A posse do ministro da Educação anunciado por Bolsonaro, Carlos Alberto Decotelli, foi adiada na segunda-feira, 29/06.
A cerimônia estava marcada para a terça, 30/06, mas o currículo acadêmico do ministro, desde o anúncio de sua nomeação, parece uma fieira de inconsistências – para usar um termo delicado.
A última foi comunicada em nota pela Universidade de Wuppertal, na Alemanha (Bergische Universitat Wuppertal), onde, segundo o currículo de Decotelli, ele teria obtido um “pós-doutorado”.
“O Prof. Dr. Carlos Decotelli”, diz a nota da universidade alemã, “se aproximou da Profa. Dra. Brigitt Wolf para uma estadia de pesquisa de três meses em janeiro de 2016. Até 2017, ela foi professora de teoria do design, com foco em metodologia, planejamento e estratégia na Universidade de Wuppertal e é agora emérita. Carlos Decotelli não adquiriu um título em nossa universidade. Ele não foi um pós-doc em nossa universidade. A Universidade de Wuppertal não pode se pronunciar sobre títulos adquiridos no Brasil” (grifo nosso).
A nota foi obtida pela TV Globo, que solicitou a informação em Wuppertal.
AR! MAIS AR!
Disse a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) que agora “não há previsão para essa cerimônia” de posse de Decotelli no Ministério da Educação.
Resta saber o seguinte: Bolsonaro é tão incompatível com a verdade, que não consegue anunciar um sujeito com um currículo minimamente confiável para o Ministério da Educação?
Parece.
A começar pela suposta informação de que Decotelli teria sido oficial da Marinha.
Decotelli, na verdade, fez um curso profissionalizante na Marinha, em 1969, quando tinha 20 anos de idade. Devido a esse curso, com duração de 250 horas, ele é segundo-tenente da reserva da Marinha (v. o currículo de Decotelli).
Em suma, ele foi tanto oficial da Marinha quanto são oficiais do Exército todos aqueles que cursaram o CPOR.
Mas, resumamos o caso.
Quando o país respirava um pouco melhor, depois que o teor de mau cheiro diminuiu, com a fuga de Abraham Weintraub para os EUA, descobre-se que seu anunciado sucessor no Ministério da Educação:
1) Falsificou seu próprio currículo acadêmico (o “Currículo Lattes”), declarando-se possuidor de um título de doutorado que nunca teve – e não somente nunca teve: foi reprovado, ao tentar consegui-lo.
2) Falsificou sua tese de mestrado, com um extenso plágio de um relatório da Comissão de Valores Imobiliários (CVM).
3) E que Decotelli também não tem título de pós-doutorado pela Universidade de Wuppertal, na Alemanha (Bergische Universitat Wuppertal).
Esta última informação, confirmada, como vimos, pela Universidade de Wuppertal, era de fácil dedução. Se Decotelli não tem doutorado, como poderia ter um “pós-doutorado”? Em geral os títulos acadêmicos têm uma lógica, uma hierarquia – até para que sejam respeitados.
Longe de nós a ideia de que o cidadão, para ser ministro, mesmo ministro da Educação, é obrigado a ter todos os graus e títulos acadêmicos do Planeta.
Mas deveria ter, pelo menos, aqueles que colocou em seu currículo.
Como se não bastasse o ex-ministro fugitivo, isto é, Weintraub, aquele que “em cinco anos de atividades acadêmicas na UNIFESP escreveu três artigos e orientou um TCC! Isso mesmo, leitor, um único e raro TCC de graduação em nove semestres letivos! E não participou de nenhuma banca, de graduação, mestrado ou doutorado… Além disto, dos três artigos que ele redigiu neste interregno (dois em coautoria com a esposa e um em coautoria com o irmão), um deles é a versão em inglês de outro publicado em português. Ou seja, na verdade, o professor que se transmutou em ministro publicou apenas dois trabalhos (um de oito páginas e outro de onze), nenhum de autoria exclusiva, e ainda os contou como se fossem três, em conduta ética bastante questionável academicamente, pois a prática é rejeitada por ser conhecida como ‘autoplágio’” (v. o artigo do professor Cássio Casagrande, “A improbidade do ministro Weintraub e a improdutividade do professor Weintraub”, HP 06/05/2019, grifos nossos).
NA ARGENTINA?
Vejamos agora o sucessor de Weintraub, o anunciado Decotelli.
Como são acusações gravíssimas – mais ainda para quem é ministro da Educação – resolvemos conferi-las.
