A situação dos bancos de agora é “muito mais séria do que a quebra de 2008-09”, avalia o autor do artigo que publicamos, no qual analisa a atual crise do sistema financeiro norte-americano
MICHAEL HUDSON*
As quebras de Silvergate, Silicon Valley Bank, Signature Bank e suas insolvências bancárias relacionadas são muito mais sérias do que a quebra de 2008-09.
O problema naquela época eram os bancos desonestos que faziam empréstimos hipotecários ruins. Os devedores eram incapazes de pagar e estavam inadimplentes, e descobriu-se que o imóvel que eles haviam dado como garantia estava supervalorizado de forma fraudulenta, hipotecas lixo “marcadas para fantasia” feitas por avaliações falsas do preço real de mercado da propriedade e da renda do mutuário.
Os bancos vendiam esses empréstimos a compradores institucionais, como fundos de pensão, caixas econômicas alemãs e outros compradores ingênuos que haviam bebido o neoliberal Ki-Suko acreditando com Alan Greenspan que os bancos não os enganariam.
Os investimentos do Silicon Valley Bank (SVB) não apresentavam esse risco de inadimplência. O Tesouro sempre pode pagar, simplesmente imprimindo dinheiro, e as principais hipotecas de longo prazo cujos pacotes SVP comprou também eram solventes.
O problema é o próprio sistema financeiro, ou melhor, o canto em que o Fed pós-Obama pintou o sistema bancário. Ele não pode escapar de seus 13 anos de flexibilização quantitativa sem reverter a inflação dos preços dos ativos e fazer com que títulos, ações e imóveis baixem seu valor de mercado.
Em poucas palavras, resolver a crise de iliquidez de 2009 de forma a evitar que os bancos perdessem dinheiro (ao custo de sobrecarregar a economia com enormes dívidas), abriu caminho para a crise de iliquidez profundamente sistêmica que só agora está se tornando clara, embora eu não posso resistir em dizer que apontei sua dinâmica básica já em 2007 e em meu livro de 2015 Killing the Host [Matando o Hospedeiro].
FICÇÕES CONTÁBEIS VERSUS REALIDADE DE MERCADO
Não havia riscos de inadimplência para os investimentos em títulos do governo ou pacotes de hipotecas de longo prazo que o SVB e outros bancos compraram. O problema é que a avaliação de mercado dessas hipotecas caiu como resultado do aumento das taxas de juros.
O rendimento dos juros sobre títulos e hipotecas comprados há alguns anos é muito menor do que o disponível em novas hipotecas e novas notas e títulos do Tesouro. Quando as taxas de juros sobem, esses “títulos antigos” caem de preço para trazer seu rendimento para novos compradores de acordo com as taxas de juros crescentes do Fed.
Um problema de avaliação de mercado não é um problema de fraude desta vez.
O público acaba de descobrir que o quadro estatístico que os bancos apresentam sobre seus ativos e passivos não reflete a realidade do mercado. Os contadores bancários podem precificar seus ativos pelo “valor contábil” com base no preço que foi pago para adquiri-los – sem levar em consideração o valor desses investimentos hoje.
Durante o boom de 14 anos nos preços dos títulos, ações e imóveis, isso subvalorizou o ganho real que os bancos obtiveram quando o Fed baixou as taxas de juros para inflar os preços dos ativos. Mas esse Quantitative Easing (QE) terminou em 2022, quando o Fed começou a apertar as taxas de juros para desacelerar os ganhos salariais.
Quando as taxas de juros sobem, os preços dos títulos caem (e os preços das ações tendem a seguir). Mas os bancos não precisam rebaixar o preço de mercado de seus ativos para refletir esse declínio se simplesmente mantiverem seus títulos ou hipotecas empacotadas.
Eles só precisam revelar a perda no valor de mercado se os depositantes sacarem seu dinheiro e o banco realmente tiver que vender esses ativos para levantar o dinheiro para pagar seus depositantes.
Foi o que aconteceu no Silicon Valley Bank. Na verdade, tem sido um problema para todo o sistema bancário dos EUA. O gráfico a seguir vem do Naked Capitalism, que acompanha diariamente a crise bancária:
IMEDIATISMO NÃO DEIXOU SVB VER PARA ONDE IA O SETOR FINANCEIRO
Durante os anos de baixas taxas de juros, o sistema bancário dos Estados Unidos descobriu que seu poder de monopólio era tão forte que só precisava pagar aos depositantes 0,1 ou 0,2% sobre os depósitos. Isso era tudo o que o Tesouro estava pagando em títulos do Tesouro de curto prazo sem risco.
Assim, os depositantes tinham poucas alternativas, mas os bancos cobravam taxas muito mais altas por seus empréstimos, hipotecas e cartões de crédito. E quando a crise da Covid estourou em 2020, as corporações retiveram novos investimentos e inundaram os bancos com dinheiro que não estavam gastando.
