[O texto abaixo foi escrito há um pouco mais de duas semanas. De lá para cá estive em dúvida sobre se devia ou não publicá-lo aqui, no HP, devido a algumas complicações – na verdade, não estava seguro de que conseguira escrever de maneira clara a propósito de um assunto sobre o qual despeja-se, habitualmente, baldes de obscuridade. No entanto, a questão de que ele trata tornou-se candente. O que está em jogo, nessa questão, é não somente se os condenados a partir da Operação Lava Jato sairão impunes, ou não, mas o próprio destino do país, do Brasil como Nação soberana e livre. Nenhuma nação pode ser livre se é sufocada por uma cascora de bandidos, preocupados apenas em roubar o povo e sua maior propriedade, o país, com a garantia de total impunidade. (C.L.)]
CARLOS LOPES
As discussões sobre a prisão após a condenação em segunda instância extrapolaram, há muito, o meio jurídico. Não deixa de ser saudável que o público em geral também participe da discussão dos problemas judiciais, já que, como diziam os romanos, não se pode alegar desconhecimento da lei (ou, em nossa Lei de Introdução ao Código Civil: “Artigo 3º. Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”).
Para a maioria das pessoas, os textos jurídicos, em geral, parecem uma modalidade da Pedra de Roseta, sem que apareça algum sábio – como apareceu, na Pedra original – para decifrar a sua linguagem.
Isto se deve, em boa parte, ao que um dos nossos maiores juristas, Nelson Hungria, chamou de “o estilo copioso dos simuladores de erudição”.
No entanto, as matérias jurídicas merecem a atenção dos homens e mulheres de nossa terra que não são juristas – e podem até mesmo ser emocionantes, como expressão da luta dentro da sociedade. Foi o que demonstrou, por exemplo, Rui Barbosa – e o que tentamos, entre outras coisas, demonstrar aqui.
DEPOIS DE 1988
Mostrando que a máxima do Barão de Itararé (“De onde menos se espera, daí é que não sai nada”) admite grandes exceções, o ministro Alexandre de Moraes, em recente voto no STF, fez uma observação muito importante:
“… em quase 30 (trinta) anos do texto constitucional [de 1988] foi essa [a execução da pena após a condenação em segunda instância] a posição majoritária do Supremo Tribunal Federal por aproximadamente 23 (vinte e três) anos. Da promulgação da Constituição em 5 de outubro de 1988 até a decisão de 5 de fevereiro de 2009 (HC 84.078/MG, Rel. Min. Eros Grau).
“Durante mais de duas décadas, interpretando o alcance do artigo 5º, inciso LVII da Constituição de 1988, a Corte considerou que a presunção de inocência não impedia o início da execução provisória de pena após o esgotamento do julgamento da apelação em segunda instância” (STF, voto do min. Alexandre de Moraes, RE 696.533/SC, 06/02/2018, grifos nossos).
O artigo 5º, inciso LVII, da Constituição de 1988, é, literalmente, o seguinte: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
É o mesmo dispositivo constitucional que alguns – em geral, condenados por corrupção, seus advogados ou aqueles que pretendem ser seus advogados – levantam como contraditório com a prisão após a condenação em segunda instância.
No entanto, como observa a procuradora geral da República, Raquel Dodge, o trecho constitucional não se refere à prisão, mas à culpa.
Porém, deixemos essa questão para mais adiante.
Agora, importa ressaltar que o ministro Alexandre de Moraes tem razão quanto à história da jurisprudência do STF.
Veja-se, por exemplo, esta decisão, proferida três anos após a aprovação da atual Constituição:
“A ordem de prisão, em decorrência de (…) decisão de órgão julgador de segundo grau, é de natureza processual e concernente aos interesses de garantia da aplicação da lei penal ou de execução da pena imposta, após o devido processo legal. Não conflita com o art. 5º, inciso LVII, da Constituição” (STF, HC 68.726, rel. min. Néri da Silveira, 28/6/1991, grifo nosso).
Ou esta outra, nove anos depois de aprovada a Constituição, sobre um condenado – por uma Vara Criminal e pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – que pretendia não ir para a cadeia até que fosse julgado o último recurso possível:
“Descabida é a pretensão do paciente de aguardar em liberdade o julgamento dos recursos que interpôs. Os autos dão notícia de que o paciente interpôs recurso especial [ou seja, recurso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ)]. Contra o despacho que a ele negou seguimento, interpôs agravo de instrumento para o Superior Tribunal de Justiça. Por não terem efeito suspensivo, os recursos especial e extraordinário não impedem o cumprimento do mandado de prisão” (STF, HC 74.983, rel. min. Carlos Velloso, 30/6/1997, grifo nosso).
O ministro Teori Zavascky, de cujo voto, em 2016, extraímos as citações acima, refere mais sete decisões (a última, de 2007, ou seja, 19 anos após a aprovação da atual Constituição) e mais duas súmulas do STF nesse mesmo sentido. Por exemplo: “A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de ser possível a execução provisória da pena privativa de liberdade, quando os recursos pendentes de julgamento não têm efeito suspensivo [ou seja, depois de encerrado o julgamento em segunda instância]” ou “a interposição de recurso especial [ao STJ] não impede (…) a imediata execução da sentença condenatória”.
O TERROR
Porém, em 2009, o STF mudou esse entendimento – que, depois, foi retomado em 2016.
Por isso (e, sobretudo, com os resultados da Operação Lava Jato), aprontou-se uma gritaria contra a prisão após condenação em segunda instância, como se a jurisprudência de 2009, que impedia a prisão após a condenação em segunda instância, fosse a norma – e a única possível.
Na verdade, como disse o ministro Alexandre de Moraes, em 30 anos de vigência da Constituição de 1988, apenas durante sete anos (05/02/2009 até 17/02/2016) imperou a jurisprudência que impedia a prisão após a condenação em segunda instância. Durante os outros 23 anos, foi a atual jurisprudência do STF que prevaleceu.
