(HP, 16/11/2016)
CARLOS LOPES
Um dos fenômenos mais característicos – ainda que mais monstruosos, na mais justa acepção da palavra – dos últimos dias, é a imensa choradeira de petistas (com as raríssimas exceções que enfatizam, pela própria raridade, o pranto dos outros) pela derrota de Hillary Clinton nas eleições presidenciais norte-americanas.
Não se trata de uma lamentação pela eleição de Trump – o que não seria, evidentemente, despropositado. Ao contrário, até Dilma saiu de seu túmulo político para falar da “dignidade” de Hillary porque não articulou um “processo golpista de impeachment” – apesar de Trump ainda não ter tomado posse da Casa Branca.
Mas Dilma, dirá o desconfiado leitor, deve ser, em doidice, um ponto fora da curva (?!) até mesmo entre os petistas. Pelo jeito que a defendem, certamente, não. Menos ainda nessa questão.
Diz um conhecido candidato a prócer petista: Hillary era “de esquerda”. Uma economista que gravita quase na mesma órbita, falou em “resultado trágico” das eleições dos EUA, como se a eleição de Hillary fosse alguma porta de acesso ao Paraíso. Outro – este um social-acadêmico – depois de dizer que a derrota de Hillary é uma “tragédia”, prova da “ofensiva de direita” que, supostamente, varre o mundo (por obra da natureza, certamente…), ainda acrescentou que a Globo fez campanha pelo Trump, refletindo a mídia dos EUA.
Essa gente parece maluca (e talvez seja). Se existe algo evidente – e escandaloso – é a propaganda eleitoral, enganosa, de Hillary, em que se transformaram os “noticiários” da mídia dos EUA, inclusive os da Globo. Mas esse pessoal está em outro mundo ou tem a crença de que pode dizer qualquer coisa, que os outros acreditarão. Como se viu nas “narrativas” sobre o suposto golpe que tirou Dilma do Alvorada, o provável é que predomine esta última ilusão.
No entanto, é notório que Hillary Clinton foi o exu sanguinário por trás (ou pela frente) do massacre da Líbia, país, então, de mais alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da África, mais alto que o do Brasil, e hoje reduzido a um campo de assassinatos, tortura, escombros e miséria – com a emigração de milhões de pessoas, que hoje caminham pela Europa.
Hillary foi, também, a arquiteta (Deus!) da destruição da Síria, com a organização de grupos mercenários terroristas, depois que Bashar al-Assad recusou que seu país fosse atravessado por um oleoduto para fornecer petróleo barato às potências imperialistas.
Por coincidência, o Qatar, onde começaria esse oleoduto, é um dos principais financiadores da Fundação Clinton.
O outro grande financiador dessa fundação é a Arábia Saudita, também interessada no oleoduto. Também por coincidência, Huma Abedin – a assessora favorita, cujo marido pedófilo conservava 650 mil e-mails de Hilllary em seu laptop – tem “conexões muito íntimas” com os sauditas e a Irmandade Muçulmana (seu irmão, Hassan, é empregado de Yusuf al-Qaradawi, um dos ideólogos da Irmandade). Além disso, o chefe da campanha de Hillary, John Podesta, “é lobista, muito bem remunerado, da Arábia Saudita em Washington” (cf. Pepe Escobar, “What does it take to bring Hillary Clinton to justice?”, Sputnik News, 03/11/2016).
Porém, é claro, não poderia faltar a indefectível conexão com a CIA:
“John Podesta também é o fundador do Center for American Progress – uma operação de George Soros e campo de recrutamento para funcionários do governo Obama, incluindo funcionários do Tesouro dos EUA que decidiram quais gigantes financeiros da elite Too Big To Fail (TBTF) seriam salvos. DCLeaks.com, por sua vez, ligou as fundações da Soros Open Society a redes de financiamento global que levam diretamente à subversão de governos e à mudança radical de regimes (obviamente poupando os doadores da Fundação Clinton)” (cf. Pepe Escobar, art. cit.; para o leitor interessado nos documentos, consultar http://soros.dcleaks.com/).
As fundações de Soros, um fugitivo da Hungria, surgiram como fachadas da CIA para ação contra os países socialistas do Leste Europeu. Pelo jeito, Soros não largou o vício.