Pela ordem, como se diz no parlamento, vejamos, primeiro, o caso do seu pseudo-doutorado.
No “Currículo Lattes” do sr. Decotelli, pode-se (ou podia-se) ler o seguinte:
Portanto, o ilustre ministro se dizia detentor de um “Doutorado em Administração” pela Universidade Nacional de Rosario, na Argentina (UNROS).
Segundo, ainda, declarava em seu currículo, Decotelli tornou-se “Doutor em Administração” ao defender a tese “Gestão de riscos na modelagem dos preços da soja”, em 2009, sob a orientação do professor e Dr. Antonio de Araújo Freitas Jr.
Tudo ficaria por isso mesmo – quem se importa com uma tese sobre a “modelagem” dos preços da soja ou da beldroega? – se o próprio Bolsonaro não tivesse, em seu anúncio da substituição de Weintraub por Decotelli, dito que:
Isso obrigou o professor Franco Bartolacci, reitor da Universidade Nacional de Rosario, instituição que foi citada por Bolsonaro como fonte do título de “Doutor”, supostamente “obtido em 2009” por Decotelli, a comunicar que:
“Nos vemos en la necesidad de aclarar que Carlos Alberto Decotelli da Silva no ha obtenido en @unroficial la titulación de Doctor que se menciona en esta comunicación.”
O governo sacou, então, um certificado da Universidade Nacional de Rosario, fornecido por Decotelli:
Como o leitor pode ver, o certificado diz que Decotelli “ha cursado la totalidad de las asignaturas de la Carrera de Posgrado ‘DOCTORADO EN ADMINISTRACIÓN’ dictada por la Facultad de Ciencias Económicas y Estadística de la Universidad Nacional de Rosario”.
Mas não diz que ele obteve o “Doutorado”.
Por quê? Se ele cursou e completou todos os créditos do curso de pós-graduação para o “Doutorado em Administração”, não se depreende que ele obteve o título de “Doutor”?
Não, esclareceu o reitor da Universidade Nacional de Rosario. Não se depreende.
Por quê?
Porque Decotelli foi reprovado. Por isso, apesar de frequentar e completar todos os créditos para o título de “Doutor”, não obteve esse título.
Ser reprovado num exame para doutorado é algo tão raro que nem, a princípio, acreditamos. Pelo menos, não conseguimos lembrar de nenhum outro caso.
Mas o reitor foi muito específico: “[Decotelli] apresentou uma versão escrita que foi julgada desfavoravelmente pelo júri e, portanto, não pôde fazer sua defesa oral” (cf. “Ministro da Educação foi reprovado em tese e não tem o doutorado que divulgava no currículo”, El País, 26/06/2020).
Ou seja, Decotelli nem chegou à defesa de tese diante da banca – levou pau antes disso.
Bem, depois disso, Decotelli mudou o seu currículo acadêmico.
Agora, no seu “Currículo Lattes”, pode-se ler:
Ainda é mentiroso, pois Decotelli ainda diz que tem “Doutorado em Administração” pela Universidade Nacional de Rosario, na Argentina (UNROS), inclusive com “ano de obtenção: 2009” (?), mas “sem defesa de tese” (??) e sem “orientador” (???).
Isso nos serve de introdução para a segunda descoberta sobre as atividades acadêmicas de Decotelli.
O PLÁGIO-MESTRE
As notícias sobre o plágio na dissertação de mestrado de Decotelli nos pareceram ainda mais inverossímeis que a do inexistente doutorado. Sobre este último, havia pelo menos um precedente: o “Currículo Lattes” de Dilma Rousseff, que informava um inexistente título de mestrado em economia pela Unicamp, até ser retificado, depois que a imprensa descobriu, em 2009, que a então futura presidenta frequentara o curso, mas não obtivera o título de mestrado.
Portanto, fomos dar uma lida na dissertação para mestrado de Decotelli, algo chamado “Banrisul: do Proes ao IPO com governança corporativa”, apresentada à Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Realmente, há trechos extensos que são iguais aos de um relatório da CVM sobre o Banrisul (v. aqui a íntegra desse relatório), sem nenhuma citação da fonte.
O ministro declarou que foi um “erro técnico”, pelo qual não foi citada a fonte dos trechos copiados do relatório da CVM.
