A revista “Crusoé”, pelo seu posicionamento ideológico, é insuspeita quando se trata de Jair Bolsonaro – e outras figuras nesse extremo da política do país.
No entanto, mostrando, mais uma vez, que nem sempre o Barão de Itararé acertava (“De onde menos se espera, daí é que não sai nada”), a “Crusoé” publicou uma interessante matéria sobre os negócios do sr. Paulo Guedes, que Bolsonaro promoveu a mandachuva de sua campanha (“É quase como um casamento. Estou namorando o Paulo Guedes há algum tempo e ele a mim também. Somos separados”).
Guedes é um desses negocistas do “mercado financeiro” e do “mercado de ações”, com uma pós-graduação na Universidade de Chicago – a “universidade de Rockefeller” ou, como a chamou Upton Sinclair em um livro famoso, a “universidade da Standard Oil” (hoje, seria mais exato chamá-la de “universidade do JP Morgan Chase Bank”).
Não se trata, bem entendido, de um “apostador”: essa espécie de sujeito não “aposta” sem alguma informação, geralmente ilegal, ou, como é o caso, sem descarregar, também ilegalmente, os prejuízos em algum ente público.
Aqui, trata-se de um rombo de 12 milhões de reais no Fapes, fundo de pensão dos funcionários do BNDES. Em apenas dois dias, Guedes teve um ganho de R$ 600 mil às custas do Fapes.
A carreira de Guedes é, aliás, coerente com esse golpe: sócio-fundador do BTG Pactual, que, sob Lula e Dilma, esteve sempre por trás (ou pela frente) de pântanos corruptos como a Sete Brasil, Guedes é sócio ou membro do conselho de meia dúzia de fundos especulativos, alguns disfarçados por nomes como “GAEC Educação S.A.”, que controla oito universidades privadas no país, sob o nome-fantasia de “Anima”.
Reproduzimos, abaixo, pelo seu interesse para os nossos leitores, a reportagem da “Crusoé”. O leitor que preferir lê-la na publicação original pode acessar “O lucro do guru”.
C.L.
O lucro do guru
FILIPE COUTINHO
O Posto Ipiranga de Jair Bolsonaro aparece em situação incômoda nos autos de um processo recém-julgado pela Justiça Federal do Rio de Janeiro. Fundador do banco Pactual e um dos principais nomes do liberalismo no país, o economista Paulo Guedes, já anunciado pelo candidato do PSL como seu ministro da Fazenda caso saia vitorioso das eleições presidenciais, é citado como beneficiário de uma trama que, de um lado, rendeu lucros polpudos a alguns poucos investidores e, de outro, provocou perdas milionárias a associados de um fundo de pensão. De acordo com os documentos do processo, a empresa da qual Paulo Guedes é sócio juntamente com o irmão ganhou 600 mil reais em dois dias na Bolsa de Valores, graças a operações consideradas fraudulentas.
Crusoé teve acesso à íntegra do processo, incluindo um relatório da Comissão de Valores Mobiliários, a CVM, e a sentença judicial que concluiu que os ganhos derivam de um esquema criminoso. O caso é explicado em detalhes ao longo das 130 páginas da decisão do juiz Tiago Pereira, da 5ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro. Em 3 de julho, o magistrado condenou três dirigentes da corretora Dimarco a quatro anos e oito meses de prisão por gestão fraudulenta. A corretora, que fechou as portas em 2008, já havia sido multada pela própria CVM, pelas mesmas razões.
A fraude segue um roteiro parecido com a de outros escândalos do mercado financeiro. De um lado, havia um fundo de pensão, com seus burocratas complacentes e inúmeros cotistas que não acompanhavam de perto as transações. Era a Fapes, a fundação dos funcionários do BNDES. De outro, havia homens de negócios que lucraram à custa dos prejuízos da entidade. É aí que entra o guru de Bolsonaro. Paulo Guedes é citado, nominalmente, por quatro vezes na sentença que condenou os dirigentes da corretora. A empresa do economista, a GPG, é mencionada 27 vezes.
Como o foco estava na corretora, o processo não avança sobre Paulo Guedes, que não foi denunciado. Por isso, o juiz não avalia sua conduta. Mas o documento é categórico ao afirmar que as fraudes cometidas pela corretora beneficiaram o economista de Bolsonaro. A Justiça diz mais: os lucros de Paulo Guedes e de seu irmão não ocorreram simplesmente porque Guedes entendia de investimentos. Eles só foram possíveis, destaca o magistrado, porque, por detrás do pano, havia a ação criminosa da corretora.