A gritaria, diga-se de passagem, não se deve, apenas, à condenação de Lula pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), órgão de segunda instância, após a sua condenação, em primeira instância, pela 13ª Vara Federal de Curitiba, que tem como titular o juiz Sérgio Fernando Moro.
Nesse particular, Lula pode ser o mais patético, mas não se diferencia, em nada, dos outros exemplares da espécie dos corruptos. Esse é o denominador comum que faz com que Lula, Temer, Aécio, Renan, e outros heróis da propina, procurem, o tempo todo, fechar um “acordão” (não confundir com “acórdão”) para acabar com a Operação Lava Jato.
Entretanto, bem antes da condenação de Lula, essa questão aparecera na gravação da conversa entre o senador Renan Calheiros (PMDB-AL), então presidente do Senado, e seu protegido, o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado:
SÉRGIO MACHADO: … vamos passar uma borracha no Brasil e vamos daqui para a frente. Ninguém mexeu com isso. E esses caras do…
RENAN CALHEIROS: Antes de passar a borracha, precisa fazer três coisas, que alguns do Supremo [inaudível] fazer. Primeiro, não pode fazer delação premiada preso. Primeira coisa. Porque aí você regulamenta a delação e estabelece isso.
SÉRGIO MACHADO: Acaba com esse negócio da segunda instância, que está apavorando todo mundo.
RENAN CALHEIROS: A lei diz que não pode prender depois da segunda instância, e ele aí dá uma decisão, interpreta isso e acaba isso.
SÉRGIO MACHADO: Acaba isso (grifos nossos).
Essa, aliás, é a principal – pode-se dizer, a única – fonte de irritação do corrupto Machado com o Supremo Tribunal Federal. É isso que o faz dizer, em seguida: “eu nunca vi um Supremo tão merda”, sem que Calheiros – presidente do Senado, portanto, do Congresso – esboce o menor protesto.
Ou seja, o problema da jurisprudência de 2016, do STF, que retomou a execução da pena após a condenação em segunda instância, é que apavora os corruptos, os ladrões do dinheiro e do patrimônio do povo – e não permite a eles sair impunes.
Repare o leitor que Machado – o principal elemento que Renan, com a proteção de Lula e Dilma, colocou nas empresas do Grupo Petrobrás – é um ladrão que, depois, confessou a passagem de R$ 100 milhões em propina para a cúpula do PMDB (Temer, Calheiros, Barbalho, Jucá e Lobão), além de ter roubado R$ 92 milhões para si mesmo, desviando, portanto, R$ 192 milhões às custas da frota de petroleiros da Petrobrás, isto é, da Transpetro, da qual foi presidente durante 11 anos. E ninguém garante que ele não escondeu parte do roubo. Pelo contrário, essa é a desconfiança geral.
Não por acaso, tanto ele quanto Renan queriam “acabar” com a jurisprudência de 2016 do STF, que determina a prisão após condenação em segunda instância.
A mesma questão aparece na conversa de Machado com Romero Jucá, outro lavajatista, que substituiu Temer como presidente do PMDB:
SÉRGIO MACHADO: Acontece o seguinte, objetivamente falando, com o negócio que o Supremo fez [a decisão sobre o cumprimento de pena após condenação em segunda instância], vai todo mundo delatar.
ROMERO JUCÁ: Exatamente, e vai sobrar muito. O Marcelo, e a Odebrecht, vão fazer.
SÉRGIO MACHADO: Odebrecht vai fazer.
ROMERO JUCÁ: Seletiva, mas vai fazer.
SÉRGIO MACHADO: A Camargo vai fazer ou não. Eu estou muito preocupado porque eu acho que… O Janot está a fim de pegar vocês. E acha que eu sou o caminho.
ROMERO JUCÁ: [inaudível]
Deixamos ao leitor o julgamento do caráter dessa súcia, a começar pelo próprio Machado, que estava, ao gravar essa conversa, preparando sua própria delação. Mas é inútil esperar que esses marginais engravatados tenham solidariedade uns com os outros. Aliás, ainda bem que não têm.
Mais explicitamente ainda – se é possível – o mesmo assunto aparece na gravação da conversa de Machado com o ex-presidente José Sarney:
SÉRGIO MACHADO: … e o Supremo fez essa suprema… rasgou a Constituição. (…) Aquela reunião do Supremo… rasgaram a Constituição no que diz respeito ao transitado em julgado. O Gilmar que foi… o Gilmar e o Toffoli foram os grandes, os dois filhos da puta, porque se tivessem votado [contra a jurisprudência proposta pelo ministro Teori Zavascky] tinha dado seis a quatro.
SARNEY: Foi. Fez aquele negócio com o Delcídio. E pior foi o Senado se acovardar de uma maneira…
Na votação sobre a execução da pena com a condenação em segunda instância, no STF, em 2016, os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli votaram a favor da posição vencedora, defendida pelo relator do caso que estava sendo julgado, ministro Teori Zavascki.
Daí a fúria de Machado contra Mendes e Toffoli.
Votaram a favor da execução da pena com a condenação em segunda instância os ministros Teori Zavascki, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Luiz Fux, Carmen Lúcia, Dias Toffoli e Gilmar Mendes; votaram contra os ministros Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio de Mello, Celso de Mello e Rosa Weber.
Entre os ministros que então votaram, apenas um, Gilmar Mendes, mudou sua posição, quando os corruptos que se sentem ameaçados pela cadeia incluíram também os de seu próprio círculo (como disse o ministro Luís Roberto Barroso, durante debate com Gilmar Mendes, no plenário do Supremo: “você muda a jurisprudência de acordo com o réu”).
TRIBUNAIS
A questão levantada pelo ministro Teori Zavascki, na sessão do STF de 17 de fevereiro de 2016, era lógica: após a condenação em segunda instância não existem mais recursos com “efeito suspensivo” (ou seja, recursos que, até serem julgados, suspendem a execução da pena).
