GUSTAVO VEIGA*
45% da população de Porto Rico é pobre, enquanto que nos EUA a média nacional chega a 12%. A dívida pública da ilha está em mãos de capitalistas norte-americanos e os residentes no 51º Estado da União pagam impostos federais sem receber os benefícios do federalismo
A cena e seu desenlace político podem parecer de ficção nos EUA. Mas não, porque se trata de Porto Rico, um “Estado livre associado” cujo status encobre uma forma de colonialismo desde 1952. A cena se consistiu em centenas de milhares de pessoas que exigiram nas ruas de San Juan, sua capital, a renúncia do governador Ricardo Rosselló Nevares. O desenlace será sua saída do poder, prevista para 2 de agosto. A ilha que se autogoverna com uma soberania limitada – dependeria do Congresso dos Estados Unidos para declarar-se independente – é o último vagão de um país cujo presidente lhe dá as costas. O confirmam as conseqüências do furacão Maria que arrasou pessoas e bens em setembro de 2017. O pior em quase um século. Donald Trump não só negou a quantidade real de vítimas. Também acusou as questionadas autoridades locais por sua pronunciada crise econômica, agravada pelo fenômeno climático.
A história desmente o magnata. 45% da população de Porto Rico é pobre, enquanto que nos EUA a média nacional chega a 12%. A dívida pública da ilha – de cerca de 72 bilhões de dólares – está em mãos de capitalistas norte-americanos e os residentes no 51º Estado da União pagam impostos federais sem receber os benefícios do federalismo. E ainda, os porto-riquenhos puseram o corpo em todas as guerras que os Estados Unidos espalharam pelo mundo. Serviram em seus exércitos centenas de milhares, desde a Segunda Guerra Mundial até as excursões bélicas pelo Iraque e Afeganistão.
As principais empresas de serviços em Porto Rico são dos EUA: McDonalds, Kentucky, Home Depot, farmácias CVS, entre outras. A gestão de Rosselló Nevares – segundo o Centro de Jornalismo Investigativo local – estimulou a ganância de “multinacionais como Monsanto e promoveu a lei de Zonas de Oportunidade que reduz o pagamento de contribuições a investidores”. Os chats misóginos e homofóbicos do governador que renuncia e que lhe custaram o cargo, mais a corrupção que é atribuída a sua administração, explicam sua saída. Mas não a responsabilidade dos Estados Unidos na deriva de Porto Rico. Rosselló Nevares poderá ter que responder na Justiça pelos supostos delitos de “depravação, malversação de fundos públicos, negligência no cumprimento do dever e aproveitamento ilícito de trabalhos ou serviços públicos”, segundo o mesmo centro jornalístico.
Em abril passado, Francisco Martínez, um veterano economista da Universidade de Porto Rico, forneceu números chaves sobre a deterioração social da ilha durante um simpósio. Disse que 55 % das mulheres jovens de entre 18 e 24 anos estão abaixo do nível de pobreza e também 50 % dos homens. Um dado adicional corrobora o panorama: Mississipi, o Estado mais pobre dos EUA, tem uma entrada anual média por lar de 42.009 dólares, enquanto que na ilha ela chega a apenas 19.775, segundo o mesmo Martínez. Trump não pagou demasiados custos políticos por isso. Inclusive se atreveu a dizer que seu governo “tem feito um grande trabalho” na ilha para tirá-la de sua crise econômica.
O presidente foi ainda mais longe quando negou os números com a quantidade de mortos que o furacão Maria deixou. Nesse sentido se pareceu bastante com Rosselló Nevares. Em 28 de agosto de 2018, o governador de Porto Rico teve que render-se ante as evidências apresentadas por um estudo da Universidade George Washington. As vítimas fatais já não eram 64, como ele havia informado, e sim 2.975.
María de Lourdes Santiago é a atual vice-presidente do Partido Independentista Porto-riquenho. Em sua conta de Twitter escreveu na sexta-feira: “Sair de Ricky (o governador Rosselló Nevares) para ter Wanda (Vázquez Garced, sua sucessora) é como curar-se de dengue para contrair chikungunya”. Para a dirigente opositora “a opção de ser Estado e a anexação, não são atrativos para os EUA”. Embora parece que, muito menos, é a alternativa independentista. As grandes corporações estadunidenses seriam as primeiras a se opor – como o fizeram até agora – porque gozam de isenções impositivas por terem se instalado na ilha e pagam salários mais baratos que em outros Estados.
O lado militar também não é uma questão menor nesta relação assimétrica da nação mais poderosa do planeta e seu Estado livre associado mais pobre. Segundo um informe da rede Telesur que cita a opinião do jornalista local Luis De Jesús Reyes, Porto Rico sempre foi “um enclave geoestratégico nas pretensões dos EUA de manter seu controle militar no Caribe e América Latina”. Os Estados Unidos chegaram a ter seis bases militares, incluindo a maior base naval do mundo fora de seu território: a Roosevelt Roads, aberta em 1943 e fechada definitivamente em 2004. Porém, a mais questionada pelas suas conseqüências sobre o meio ambiente, com a utilização de material radioativo que elevou os índices de câncer, foi a de Vieques. Estava numa ilha que pertence ao arquipélago de Porto Rico. Os EUA tiveram que retirar-se em 2003 depois que os vizinhos da base começaram uma campanha de repúdio após o assassinato do jovem David Sanes Rodríguez. Era um soldado que fazia guarda quando, em 19 de abril de 1999, duas bombas caíram nas proximidades dele.
A localização estratégica da ilha tem sido mais que uma vantagem, um problema para seu progresso e integração aos EUA. Se a isso se soma a política em piloto automático de Washington, um governo como o de Rosselló Nevares – o primeiro governador que renuncia pela pressão popular -, calamidades como o furacão Maria e os informes lapidares da Anistia Internacional sobre a situação social, Porto Rico é um barco à deriva no mar das Antilhas. Segundo El Nuevo Día – o jornal local de maior circulação – dois anos depois do desastre climático, o Partido Novo Progressista, ainda no governo, pediu à Agência Federal para Gerenciamento de Emergências (Fema, sigla em inglês) que despache para a ilha milhares de toldos azuis de fibra reforçada. Seriam para substituir os quase 30 mil que estão em más condições. Eles ainda continuam colocados nas casas onde havia tetos que voaram durante o furacão.
* Matéria publicada no portal Página 12 com o título original de Porto Rico: último vagão da nação mais poderosa do mundo; tradução de Susana Lischinsky