Os bancos conseguiram obter um ganho de arbitragem – obtendo taxas de investimentos mais altas do que pagavam pelos depósitos – comprando títulos de prazo mais longo.
O SVB comprou títulos do Tesouro de longo prazo. A margem não era grande – menos de 2 pontos percentuais. Mas era o único “dinheiro grátis” seguro disponível.
No ano passado, o presidente do Federal Reserve, Powell, anunciou que o banco central aumentaria as taxas de juros para desacelerar o crescimento salarial que se desenvolveu à medida que a economia começou a se recuperar.
Isso levou a maioria dos investidores a perceber que taxas de juros mais altas reduziriam o preço dos títulos – mais acentuadamente para os títulos de prazo mais longo.
A maioria dos gestores de recursos evitou tais quedas de preços transferindo seu dinheiro para títulos do Tesouro de curto prazo ou fundos do mercado monetário, enquanto os preços dos imóveis, títulos e ações caíram.
Por alguma razão, o SVB não fez esse movimento óbvio. Eles mantiveram seus ativos concentrados em títulos do Tesouro de longo prazo e títulos similares. Enquanto o banco não tivesse saques líquidos de depósitos, não precisava relatar essa queda no valor de mercado de seus ativos.
No entanto, ele ficou segurando a brocha quando o Sr. Powell anunciou que não havia trabalhadores americanos suficientes desempregados para conter seus ganhos salariais, então ele planejou aumentar as taxas de juros ainda mais do que esperava.
Ele disse que uma recessão séria era necessária para manter os salários baixos o suficiente para manter altos os lucros das empresas americanas e, portanto, o preço de suas ações.
Isso reverteu o Quantitative Easing do resgate de Obama, que inflava constantemente os preços dos ativos imobiliários, ações e títulos. Mas o Fed se encurralou: se restaurar a era das taxas de juros “normais”, isso reverterá o aumento de 15 anos de ganhos nos preços dos ativos para o setor FIRE [Finanças, Seguros e Imóveis].
Essa mudança repentina em 11 e 12 de março deixou o SVB “sentado em uma perda não realizada de quase US$ 163 bilhões – mais do que sua base de ações. As saídas de depósitos começaram a cristalizar isso em uma perda realizada.”[1]O SVB não estava sozinho. Bancos em todo o país estavam perdendo depósitos.
Esta não foi uma “corrida aos bancos” resultante de temores de insolvência. Foi porque os bancos eram monopólios fortes o suficiente para evitar compartilhar seus ganhos crescentes com seus depositantes.
Eles estavam obtendo lucros crescentes com as taxas que cobravam dos tomadores de empréstimos e com as taxas geradas por seus investimentos, mas continuaram a pagar aos depositantes apenas cerca de 0,2%.
O Tesouro dos EUA estava pagando muito mais e, na quinta-feira, 11 de março, a nota do Tesouro de 2 anos estava rendendo quase 5%.
A diferença cada vez maior entre o que os investidores podem ganhar comprando títulos do Tesouro sem risco e a ninharia que os bancos estavam pagando a seus depositantes levou os depositantes mais abastados a sacar seu dinheiro para obter um retorno de mercado mais justo em outro lugar.
Seria errado pensar nisso como uma “corrida aos bancos” e muito menos como um pânico. Os depositantes não eram irracionais nem estavam sujeitos à “loucura das multidões” ao sacar seu dinheiro. Os bancos simplesmente eram muito egoístas. E ao sacarem seus depósitos, os bancos tiveram que vender suas carteiras de títulos – inclusive os títulos de longo prazo detidos pelo SVB.
Tudo isso faz parte do desenrolar dos resgates bancários de Obama e da flexibilização quantitativa. O resultado da tentativa de retornar aos níveis históricos mais normais das taxas de juros é que, em 14 de março, a agência de classificação Moody’s cortou a perspectiva do sistema bancário dos EUA de estável para negativa, citando o “ambiente operacional em rápida mudança”.
Eles estão se referindo à queda na capacidade das reservas bancárias de cobrir o que deviam aos seus depositantes, que sacavam seu dinheiro e obrigavam os bancos a vender títulos com prejuízo.
ENCOBRIMENTO ENGANOSO DE BIDEN
O presidente Biden está tentando confundir os eleitores, garantindo-lhes que o “resgate” de depositantes ricos do SVB sem seguro não é um resgate. Mas é claro que é um resgate.
O que ele quis dizer foi que os acionistas do banco não foram socorridos. Mas seus grandes depositantes sem seguro foram salvos de perder um único centavo, apesar do fato de não se qualificarem para a segurança e, de fato, terem conversado entre si e decidido abandonar o barco e causar o colapso do banco.