Tanto o “recurso especial” (ao STJ) quanto o “recurso extraordinário” (ao STF) não suspendem a execução da pena. Portanto, não havia – e não há – razão legal para que a execução da pena não começasse após a condenação em segunda instância.
Sobre essas questões, faremos aqui um interregno, necessário para, em seguida, continuarmos.
Quanto ao STF, o Código de Processo Penal é claro, ao dizer, em seu artigo 637 que “o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo”, com a consequência de que, uma vez impetrado o recurso, “os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença” (cf. CPP, ed. SF, Brasília, 2017, p, 149).
Portanto, até mesmo existe na lei a previsão de que a pena será executada após a condenação em segunda instância.
Quanto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), o “recurso especial” (uma inovação da Constituição de 1988) somente pode ter efeito suspensivo se houver um requerimento – e, portanto, um julgamento – específico, que, evidentemente, pode concedê-lo ou não (artigo 1.029, § 5º do novo Código de Processo Civil, que é de 2015, e artigo 995: “Os recursos não impedem a eficácia da decisão, salvo disposição legal ou decisão judicial em sentido diverso”).
No entanto, aqui, o “efeito suspensivo” é a exceção (cf. o comentário do jurista José Tadeu Neves Xavier in Novo Código de Processo Civil anotado, OAB/RS, Porto Alegre, 2015, p. 812).
A regra é determinada pelo fato de que o “recurso especial” não tem, automaticamente, efeito suspensivo, pela simples razão de que o STJ, assim como o STF, ao contrário dos Tribunais de Justiça dos Estados e dos Tribunais Regionais Federais, não é um tribunal de apelação. Ou seja, não reexaminam o mérito dos processos. Sua função é vigiar se, no procedimento dos tribunais que lhe são inferiores, houve o cumprimento das normas (“princípios e regras”) da legislação ordinária (STJ) ou da Constituição (STF).
É claro que, para exercer tais funções, esses tribunais têm que interpretar o texto das leis e da Constituição.
CESSAÇÃO DA INOCÊNCIA
Então, em processo criminal, a segunda instância (Tribunais de Justiça dos Estados ou Tribunais Regionais Federais) é a última a examinar a culpa ou inocência do réu.
O desembargador João Pedro Gebran Neto, no julgamento de Lula no TRF4, analisou a questão sob o ângulo do que significa a “presunção de inocência”: depois das provas e da culpabilidade (ou não) do réu ser examinada por quatro juízes diferentes (um em primeira instância e três em segunda instância), com direito a ampla defesa, em um processo mais do que público, é possível ter a mesma “presunção de inocência”, em relação a alguém que foi condenado duas vezes, do que aquela que existia antes dessas duas condenações?
“… a condenação em segundo grau”, escreveu Gebran Neto, “por si só, é fundamento idôneo para que se permita o cumprimento imediato da pena. Neste caso, diferente da prisão cautelar, tem-se por premissa que ‘a presunção de inocência não é absoluta e perde força no decorrer do processo, pelo menos após condenação, ainda que de primeira instância’ (HC 114.688, Luiz Fux, STF). Tal perda de força é mais intensa com a condenação em segundo grau.”
No mesmo julgamento, o desembargador Leandro Paulsen, revisor do processo e presidente da 8ª Turma do TRF4, considerou:
“… essa Turma passou a adotar o entendimento pela execução da pena a partir do exaurimento da segunda instância. E por que isto? Porque o exaurimento da segunda instância exaure também o juízo de culpabilidade, se o crime ocorreu ou não, quem são os seus autores, se houve ou não culpa. Portanto, os elementos necessários para uma condenação se exaurem na segunda instância” (grifo nosso).
E, mais adiante, disse Paulsen:
“Essa turma adotou, antes mesmo da modificação do entendimento do Supremo Tribunal Federal, a posição de que se tinha que dar início à sentença, independentemente da pertinência de recursos excepcionais.
“E excepcionais por quê? Porque embora possam funcionar como um instrumento de defesa, o recurso especial [ao STJ] e o recurso extraordinário [ao STF] são recursos para a preservação do sistema, a preservação da lei federal, da Constituição da República e, por isso, não são dotados de efeitos suspensivos”.
No mesmo julgamento, o desembargador Victor Laus afirmou, sobre a condenação em segunda instância: “Uma vez confirmado o juízo de culpabilidade, é dizer, cessado o estado de inocência”.
SESSÃO DE 2009
Resumindo a questão:
O Direito brasileiro garante ao cidadão, acusado de um crime, dois julgamentos – ou seja, garante que seu caso, depois de julgado em primeira instância (nas Varas da Justiça estadual ou federal), possa ser reexaminado por um tribunal de segunda instância (Tribunais de Justiça dos Estados ou Tribunais Regionais Federais), que são órgãos colegiados, ou seja, compostos por vários juízes (desembargadores).
A isso, os juristas chamam “duplo grau de jurisdição”.
Não por acaso, fala-se em duplo grau de jurisdição – e não em triplo ou quádruplo grau de jurisdição.
Como a segunda instância é a última que examina o mérito da questão (culpado ou inocente), os recursos a instâncias superiores (STJ ou STF) não suspendem a execução da pena.
Mas, então, qual é a função do STJ ou STF, ao examinar recursos contra decisões da segunda instância?
Esses tribunais examinam se as normas (princípios e regras) legais e processuais foram obedecidas durante os julgamentos anteriores (na expressão do ministro Teori Zavascky, os recursos ao STJ e STF, “não têm por finalidade específica examinar a justiça ou injustiça de sentenças em casos concretos. Destinam-se, precipuamente, à preservação da higidez do sistema normativo”).
Por exemplo, eles examinam se ao réu foi proporcionado amplo direito de defesa.
