenta sobre eles quando tomam as ruas de seus bairros em Jerusalém para protestar contra aquilo que não estão dispostos a fazer: guerrear e oprimir os palestinos. Mas vamos à matéria.
N.B.
“Nazistas, Nazistas”, é o que achava ter ouvido quando estava dirigindo na estrada principal, perto do ultra-ortodoxo bairro Me’a Sha’arim (Cem Portas, em hebraico, como é chamado o bairro religioso judaico em Jerusalem), onde centenas de jovens judeus haredi [denominação geral dos ortodoxos em hebraico] estavam bloqueando a estrada. Barricadas construídas com entulho estavam em fogo e o trânsito parou. Eu pulei do carro e corri para ver o que estava acontecendo. Perguntei a um jovem yeshiva [estudante de uma das escolas religiosas, com a denominação hebraica de Yeshiva] o que estava acontecendo e se eles estavam mesmo gritando “Nazistas”. Ele me confirmou que era disso mesmo que estavam chamando os da polícia de choque israelense. E que o protesto era porque a polícia acabara de prender diversas jovens haredi que se recusavam a servir no exército israelense.
Nazistas? Eu perguntei a ele, realmente? Ele então começou a descrever os abussos e a violência com as quais a polícia tratava os jovens – rapazes e moças – na sua comunidade, particularmente, desde que a lei de alistamento mudara, transformando todos eles em potenciais desertores.
Pode ser impossível imaginar um divisor mais profundo, separando dois lados, que esta questão. Como um tigre ao qual foi permitido permanecer por 65 anos hibernando e foi abruptamente despertado, Israel tem agora outra irada comunidade que se recusa a se comprometer, em suas mãos. E tudo por nenhuma outra razão do que o interesse de políticos oportunistas, que viram neste assunto que divide um meio de ganhar nome.
De um lado uma comunidade sem medo que desconhece limites físicos a sua determinação e que se une apenas em torno de sua fé absoluta no Todo Poderoso e na Torá [a Bíblia judaica]. Do outro lado, o poder total do Estado de Israel que está determinado a desfazer a comunidade haredi e tornar seus integrantes em israelenses comuns. Como discorre o rabino Yaakov Shapiro no vídeo de 2013, que também traz um dos primeiros protestos de apoio a esta comunidade, em Nova Iorque, da perspectiva haredi, ela não está disposta a erguer a bandeira branca. (https://www.mintpressnews.com/israel-conscription-law-assaults-its-own-ultra-orthodox-community/253394/)
Contexto histórico
Esta questão foi sempre entendida como um assunto explosivo. Na perspectiva dos judeus haredi, a exigência de servir ao exército de Israel não significa menos que servir a um falso deus, uma das três exigências sob as quais se determina a um judeu que escolha a morte no lugar da rendição.
Em 1949, por ordem do então ministro da Defesa, David Ben-Gurion, a comunidade haredi recebeu um deferimento que eventualmente se tonou uma isenção do serviço militar.
Durante os anos subsequentes, a ordem foi renovada pelos ministros de Defesa e, ao mesmo tempo, isso cresceu para incluir milhares de jovens rapazes e moças.
A verdade é que o exército nunca quis – e ainda não quer ou necessita – dos judeus haredi. O desdém do exército israelense pelos judeus religiosos pode ser demonstrado pelo fato de que, ainda quando judeus ortodoxos se inscrevem na força armada, refiro-me àqueles entre os religiosos que abraçaram o sionismo em todas as suas violentas manifestações, os judeus ortodoxos que ocupam os assentamentos na Cisjordânia [território palestino sob ocupação], raramente sobem na hierarquia militar. Nas sete décadas do exército, é difícil encontrar um oficial de destaque, um general, por exemplo, usando um yarmulke [o solidéu usado pelos religiosos judeus].
Nada menos do que um abismo
Para os judeus haredi, o que está em questão aqui é a própria sobrevivência de sua forma de vida e a vida da comunidade judaica devota na Terra Santa. O exército de Israel é, para eles, a epítome do secularismo, nacionalismo e desdém pela forma de vida haredi. O exército seria um cadinho através do qual se supõe seja criada uma “identidade israelense” para todo aquele que lhe presta serviço. Esta identidade é a antítese de um judeu haredi. É uma identidade na qual se busca perpetuar uma doutrina secular e nacionalista diametricalmente oposta a forma de vida reiligiosa, humilde e espiritual da comunidade haredi.