Nem Hillary. Não nos estenderemos sobre os bombardeios à população civil de Belgrado e Novi Sad, durante 78 dias, com milhares de mortos e feridos, ideia martelada insistentemente por Hillary, em 1999, como demonstrou Diana Johnstone. Nem sobre o que significa, do ponto de vista do caráter, a manipulação do escândalo Lewinsky pela própria Hillary, para forçar seu ilustre marido a bombardear os iugoslavos (cf. Diana Johnstone, “Queen of Chaos: The Misadventures of Hillary Clinton”, CounterPunch, 2015, e “Fools’ Crusade: Yugoslavia, Nato, and Western Delusions”, Monthly Review Press, NY, 2003).
Apenas mencionaremos a deposição do presidente Zelada, em Honduras, a sustentação dos nazistas na Ucrânia para implantar uma ditadura no país, e, como senadora, a euforia pelo mar de sangue no Iraque.
Ou a sugestão (?) de assassinar Julian Assange, para impedir a divulgação de seus e-mails ilegais pelo Wikileaks: “Nós não podemos apenas dronar este cara?” (“Can’t we just drone this guy?”), disse ela, no dia 23/11/2010, à cúpula do Departamento de Estado.
CHORADEIRA
Bem, leitores, considerando esses fatos – mais que conhecidos – o que explica a choradeira petista por Hillary?
Acontece que, em primeiro lugar, há muito que eles resolveram se submeter às matrizes imperialistas – isto é, à casta que sufoca os EUA – e deixar de veleidades anti-imperialistas, se é que algum dia tiveram alguma.
A recepção de Dilma a Obama, no Brasil, ou sua viagem aos EUA, ambos de um puxa-saquismo indecente – somente superado pelo ridículo de sua babaquarice (“Acabei de voltar do futuro”, disse ela ao sair do carro sem motorista do Google; e nem vamos falar de suas mesuras diante daquele cara cuja grande invenção na vida foi o Facebook) – são sintomas agudos dessa opção pela subserviência.
Muitos já apontaram que o PT jamais teve um projeto nacional para o Brasil. Resta dizer que a sua ideia de país desenvolvido é, há muito, os EUA. Não que eles pretendam que o Brasil deva ser igual aos EUA, pois acham que não temos essa capacidade. Pelo contrário, pretendem que o nosso desenvolvimento tenha por base o dinheiro dos EUA e outros países imperialistas. Ou seja, pretendem que o único “desenvolvimento” possível é um “desenvolvimento” dependente dos EUA, de seus monopólios e cartéis – exatamente como Fernando Henrique pregava, e com resultados finais semelhantes, senão mais horrendos.
Daí, a fascinação do sr. Mantega e da cúpula do governo com o investimento direto estrangeiro (IDE). Resultado: os US$ 707 bilhões e 307 milhões, que entraram no país entre 2003 e 2015, serviram para afundar o crescimento, ao desnacionalizar empresas em massa, liquidando com uma parte imensa da indústria. Serviram para quebrar o país, ao multiplicar por 4 a média anual de remessas de recursos para o exterior e por 3 a média anual das importações – e note o leitor que esse aumento foi em cima do já estúpido aumento (tanto nas remessas quanto nas importações) efetuado no governo Fernando Henrique.
É essa submissão que explica o primeiro estelionato eleitoral do PT, logo após a posse de Lula, em 2003, quando abandonou, sem remorsos, o programa defendido durante a campanha. Se isso foi especialmente sensível em algumas áreas (por exemplo, na geração, transmissão e distribuição de eletricidade), foi pior, por exemplo, na política financeira, com o aboletamento de um funcionário do BankBoston no Banco Central – o mesmo Meirelles que Lula queria no Ministério da Fazenda de Dilma (sugestão, aliás, acatada por Temer).
Foi preciso que Palocci e outros gênios propiciassem a quase derrubada do governo – a crise do “mensalão” jamais teria tomado as proporções que tomou, se não fosse a impopularidade da política econômica – para que o governo Lula implementasse o PAC, e, mesmo assim, com uma quase catástrofe em 2009, devido à manutenção de juros altíssimos após a eclosão da crise dos EUA e demais países imperialistas.
O outro lado dessa submissão, nítido em seu caráter colonial, foi a pendura do país no mercado externo de commodities (sobretudo soja e minério de ferro), hoje um ramo da especulação financeira internacional.
É sintomático, também, que a corrupção dos Clinton não cause um arrepio em seus paladinos petistas. No ano passado, quando Peter Schweizer publicou “Clinton Cash”, Hillary e seu círculo acusaram o autor de servir a uma conspiração de direita contra a candidatura de Hillary.