Tudo isso era ponto pacífico até 2009, quando houve, no STF, o julgamento de um habeas corpus impetrado por um homicida, um certo Omar, já condenado duas vezes (na verdade, três, se contarmos com o primeiro julgamento, que foi anulado), pelo Tribunal do Júri e pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.
Para espanto de muitos, o STF aprovou o voto do relator, Eros Grau, segundo o qual um condenado somente poderia ser preso após sua sentença “transitar em julgado”, ou seja, terem se esgotado todos os recursos, inclusive aqueles em terceira (STJ) e quarta instâncias (STF).
Votaram contra essa decisão as ministras Cármen Lúcia e Ellen Gracie, e os ministros Joaquim Barbosa e Carlos Alberto Menezes Direito.
Durante esse julgamento, o ministro Joaquim Barbosa definiu, com propriedade, a posição aprovada pela então maioria do STF:
O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA: “Nós estamos criando um sistema penal de faz-de-conta. Sabemos que, se tivermos que aguardar o esgotamento dos recursos especial e extraordinário, o processo jamais chega a seu fim. Nós sabemos muito bem disso. Basta olhar as estatísticas. (…) não conheço nenhum país que ofereça a um réu tantos meios de recurso como o nosso.
“Sou Relator, nesta Casa, de uma série de habeas corpus relacionados a uma estrepitosa ação penal que tem curso no Estado de São Paulo. Só em relação a um dos réus, nos últimos quatro ou cinco anos, foram julgados nada menos do que sessenta e dois recursos. Dezenas deles da minha relatoria, alguns da relatoria do ministro Eros Grau, outros da relatoria do ministro Carlos Britto, aqui nesta Corte.
“Portanto, o leque de opções de defesa que o ordenamento jurídico brasileiro oferece ao réu é imenso, inigualável. Não existe nenhum país do mundo que ofereça tamanha proteção. Portanto, se resolvermos, politicamente – porque essa é uma decisão política -, que o réu só deve cumprir a pena esgotados todos os recursos, ou seja, até o recurso extraordinário julgado por esta Corte, temos que assumir politicamente o ônus por essa decisão.”
E, sobre a comparação feita por Eros Grau entre o direito à propriedade e o direito à liberdade:
“… a discussão está indo por um rumo em que se faz o cotejo, o paralelo entre o processo penal e o cível. Mas estamos esquecendo de que, no processo penal, o réu dispõe de outros meios de impugnação que não existem no processo cível. (…) Aqui estávamos estabelecendo essa discussão entre o processo cível. Não. É uma decisão política. Queremos ou não um sistema penal eficiente, eficaz? Ou queremos um sistema penal de faz-de-conta? É exatamente isso” (STF, HC 84078/MG, pp. 1.135 a 1.137, grifos nossos).
IMPUNIDADE
A decisão de 2009, evidentemente, passava por cima da lei, ao conferir caráter suspensivo da execução da pena “para todo e qualquer recurso contra decisão penal condenatória de forma indistinta” (inclusive àqueles impetrados no STJ ou STF), como aponta o juiz Barbagalo, autor de um livro agora famoso, “Presunção de Inocência e Recursos Criminais Excepcionais: em busca da racionalidade no sistema processual penal brasileiro”.
Porém, essa é a questão jurídica. Vejamos a matriz ideológica do texto, escrito pelo ministro Eros Grau:
“A Corte que vigorosamente prestigia o disposto no preceito constitucional em nome da garantia da propriedade não a deve negar quando se trate da garantia da liberdade, mesmo porque a propriedade tem mais a ver com as elites; a ameaça às liberdades alcança de modo efetivo as classes subalternas. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1º, III, da Constituição do Brasil). É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual. Ordem concedida” (STF, HC 84.078, rel. min. Eros Grau, 05/02/2009).
Em nome de supostos direitos dos desfavorecidos, o ministro Eros Grau, e os colegas que o acompanharam, aprovaram uma decisão que só beneficia quem tem dinheiro.
Em nome dos direitos das pessoas, aprovou-se uma decisão que somente beneficia os criminosos endinheirados que atentam contra as pessoas, pois é evidente que os pobres não têm condição alguma de arcar com os altos custos de um recurso – quanto mais de vários – ao STJ ou STF.
Para confirmar tal assertiva, curiosamente (mas não surpreendentemente), o primeiro beneficiado com a impunidade foi o homicida que motivou o voto do ministro Eros Grau (e, portanto, a “nova” jurisprudência de 2009 do STF, de conferir efeito suspensivo da execução da pena ao que não tem, na lei, efeito suspensivo algum). Vejamos o seguinte relato:
“Movido pela curiosidade, verifiquei no sítio do Superior Tribunal de Justiça a quantas andava a tramitação do recurso especial do Sr. Omar. Em resumo, o recurso especial não foi recebido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, sendo impetrado agravo para o STJ, quando o recurso especial foi, então, rejeitado monocraticamente (RESP n. 403.551/MG) pela ministra Maria Thereza de Assis.
“Como previsto, foi interposto agravo regimental, o qual, negado, foi combatido por embargos de declaração, o qual, conhecido, mas improvido.
“Então, fora interposto novo recurso de embargos de declaração, este rejeitado in limine.
“Contra essa decisão, agora vieram embargos de divergência que, como os outros recursos anteriores, foi indeferido.
“Nova decisão e novo recurso. Desta feita, um agravo regimental, o qual teve o mesmo desfecho dos demais recursos: a rejeição.
“Irresignada, a combativa defesa apresentou mais um recurso de embargos de declaração e contra essa última decisão que também foi de rejeição, foi interposto outro recurso (embargos de declaração).
“Contudo, antes que fosse julgado este que seria o oitavo recurso da defesa, foi apresentada petição à presidente da terceira Seção.
“Cuidava-se de pedido da defesa para – surpresa – reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva.