Mesmo sem o alistamento, para a maioia dos judeus haredi, viver em um Estado sionista, que se proclama um Estado Judeu, já é extremamente difícil. O rabino Moshe Dov Beck deixou Jerusalém depois da guerra de 1967 e hoje vive no bairro de Monsey, em Nova Iorque. Ele tem sido um destacado antissionista por décadas. Recentemente eu fui me encontrar com ele, junto com o rabino Weiss, dos Neturei Karta [uma vertente religiosa judaica que compara o sionismo e a opressão do povo palestino ao nazismo].
Perguntei ao rabino Beck porque ele deixou Jerusalém. Ele respondeu: “Eu não queria que os sionistas coroassem seu Estado com minha barba, minhas tranças e meu cáften [sobretudo tradicional usado pelos ortodoxos]”. Beck se referia aos símbolos de sua devoção.
Oportunismo político
Yair Lapid [num triste acaso, xará de um certo Jair que acaba de festejar a chegada do criminoso corrupto Netanyahu para assistir a sua posse] é o homem à frente do partido ultra-sionista “Yesh Atid” [Há Futuro]. Em 2013, entrou na arena política e fez avançar a exigência de se forçar a comunidade haredi para dentro do exército. Sabendo que se tratava de uma questão séria para os dois lados, os haredi, de um lado, e os israelenses em geral, de outro; um assunto explosivo, ele o usou com sucesso.
O portal de seu partido diz: ‘Durante a 19ª Legislatura do Knesset [parlamento israelense] o Yesh Atid passou a lei Encargo Nacional Igual que regulamenta o alistamento na FDI [as chamadas Forças de Defesa de Israel], junto com uma série de medidas para encorajar a população ultra-ortodoxa a se juntar à força de trabalho. A legislação garantiu que, pela primeira vez, a população ultra-ortodoxa seria igualmente obrigada a completar o serviço nacional”.
O problema é que, na realidade, trata-se de uma lei que, independentemente de sua sustentação, não traz nenhuma garantia de que seja possível de ser colocada em prática.
“Encargo igual” e “juntar-se à força de trabalho” são palavras-código para se atingir o coração da comunidade haredi de forma a destruir sua forma de vida e eventualmente eliminá-la completamente. É uma demanda que em qualquer país seria considerada não apenas opressiva e antidemocrática, mas racista e até antissemita. No entanto, Lapid colocou a questão de tal forma que nenhum político pode questioná-la sem parecer antipatriótico.
Um abismo para o qual não há pontes
Em 2012, Yaron London, um dos jornalistas mais populares de Israel, escreveu sobre esta questão no diário Ynet. Ele comparou os judeus Haredi a “uma parte maligna em um corpo”, referiu-se a eles como “vagabundos” e declarou: “Temos que reduzir o número de seus netos. Não é uma missão impossível. Nem é uma missão abusiva. É uma missão de salvação”.
Hoje praticamente todo jovem haredi está diante da possibilidade de ir parar em uma prisão militar. Quando as prisões acontecem, a comunidade se mobiliza com grande velocidade e milhares tomam as ruas em protesto e pagam caro. Não importa o quanto o Estado sionista e suas várias agências queiram acreditar que Israel é o Estado do ‘povo judeu’, existe uma comunidade judaica que nunca aceitará isso – e é justamente a comunidade mais devota ao judaísmo, a comunidade haredi.
Israel gasta milhões em publicidade e serviços de advogados para tentar mudar a mente da juventude haredi e fazê-los se juntarem ao serviço militar e imergirem na sociedade secular israelense. A imprensa israelense destaca casos isolados como o de um neto de um rabino hassídico [um dos ramos da ortodoxia Judaica], mas o que acontece é que a comunidade como um todo permanece inamovível e ressalta seus próprios heróis, aqueles que voltam das prisões militares.
Assim como o povo palestino cuja posição contra o sionismo é ancorada em direitos históricos e morais, a posição heroica da comunidade haredi, nesta questão, é ancorada na sua fé e princípios e, nos dois casos, nenhum poder foi capaz de derrotar.