Mas o que chama atenção é que esses trechos não são contínuos, mas inseridos no meio do texto escrito, presumivelmente, por Decotelli. Por exemplo, no trecho abaixo, o texto de Decotelli está destacado em itálico e o texto do relatório da CVM está destacado em negrito:
“Na permanente certificação e desenvolvimento dos empregados, foram investidos R$ 5,5 milhões em 1.146 cursos, somando 14.590 participações, num total de aproximadamente 183,7 mil horas de treinamento. Dentre eles destacamos o processo de certificação CPA-10 e CPA-20 da ANBID e ANDIMA, a formação de Gerentes de Negócios, formação de Analistas da Direção Geral e Supervisores. Nos programas de incentivo à participação em cursos de graduação, pós-graduação MBA e cursos de idiomas, dos quais foram inscritos 741 funcionários, o BANRISUL investiu R$ 1,8 milhões. Preocupado com a saúde e qualidade de vida de todos os colaboradores, além de proporcionar a Ginástica Laboral em todas as unidades de trabalho, o BANRISUL disponibiliza o Programa Fitness – Vivendo com Saúde. As programações realizadas no Fitness BANRISUL têm o objetivo de incentivar a prática de exercícios físicos entre funcionários e familiares. Foram realizados seis eventos ao longo de 2007, com a participação de 6.551 pessoas. O programa prevê a realização de torneios esportivos, exames de saúde preventivos, atividades”, etc.
Trata-se, portanto, de uma montagem, e não de uma citação.
A importância, como pesquisa acadêmica, dessa cópia de elogios ao Proes e à gestão do Banrisul após o Proes é, evidentemente, nenhuma.
Decotelli copiou trechos que não vão além da inteligência dos press-releases e passou-os como trabalho acadêmico, para obtenção de um título de mestrado.
Esse foi o seu nível de “pesquisa”.
Mas, para que passar textos que poderiam entrar, perfeitamente, como citações do trabalho, como se fossem seus?
Ora, leitor, para fazer volume – preencher 90 laudas não é fácil, mesmo em dois ou três anos, como duram os cursos de mestrado…
Além disso, se o objetivo é apenas conseguir algum prestígio – e não contribuir para o conhecimento de algum aspecto da realidade – para que se esforçar?
Já vimos coisas piores do que esta em algumas dissertações de mestrado.
Mas nenhum dos autores dessas “coisas piores” foi nomeado ministro da Educação.
Para tal indigência, é preciso um presidente tão nulo, raso, estúpido, quanto Bolsonaro.
RE-REVISÃO
Decotelli introduziu outra correção em seu currículo acadêmico na segunda-feira, depois que a Universidade de Wuppertal desmentiu o seu pós doutorado.
Agora, o texto passou a ser este:
“Tendo trabalhado como professor de gestão de riscos em derivativos no agronegócio em vários cursos no Brasil, construiu um projeto de pesquisa intitulado ‘Sustentabilidade e Produtividade na automação de máquinas agrícolas’, que foi submetido à Bergische Universitat Wuppertal, na Alemanha, tendo por base pesquisa específica que teve o apoio da empresa Krone (www.krone.de). Realizou o curso de Doutorado em Administração pela Universidade Nacional de Rosário (Argentina), tendo sido aprovado em todas as disciplinas dos créditos exigidos.”
Ou seja, desapareceu o pós-doutorado. Agora, ele apenas “construiu um projeto de pesquisa intitulado ‘Sustentabilidade e Produtividade na automação de máquinas agrícolas’, que foi submetido à Bergische Universitat Wuppertal, na Alemanha“.
Pois é… “submetido” para quê?
Se não foi para obter o pós-doutorado – pois, segundo a nota da universidade alemã, ele se apresentou lá como “doutor” – foi para quê? E a quem foi apresentado esse seu projeto?
Segundo a nota da Universidade de Wuppertal, Decotelli “se aproximou da Profa. Dra. Brigitt Wolf para uma estadia de pesquisa de três meses em janeiro de 2016“.
Portanto, é isso que ele chama de “submeter” seu suposto projeto “à Bergische Universitat Wuppertal, na Alemanha”.
Quanto à parte do texto sobre seu “doutorado” (“Realizou o curso de Doutorado em Administração pela Universidade Nacional de Rosário (Argentina), tendo sido aprovado em todas as disciplinas dos créditos exigidos“), ela continua mentirosa, pois omite o essencial: sua tese foi reprovada, nem conseguindo ele chegar à sustentação oral.
CARLOS LOPES
Parabéns Carlos Lopes, isso sim é jornalismo, muito bem documentado, demonstra bem a ginástica que foi feito para dá alguma ar de realidade ao currículo do professor. Mas confesso que o anterior era tão degradante que vi a indicação como um possibilidade de alguma melhora no MEC. Tempos difíceis este. Mas reitero que a matéria é impecável.
Parabéns.