“No dia 24 de fevereiro de 2014, o eminente Ministro Moura Ribeiro, proferiu decisão, cujo dispositivo foi o seguinte: ‘Ante o exposto, declaro de ofício a extinção da punibilidade do condenado, em virtude da prescrição da pretensão punitiva da sanção a ele imposta, e julgo prejudicado os embargos de declaração de fls. 2090/2105 e o agravo regimental de fls. 2205/2213’” (cf. Fernando Brandini Barbagalo, “Presunção de Inocência e Recursos Criminais Excepcionais: em busca da racionalidade no sistema processual penal brasileiro”, TJDFT, 2015, p. 119).
LABIRINTO
Em 2016, no entanto, como já dissemos, no julgamento de um Habeas Corpus que tinha como relator o ministro Teori Zavascky, o STF mudou sua jurisprudência, voltando àquela de antes de 2009.
O motivo do apavoramento dos criminosos com a jurisprudência atual é que, se não fora ela, não existiriam obstáculos para a sua impunidade – não somente para evitar a cadeia, mas qualquer pena.
Como escreveu a procuradora geral da República, Raquel Dodge, a prevalecer a jurisprudência de 2009, que deixava solto o criminoso até que se decidissem todos os recursos, inclusive aqueles que, pela lei, não têm efeito de suspender a execução da pena, a situação seria a seguinte:
“O complexo sistema recursal permite que, na prática, o condenado só deixe de apresentar recursos quando se ‘conformar’ com a condenação, o que pode jamais ou tardar muito a acontecer. (…) há sempre a possibilidade de novos recursos contra as sucessivas decisões no curso da ação penal, impedindo o trânsito em julgado da decisão condenatória” (PGR, Parecer N.º 176/LJ/2018-REFD).
E, mais adiante, no mesmo parecer:
“Na prática, a defesa pode interpor infindáveis recursos contra a condenação e protrair o trânsito em julgado da condenação. A defesa tem tido o incentivo de fazê-lo por saber que o réu não será preso enquanto o trânsito em julgado não ocorrer. Por isso, não é difícil que a prescrição da pretensão punitiva [o arquivamento do processo sem que o condenado seja punido] ocorra com frequência.
“Antes de 2016 (quando o STF aprovou o precedente vinculante e permitiu a execução provisória da pena), centenas de condenações penais prescreveram, depois de ter sido reconhecida a prática do crime e a culpa do réu (em geral após a condenação pelo juiz e pelo tribunal). Simplesmente deixou-se de dar cumprimento a tais condenações penais por causa da prescrição: ou seja, por demora processual. A sensação de impunidade e a descrença na Justiça em razão dessa constrangedora realidade são notórias”.
Como nota a procuradora, “este quadro tem outro problema. Embora o sistema incentive recursos protelatórios, o fato é que nem todos os acusados têm condições financeiras para pagar os altos custos da interposição de recursos. (…) Alguns poucos, com condições financeiras para pagar os custos de sucessivos recursos contra a condenação, logram livrar-se da sanção penal. Ao assim fazê-lo, todavia, estes poucos abarrotam o Poder Judiciário de recursos protelatórios, em detrimento dos vários outros jurisdicionados que aguardam uma resposta judicial para seus conflitos” (PGR, idem, grifos nossos).
A procuradora resume o “emaranhado recursal”, descrito pelo juiz Barbagalo em seu livro, também mencionado pelo ministro Teori Zavascki no voto que mudou a jurisprudência do STF sobre o tema, em 2016 (se ao leitor lhe parecer difícil entender esse labirinto, lembramos que mais importante é entender que é um labirinto – e infinito, para aqueles que têm dinheiro para percorrê-lo, sem que haja punição):
“I) Todos os acórdãos condenatórios dos Tribunais brasileiros podem ser objeto de recursos para o STJ e para o STF.
“II) Caso tais recursos não sejam admitidos no tribunal intermediário, é cabível interpor agravo nos próprios autos (artigo 1.042, CPC), que o presidente do Tribunal intermediário não pode obstar, deve processar (artigo 1.042, § 2º, CPC) e remeter (nos próprios autos) ao STJ ou ao STF, para que a decisão sobre o não recebimento dos recursos especial ou extraordinários seja revista pelo Tribunal ad quem (STJ ou STF).
“III) Quando o réu entender que a decisão permite interpor simultaneamente recursos (especial e extraordinário), deverá apresentá-los conjuntamente. Se ambos forem rejeitados, deverá, igualmente, insurgindo-se, apresentar dois recursos de agravos (artigo 28, Lei n. 8.038/90 e artigo 1042, §6º, CPC). Entretanto, os autos inicialmente serão remetidos ao Superior Tribunal de Justiça (artigo 27-§3º da Lei 8.038/90 e artigo 1031, caput do CPC), salvo quando a matéria constitucional for prejudicial ao tema tratado no recurso especial, caso em que será encaminhado o agravo (nos próprios autos) ao Supremo Tribunal Federal (artigo 27-§ 4º da Lei nº 8.038/90 e artigo 1031-§ 1º do CPC) para verificar a prejudicialidade e se ocorrer, decidir o recurso, para só então, encaminhar os autos de volta ao STJ.
“IV) Caso seja admitido o recurso especial, apenas após o seu julgamento e de todos os seus sucessivos recursos dentro do STJ é que os autos seguirão finalmente ao STF.
“V) Rejeitado pelo Relator o agravo contra a decisão que inadmitiu os recursos, caberá agravo regimental para a Turma (artigo 28, § 5º, Lei n. 8.030/90 e artigo 1.021, CPC).
“VI) Resolvida a questão pela Turma, poderão ser apresentados embargos de divergência (artigo 29, Lei n. 8.038/90 e artigo 1.043, CPC).
“VII) Em qualquer destas hipóteses, sempre poderá ser apresentado embargos de declaração quando o réu entender que a decisão não é suficientemente clara, apresenta ambiguidade ou contradição (artigo 263, RISTJ).