O que Biden realmente quis dizer é que este não é um resgate do contribuinte. Não envolve criação de dinheiro ou déficit orçamentário, assim como os US$ 9 trilhões do Fed em Quantitative Easing para os bancos desde 2008 foram criação de dinheiro ou aumento do déficit orçamentário.
É um exercício de balanço – tecnicamente uma espécie de “swap” com compensações de bom crédito do Federal Reserve por títulos bancários “ruins” dados como garantia – muito acima dos preços atuais de mercado, com certeza. Foi justamente isso que “resgatou” os bancos depois de 2009. O crédito federal foi criado sem tributação.
VISÃO DE TUNEL INERENTE AO SISTEMA BANCÁRIO
Pode-se repetir a rainha Elizabeth II e perguntar: “Ninguém previu isso?” Onde estava o Banco Federal de Crédito Imobiliário que deveria regulamentar o SVB? Onde estavam os examinadores do Federal Reserve?
Para responder a isso, deve-se olhar para quem são os reguladores e examinadores do banco. Eles são examinados pelos próprios bancos, escolhidos por negarem que haja qualquer problema inerentemente estrutural em nosso sistema financeiro. Eles são “verdadeiros crentes” de que os mercados financeiros estão se autocorrigindo por “estabilizadores automáticos” e “bom senso”.
A corrupção desreguladora desempenhou um papel na seleção cuidadosa de tais reguladores e examinadores com visão de túnel. O SVB era supervisionado pelo Federal Home Loan Bank (FHLB). O FHLB é notório pela captura regulatória pelos bancos que optam por operar sob sua supervisão.
No entanto, o negócio do SVB não é o crédito imobiliário. São entidades de private equity de alta tecnologia sendo preparadas para IPOs – para serem emitidas a preços altos, faladas e, muitas vezes, deixadas para cair em um jogo de bombeia e despeja. Funcionários bancários ou examinadores que reconhecem esse problema são desqualificados do emprego por serem “superqualificados”.
Outra consideração política é que o Vale do Silício é um reduto do Partido Democrata e uma rica fonte de financiamento de campanha. A administração Biden não iria matar a galinha dos ovos de ouro das contribuições de campanha. Claro que iria socorrer o banco e seus clientes de capital privado. O setor financeiro é o núcleo de apoio do Partido Democrata e a liderança do partido é leal a seus apoiadores.
Como o presidente Obama disse aos banqueiros que temiam que ele cumprisse suas promessas de campanha de amortizar as dívidas hipotecárias para avaliações de mercado realistas, a fim de permitir que os clientes de hipotecas lixo explorados permanecessem em suas casas: “Sou o único entre vocês. [os banqueiros visitando a Casa Branca] e a multidão com os forcados”, ou seja, sua caracterização de eleitores que acreditaram em seu discurso de “esperança e mudança”.
FED SE ASSUSTA E REVERTE TAXAS DE JUROS
Em 14 de março, os preços das ações e títulos dispararam. Os compradores de margem fizeram uma farra ao ver que o plano do governo é o de sempre: chutar o problema do banco para o futuro, inundar a economia com salvamentos (para os banqueiros, não para devedores estudantis) até o dia da eleição em novembro de 2024.
A grande questão é, portanto, se as taxas de juros podem voltar a um “normal” histórico sem transformar todo o sistema bancário em algo como o SVB.
Se o Fed realmente aumentar as taxas de juros de volta aos níveis normais para desacelerar o crescimento dos salários, deve haver um colapso financeiro. Para evitar isso, o Fed deve criar um fluxo exponencialmente crescente de flexibilização quantitativa.
O problema subjacente é que a dívida com juros cresce exponencialmente, mas a economia segue uma curva S e depois desce. E quando a economia desacelera – ou é deliberadamente desacelerada quando os reajustes de salário tendem a alcançar a inflação de preços causada por preços monopolistas e por sanções anti-russas dos EUA que elevam os preços de energia e alimentos -, a magnitude das reivindicações financeiras na economia excede a capacidade de pagar.
Essa é a verdadeira crise financeira que a economia enfrenta. Vai além do banco. Toda a economia está sobrecarregada com a deflação da dívida, mesmo diante da inflação dos preços dos ativos apoiada pelo Federal Reserve.
Portanto, a grande questão – literalmente o “resultado final” – é como o Fed pode manobrar para sair do canto de flexibilização quantitativa de juros baixos em que pintou a economia dos EUA. Quanto mais tempo continuar a evitar que os investidores do setor FIRE sofram perdas, mais violenta deve ser a resolução final.
A severidade tem sido uma escolha política para continuar “chutando a lata no caminho”, resgatando um aperto financeiro após o outro pelo menos até o próximo ano eleitoral.
Notas
[1] Huw van Steenis, “A história pode nos instruir sobre as consequências do colapso do SVB”, Financial Times, 13 de março de 2023.
*Economista e escritor. Tradução Hora do Povo. Originalmente publicado em michael-hudson.com