No livro, estão bem documentadas as propinas auferidas pelos Clinton por negociatas em Ruanda, Nigéria, Sudão do Sul, Haiti, Colômbia, Canadá (TD Bank), Suécia (Ericsson), Índia – além, evidentemente, dos EUA – usando o cargo de secretária de Estado, trampolim de Hillary, agora fracassado, para a Casa Branca.
Schweizer ressalta que, antes do fim de 2008, quando Obama anunciou a nomeação de Hillary para secretária de Estado, os maiores contribuintes – em dezenas de milhões de dólares – da Fundação Clinton eram as oligarquias feudais da Arábia Saudita, Kuwait e Emirados Árabes Unidos.
Um capítulo especialmente interessante é sobre as “conferências” (Schweizer as chama de “speeches”, ou seja, discursos) pagas de Bill Clinton, como seu preço aumentou estupidamente após a nomeação de sua cara-metade por Obama, e como as decisões de Hillary no governo mostram uma clara relação com as palestras do marido e seu preço (cf. P. Schweizer, “Clinton Cash: The Untold Story of How and Why Foreign Governments and Businesses Helped Make Bill and Hillary Rich”, HarperCollins Publishers, NY, 2015, cap. 7) .
A lista das empresas que pagaram por esses “discursos” já é, em si, um escândalo. Entre elas: Goldman Sachs, UBS, JP Morgan, além da Ericsson (que foi excetuada da proibição de negociar no Irã, após pagar US$ 750 mil por um “discurso” de Bill Clinton).
Um caso modelar é o do TD Bank. Esse banco com sede no Canadá – estranhamente parecido com o BTG Pactual do sr. Esteves – pagou US$ 1,8 milhão a Clinton por “discursos”, entre o fim de 2008 e o primeiro semestre de 2010, com a secretária de Estado fazendo intenso lobby (inclusive com um esquisito parecer oficial) a favor de construir o oleoduto Keystone XL, entre Alberta (Canadá) e o Golfo do México, do qual o TD Bank era o financiador – na prática, dono. Um professor da Columbia University fez um comentário interessante sobre esses discursos de Clinton: “Não tenho certeza se é importante que esses discursos tenham sido pronunciados na banheira dos Clinton. O que importa é que pagaram por eles” (Peter Schweizer, op. cit.).
Infelizmente, para Hillary, a “narrativa” da “conspiração de direita” não apagou as provas expostas por Schweizer – e o que aconteceu depois confirmou o conjunto das denúncias. Sobre isso, o leitor ver o documentário baseado no livro, com narração do próprio autor, já legendado em português: https://youtu.be/PxpTIdfI-1U.
Por que essa corrupção abissal, em que os Clinton mudam sua opinião dependendo do dinheiro que entra – e cujo aspecto mais aparente (ainda que não exclusivo) é a Fundação Clinton e as palestras remuneradas do sábio polo masculino da família – não escandaliza os petistas?
Porque, há muito, o PT, apesar dos bem intencionados que ainda vagam sob a sigla, se transformou em algo muito, mas muito, parecido.
Não são apenas as palestras de Lula, que tomaram por modelo (confessadamente) o venerável Clinton. O esquema de propinas dos Clintons é muito parecido com o esquema que o PT abrigou na Petrobrás. Não por acaso, a cúpula do PT não achou que era um escândalo – e um crime – assaltar a Petrobrás para se perpetuar no poder, além de enriquecimentos e favores pessoais. Até hoje, para eles, o problema é o juiz Moro, não o seu próprio roubo.
De certa forma, a trajetória do PT se parece com a do Partido Democrata, exceto por um aspecto: não se pode dizer que o PT alguma vez tivesse uma fase progressista tão longa – com todas as oscilações, a partir de Truman – quanto o Partido Democrata desde a época de Franklin Delano Roosevelt até a derrota de Carter por Reagan, em 1980.
O PT era o partido que considerava a democracia, construída pela luta contra a ditadura, pior que a própria ditadura (nas palavras de Lula, em 1987, em Aracaju: “A Nova República é pior do que a velha, porque antigamente na velha república era o militar que vinha na televisão e falava, e hoje o militar não precisa mais falar porque o Sarney fala pelos militares ou os militares falam pelo Sarney”). Por isso, recusou-se a assinar a Constituição mais democrática que o país já teve. Ao contrário, ajudou a retalhá-la, sobretudo na supressão do capítulo, aprovado em 1988, sobre a ordem financeira, em que, depois da eleição e posse de Lula, apoiou, em 2003, o projeto Serra que eliminou essa parte da Constituição, substituindo-a por uma generalidade vazia.