“VIII) Nesse ínterim, é sempre possível a apresentação de recurso de embargos de declaração contra decisão que analisou anteriormente o mesmo recurso (os chamados embargos dos embargos de declaração) desde que o fundamento seja distinto.
“IX) Terminada a fase no STJ referente ao Recurso Especial e seus vários consectários, não havendo possibilidade de outros recursos nesse tribunal, determina-se a baixa dos autos para a execução da condenação.
“X) No entanto, se o réu tiver interposto conjuntamente o Recurso Extraordinário e o Especial, os autos deverão agora seguir ao Supremo Tribunal Federal para análise do agravo, e todo o caminho delineado acima pode ser repetido no Supremo: a possibilidade de agravo regimental com a denegação do agravo (artigo 317, RISTF), os embargos de divergência (artigo 330, RISTF) e sempre (decisões colegiadas ou monocráticas) os embargos de declaração (artigo 337, RISTF) e outros embargos de declaração.”
Se essa situação é injusta em geral, nos casos de corrupção – isto é, roubo de dinheiro público – atinge o absurdo, de tanta injustiça, pois o dinheiro que o condenado usa para escapar da punição, pagando advogados que fazem infinitos recursos, é o dinheiro que ele roubou da coletividade. Assim, ele usa o dinheiro pilhado da sociedade para burlá-la mais uma vez, ao escapar da pena.
CONSTITUIÇÃO
Apenas mencionaremos de passagem o problema teórico, considerado pelo juiz Barbagalo e por Raquel Dodge, de que uma “decisão condenatória penal”, na realidade, jamais é completamente transitada em julgado, pois sempre a pena poderá – pelo menos teoricamente – ser alterada (inclusive por anistia, por indulto, porque a conduta que motivou a condenação deixou de ser crime previsto na lei ou por revisão do caso).
Essa questão é tão antiga, nota Barbagalo, que sua formulação no Brasil foi de um jurista do século XIX, Pimenta Bueno, o marquês de São Vicente (cf. Barbagalo, op. cit., p. 98).
Apesar da observação ser procedente – e pertinente ao nosso assunto -, trata-se de algo geral, pertencente à filosofia do Direito, e não algo específico da situação após a Constituição de 1988, que é o que nos ocupa.
O célebre Nelson Hungria, que também foi ministro do STF, disse que “uma lei não pode ser analisada abstraindo-se o regime jurídico-político em que ela foi promulgada” (STF, AR 154/DF, Pleno, 13/04/1953, in Luciano Felício Fuck, “Memória jurisprudencial: Ministro Nelson Hungria”, STF, Brasília, 2012, p.141).
Realmente, o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição de 1988 (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”) é característico de sua época, logo após a derrubada da ditadura.
Como disse o ministro Cezar Peluso, não existia dispositivo semelhante em nenhuma das Constituições anteriores do Brasil:
“… é muito interessante rever a história da redação desse inciso, porque o artigo 43, § 1.º, do Anteprojeto [de Constituição] dizia o seguinte: ‘Presume-se inocente todo acusado, até que haja declaração judicial de culpa’. O deputado constituinte, que depois foi governador do estado do Espírito Santo, José Inácio Ferreira, apresentou emenda que resultou na redação atual do inc. LVII, onde se estatui, com outras palavras, que ninguém – ninguém – será considerado culpado, até que lhe sobrevenha sentença condenatória definitiva” (Antonio Cezar Peluso, “Presunção de inocência”, VI Encontro AASP, RBA, vol. 1, abril-junho 2016, pp. 231 a 245).
Como frisa o próprio Peluso – um defensor da jusrisprudência de 2009, que impediu por sete anos a prisão após a condenação em segunda instância – “nossa Constituição é o único ordenamento jurídico [do mundo] que revela essa amplitude da garantia, pois, introduzindo o vocábulo ‘ninguém’, não a restringiu ao réu do processo penal”.
É óbvio que, nessa redação, estavam implícitas as lembranças de um tempo em que as pessoas eram presas sem processo, sem direito à defesa ou advogado, incomunicáveis durante longos meses, torturados e/ou assassinadas.
No entanto, como nota Raquel Dodge, mesmo assim, o texto constitucional não proíbe a execução da pena – por exemplo, a prisão – após a condenação em segunda instância.
Ou, nas palavras do ministro Teori Zavascky:
“… a execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária [ou seja, recursos ao STF] não compromete o núcleo essencial do pressuposto da não-culpabilidade, na medida em que o acusado foi tratado como inocente no curso de todo o processo ordinário criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes, bem como respeitadas as regras probatórias e o modelo acusatório atual.
“Não é incompatível com a garantia constitucional autorizar, a partir daí, ainda que cabíveis ou pendentes de julgamento de recursos extraordinários, a produção dos efeitos próprios da responsabilização criminal reconhecida pelas instâncias ordinárias” (cf. voto HC 126.292/SP, 17/02/2016, p. 8).
Após a condenação em segunda instância, diz Zavascky, “parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência até então observado” (idem, p. 7).
Tanto isso é verdade, continua o ministro, que a Lei da Ficha Limpa é exatamente – e explicitamente – um caso desse tipo, em que a inelegibilidade do candidato ocorre após a condenação em segunda instância.
Zavascky observa que “não é diferente no cenário internacional. Como observou a Ministra Ellen Gracie (…), ‘em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa, aguardando referendo da Corte Suprema’”.