Realmente, o PT sempre se pareceu mais com os “novos democratas” – como os chamou Loïc Wacquant, ao apontar o papel de Clinton no encarceramento em massa de pobres, especialmente negros, nos EUA:
“… o presidente sob o qual houve, de longe, o maior crescimento do encarceramento na história dos EUA (em números absolutos e pelo índice de crescimento da população carcerária, assim como quanto ao orçamento e ao pessoal) não foi Ronald Reagan, mas William Jefferson Clinton” (v. Loïc Wacquant, “Crafting the Neoliberal State: Workfare, Prisonfare, and Social Insecurity”, Sociological Forum, vol. 25, nº 2, June 2010).
Ou, em seu livro “As Prisões da Miséria”, de 1999:
“… enquanto Bill Clinton proclamava aos quatro cantos do país seu orgulho por ter posto fim à era do ‘big government’ e que, sob o comando de seu sucessor esperado, Albert Gore Junior, a Comissão de Reforma do Estado Federal dedicou-se a suprimir programas e empregos públicos, 213 novas prisões foram construídas – número que exclui os estabelecimentos privados que proliferaram com a abertura de um lucrativo mercado privado de carceragem. Ao mesmo tempo, o número de empregados apenas nas prisões federais e estaduais passava de 264.000 para 347.000, dos quais 221.000 guardas carcerários. No total, a ‘penitenciária’ contava mais de 600.000 empregados em 1993, o que fazia dela o terceiro empregador do país, atrás apenas da General Motors, primeira firma no mundo por sua cifra de negócios, e da cadeia de supermercado internacional Wal-Mart. De fato, segundo o US Census Bureau, a formação e contratação de guardas de prisão é, de todas as atividades do governo, a que cresceu mais rápido durante a década passada” (L. Wacquant, “As Prisões da Miséria”, trad. André Telles, Zahar, 2001).
IDENTIDADE
Esta é outra identidade entre o PT e os “novos democratas”: nunca houve tanta gente encarcerada no Brasil quanto entre 2003 e 2015. Temos, hoje, a quarta população carcerária do mundo, com 55% dos presos entre 18 e 29 anos de idade, 62% deles, negros – numa cópia triste daquilo que aconteceu nos EUA.
Pierre Bourdieu tinha razão, quando disse que a verdadeira política social do neoliberalismo, não é o “sopão”, mas a cadeia.
O que caracteriza os “novos democratas” (Clintons, Obamas, etc.) é a opção por disputar com os republicanos quem é que melhor satisfaz a voracidade dos grandes bandidos da especulação financeira: os JP Morgan Chase, dos Rockefellers, os Goldman Sachs, etc.
Se até Carter os democratas, com todos os seus problemas, pretendiam ser uma alternativa para o poder absoluto dos monopólios financeiros, a partir de Clinton sua cúpula tornou-se a mais oferecida serviçal desses monopólios – em nome, como esclareceu Clinton, da “globalização”.
Assim, não é surpresa que tenha sido Clinton – e não Bush – quem acabou com a regulamentação dos bancos, estabelecida por Roosevelt nos EUA desde a década de 30 do século passado, facilitando o desastre financeiro que em 2008 atirou o país na crise, da qual não mais emergiu.
Da mesma forma, foi Clinton quem substituiu, em 1996, as garantias sociais, que existiam desde o governo Roosevelt, por uma legislação “social” miserável, que faz lembrar – em mais de um aspecto – o bolsa-família.
Quanto a Obama, não precisamos demonstrar que seu governo se caracterizou por nenhum avanço para o povo dos EUA – pelo contrário: há sete anos não há um único aumento de salário mínimo, com Obama culpando os republicanos por aquilo que não fez quando podia fazer, além de uma “recuperação” marketeira que é apenas a manutenção crônica do desemprego. Quanto ao mundo, os assassinatos em massa ficarão como marca registrada desse governo.
Essa é a base (ou o fundo) da choradeira do PT por Hillary: uma profunda identidade na submissão aos monopólios financeiros. O que foi a política do PT, sobretudo nos últimos anos, senão uma disputa com os tucanos sobre qual é o melhor lacaio dos bancos?
A diferença é que o Brasil, país dependente, realmente não é os EUA, país imperialista.
Por isso, a malta de serviçais daqui é composta por capachos dos capachos de lá – tão capachos, que não lhes importa que sua musa esteja imersa em sangue até o pescoço, para usar uma expressão moderada.