É notável a elegância com que o falecido ministro Teori Zavascky tratou, então, a tese contrária:
“Sustenta-se, com razão, que podem ocorrer equívocos nos juízos condenatórios proferidos pelas instâncias ordinárias. Isso é inegável: equívocos ocorrem também nas instâncias extraordinárias. Todavia, para essas eventualidades, sempre haverá outros mecanismos aptos a inibir consequências danosas para o condenado, suspendendo, se necessário, a execução provisória da pena. (…) havendo plausibilidade jurídica do recurso, poderá o tribunal superior atribuir-lhe efeito suspensivo, inibindo o cumprimento de pena. (…) mesmo que exequível provisoriamente a sentença penal contra si proferida, o acusado não estará desamparado da tutela jurisdicional em casos de flagrante violação de direitos” (idem, p. 16, grifo nosso).
O CÓDIGO
Por fim, em 2011 – portanto, já no governo Dilma – aprovou-se a Lei nº 12.403, que alterou o Código de Processo Penal (CPP), inclusive dando ao artigo 283 a seguinte redação:
“Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva” (grifos nossos).
Onde a Constituição fala “ninguém será considerado culpado”, aqui substituiu-se por “ninguém poderá ser preso”.
Como argumenta a procuradora Raquel Dodge, não é a mesma coisa – apesar de ser este o sentido dado por Eros Grau em seu voto, que motivou a jurisprudência de 2009.
Mas o interessante é que essa alteração do Código de Processo Penal somente foi aprovada mais de duas décadas após a aprovação da Constituição. Na verdade, sob o pretexto de adaptar o CPP à Constituição, o que se colocava na lei era a jurisprudência de 2009, do STF, apesar desta, na época, ter apenas dois anos.
No entanto, como enfatizaram os ministros Teori Zavascky e Luís Roberto Barroso, “naturalmente, não serve o art. 283 do CPP para impedir a prisão após a condenação em segundo grau quando já há certeza acerca da materialidade e autoria por fundamento diretamente constitucional; afinal, interpreta-se a legislação ordinária à luz da Constituição, e não o contrário…” (cf. STF, ARE 964.246, 10/11/2016, p. 23, grifo nosso).
Nas palavras do ministro Luís Roberto Barroso, no julgamento desse mesmo recurso:
“… a Constituição brasileira não condiciona a prisão – mas sim a culpabilidade – ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória. O pressuposto para a privação de liberdade é a ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, e não sua irrecorribilidade.
“Para chegar a essa conclusão, basta uma leitura sistemática dos incisos LVII e LXI do art. 5º da Carta de 1988, à luz do princípio da unidade da Constituição. Enquanto o inciso LVII define que ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória’, logo abaixo, o inciso LXI prevê que ‘ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente’. Assim, é evidente que a Constituição diferencia o regime da culpabilidade e o da prisão” (grifos nossos).
E, mais ainda, considera o ministro Barroso:
“… a presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes. No caso específico da condenação em segundo grau de jurisdição, na medida em que já houve demonstração segura da responsabilidade penal do réu e finalizou-se a apreciação de fatos e provas, o princípio da presunção de inocência adquire menor peso ao ser ponderado com o interesse constitucional na efetividade da lei penal para a proteção dos bens jurídicos tutelados pelo direito penal, como a vida, a segurança e a integridade física e moral das pessoas” (grifo nosso).
Barroso fundamenta este seu voto no caput do artigo 5º da Constituição (“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”), em seu inciso LXXVIII (“a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”) e no artigo 144, que garante o direito à segurança pública.
Mas ele esclarece mais ainda a questão, do ponto de vista prático, no seguimento do voto:
“… defendi a ocorrência de uma mutação constitucional, que se operou sob o impacto traumático da própria realidade que se criou após a primeira mudança de orientação em 2009.
“Com efeito, a impossibilidade de execução da pena após o julgamento final pelas instâncias ordinárias produziu três consequências muito negativas para o sistema de justiça criminal.
“Em primeiro lugar, funcionou como um poderoso incentivo à infindável interposição de recursos protelatórios. Tais impugnações movimentam a máquina do Poder Judiciário, com considerável gasto de tempo e de recursos escassos, sem real proveito para a efetivação da justiça ou para o respeito às garantias processuais penais dos réus. No mundo real, o percentual de recursos extraordinários providos em favor do réu é irrisório, inferior a 1,5%.
“Em segundo lugar, reforçou a seletividade do sistema penal. A ampla (e quase irrestrita) possibilidade de recorrer em liberdade beneficia sobretudo os réus abastados, com condições de contratar os melhores advogados para defendê-los em sucessivos recursos. Em regra, os réus mais pobres não têm dinheiro (nem a Defensoria Pública tem estrutura) para bancar a procrastinação.
“Em terceiro lugar, o novo entendimento contribuiu para agravar o descrédito do sistema de justiça penal junto à sociedade. A necessidade de aguardar o trânsito em julgado para iniciar a execução da pena conduz massivamente à prescrição da pretensão punitiva ou ao enorme distanciamento temporal entre a prática do delito e a punição definitiva. Em ambos os casos, produz-se deletéria sensação de impunidade, o que compromete os objetivos da pena, de prevenção especial e geral.
“Um sistema de justiça desmoralizado não serve ao Judiciário, à sociedade, aos réus e tampouco aos advogados”.
Barroso, antes do STF, era um dos principais advogados do país.
O ministro, neste voto, acrescenta que “de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), somente nos anos de 2010 e 2011, a Justiça brasileira deixou prescrever 2.918 ações envolvendo crimes de corrupção e lavagem de dinheiro”.
O que é complementado por números aduzidos pelo ministro Teori Zavascky:
“… em pesquisa que determinei fosse realizada nos registros do Tribunal, relativamente ao período de 2009 até março de 2016 (período em que o Tribunal adotou a tese agora reconsiderada), de 22.610 recursos extraordinários e agravos em recursos extraordinários em matéria criminal, somente obtiveram êxito 1,7%, a maioria em favor da acusação. Apenas 0,48% foi favorável à defesa, e, mesmo assim, envolvendo temas perfeitamente suscetíveis de dedução em habeas corpus, com muito mais eficácia e celeridade” (grifos nossos).
OS BONS E OS ESPERTOS
A questão do artigo 283 do Código de Processo Penal é também abordada pela procuradora geral, Raquel Dodge, em seu recente parecer, onde considera que a redação dada a esse artigo pela lei de 2011 é, meramente, inconstitucional, porque “ao vedar a execução provisória da pena antes do trânsito em julgado da condenação, extrapola a presunção de inocência após o duplo grau de jurisdição, que é a garantia do artigo 5º-LVII da Constituição, na medida em que, ao fazê-lo, põe em risco a eficácia da tutela penal, deixando desprotegidos outros bens jurídicos que o Estado deve proteger”.
Sucintamente: a redação da Constituição (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”), só pode ser entendida dentro do sistema de “duplo grau de jurisdição”, que é o nosso.
A culpabilidade ou não de um acusado é determinada pela segunda instância. Daí a execução da pena, conferida ao réu, após sua condenação por essa segunda instância, já que não existe outra que determine sua culpa ou inocência.
“A lei não regulamenta a norma da Constituição. Por isso, o artigo 283 do Código de Processo Penal não é inteiramente compatível com o artigo 5º-LVII da Constituição”.
Aponta ela que o o princípio da presunção de inocência, que é a essência do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição, do ponto de vista histórico, foi tomado:
a) da Declaração do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa de 1789, que inverteu o princípio do direito feudal, onde cabia ao acusado provar sua inocência – portanto, a presunção era de que ele fosse culpado. O texto dos revolucionários franceses é o seguinte: “Todo homem deve ser presumido inocente, e se for indispensável detê-lo, todo rigor que não seja necessário, deve ser severamente reprimido por lei”.
b) da Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU: “Todo homem tem direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade seja provada de acordo com a lei, em julgamento público, com todas as garantias da defesa”.
Esses dispositivos, que foram a fonte daquele que está na Constituição do Brasil, não pretendem, evidentemente, que o condenado só possa ser preso após não haver nenhum recurso contra a sentença.
É, inclusive, correta a afirmação da procuradora de que “no limite, caso a lei amplie demasiadamente o que seja ‘tratar alguém como culpado’, toda e qualquer medida adotada em face de alguém durante a investigação ou na ação penal seria inconstitucional, já que em certa medida coloca o indivíduo no mínimo sob suspeita. (…) É inexorável que o processo penal seja integrado por medidas restritivas de direitos do investigado ou réu, que se justificam quando sobre ele pairam suspeitas que exigem investigação, para proteger direitos de terceiros. Se a lei vedasse a investigação ou a ação penal com base no caráter absoluto da presunção de inocência comprometeria a efetividade da tutela penal a ponto de levar à ‘total inoperância do sistema, notadamente o criminal-constitucional’”.
Este é, exatamente, o lado jurídico-social do problema: não se pode garantir a suposta presunção de inocência de alguém às custas dos direitos de toda a sociedade. Nem a Constituição pode sustentar tal pretensão. A presunção de inocência é algo a favor da sociedade, ou seja, das pessoas que a compõem. Não pode ser um instrumento contra ela, um instrumento antissocial, que protege criminosos da Justiça – ou seja, da coletividade.
Estamos de acordo com o juiz Sérgio Fernando Moro em que o combate à corrupção é uma luta social e não apenas judicial. O que a Justiça pode fazer é punir os culpados. Mas, erradicar a corrupção – mesmo, limitá-la – é uma questão política que cabe ao povo brasileiro resolver.
No entanto, nem por isso, nessa luta, é pouco importante o papel da Justiça, do Ministério Público – e, certamente, o da polícia.
Em 2016, o ministro Luís Alberto Barroso disse, no julgamento que restabeleceu a jurisprudência do STF sobre as prisões após a condenação em segunda instância:
“Atualmente (…) permite-se que as pessoas com mais recursos financeiros, mesmo que condenadas, não cumpram a pena ou possam procrastinar a sua execução por mais de 20 anos. Como é intuitivo, as pessoas que hoje superlotam as prisões brasileiras (muitas vezes, sem qualquer condenação de primeiro ou segundo graus) não têm condições de manter advogado para interpor um recurso atrás do outro. (…) A alteração da compreensão do STF acerca do momento de início de cumprimento da pena (…) produzirá um efeito republicano e igualitário sobre o sistema.
“Não se trata de nivelar por baixo, mas de fazer justiça para todos. Note-se, por exemplo, que a dificuldade em dar execução às condenações por crimes que causem lesão ao erário ou à administração pública (e.g., corrupção, peculato, prevaricação) ou crimes de natureza econômica ou tributária (e.g., lavagem, evasão de divisas, sonegação) estimula a criminalidade de colarinho branco e dá incentivo aos piores. Como escrevi em recente texto acadêmico:
“Outro elemento de fomento à corrupção é a impunidade. As pessoas na vida tomam decisões levando em conta incentivos e riscos. O baixíssimo risco de punição – na verdade, a certeza da impunidade – funcionava como um incentivo imenso à conduta criminosa de agentes públicos e privados. Superar este quadro envolve mudança de atitude, da jurisprudência e da legislação. (…) O enfrentamento da corrupção e da impunidade produzirá uma transformação cultural importante no Brasil: a valorização dos bons em lugar dos espertos”.
Boa tarde! Super interessante mas não li nenhuma gravação onde o ex presidente Lula é pego, em quatro anos de investigações, não tem dinheiro, conta e nem gravação? E pq a seletividade se o FHC tem contas no exterior? Todos com provas estão soltos. E não tem foro privilegiado. Não entendo
Não é tão difícil assim. Dinheiro, aliás, é o que não falta. Mas continue lendo o HP que você vai entender. Pode começar por “O triplex não é meu” ou as provas que Lula garante que não existem. Depois, a senhorita pode ler, também, Uma pequena compilação das provas contra Lula (só no caso do triplex). Depois, bem, o resto é com você. Um abraço.