Funcionava assim, em linhas gerais: a corretora, como responsável pelas opções de investimento do fundo de pensão e também de outros clientes como a empresa de Paulo Guedes, jogava alto na Bolsa e, a depender dos resultados, escolhia quem iria ganhar com suas apostas. O ano era 2004. Como o controle era falho, visto que as operações eram registradas manualmente, os lucros eram destinados a uns poucos e os prejuízos ficavam para a maioria. A empresa de Paulo Guedes e de seu irmão estava entre os poucos que lucravam. No fundo de pensão dos funcionários do BNDES, com 3.400 associados àquela altura, eram espetadas as perdas.
A GPG, dos irmãos Guedes, teve lucro em 100% das operações. Diz a sentença, citando a empresa e outros clientes da corretora apontados como beneficiários de esquema: “Como prova da atribuição ilícita de contratos em favor de clientes escolhidos pelos réus, é a constatação de que dois dos comitentes investigados, Franklin Delano Lehner e GPG Participações Ltda [empresa de Paulo Guedes],que apuraram ótimos resultados no mercado futuro de Ibovespa quando operaram pela Dimarco, em pregões com a participação da Fapes, tiveram, ao mesmo tempo, péssimos resultados quando realizaram transações análogas em outras corretoras, o que demonstra que o sucesso de suas transações não se poderia explicar, unicamente, por seu conhecimento e por sua capacidade de análise de mercado”.
Um trecho da sentença é especialmente relevante. Após mencionar os investidores que lucraram, o juiz Tiago Pereira diz, sem citar nomes, que embora não tenham sido incluídos como parte no processo, os clientes da corretora também acabaram por participar das fraudes. Para ele, “os beneficiados nas transações espúrias, sem dúvida alguma, participaram dolosamente do planejamento da ação criminosa e locupletaram-se de seus resultados”.
A GPG, usada para fazer os investimentos e para prestar consultorias no mercado financeiro, é uma empresa familiar. Gustavo Guedes tem 1% da sociedade. Paulo Guedes é dono dos 99% restantes. De acordo com uma testemunha ouvida no curso do processo, no caso dos investimentos suspeitos as ordens que levaram às transações realizadas pela Dimarco partiram do próprio Paulo Guedes.
As primeiras suspeitas sobre o caso surgiram após sucessivas auditorias da Bolsa de Valores apontarem a “impressionante desorganização” da Dimarco, com sede no Rio de Janeiro. As operações financeiras eram anotadas manualmente, num caderno, sem seguir as regras básicas da Bolsa. Havia até documentos rasurados e solicitações de investimentos sem ordem cronológica registrada.
De início, imaginava-se que poderia ser o caso de uma corretora desleixada, quase amadora, que sucessivamente descumpria as recomendações da fiscalização da Bovespa, atual B3. Mas o que se descobriu era uma fraude de cifras milionárias, envolvendo operações de risco altamente especulativas, no chamado mercado futuro do índice Bovespa.
Paulo Guedes, por exemplo, fez 17 operações de curto prazo e ganhou 600 mil reais em apenas dois dias, em 16 e 18 de agosto de 2004. No período das movimentações listadas no processo, o fundo do BNDES perdeu 12 milhões de reais. Os clientes apontados como beneficiários do esquema, Guedes incluído, faturaram ao todo 5 milhões.
Havia um padrão na bagunça na corretora. Nas mesmas operações em que os poucos clientes lucravam, o investidor que aparecia perdendo dinheiro era sempre a Fapes, cujo dinheiro era usado para, digamos, testar o potencial de lucro das transações. Se a operação fosse lucrativa, as ordens eram direcionadas para os escolhidos pela corretora. Em caso de perdas, ficava na conta da fundação. Tudo isso, claro, só era possível em razão dos pedidos de investimentos serem anotados manualmente, em cadernos. Os formulários das ordens não eram numerados e não continham o horário em que elas tinham sido emitidas.
Desde o começo, a CVM já tinha indícios da existência do esquema na Dimarco. Diz uma parte do material reunido no processo: “Quando os negócios realizados pela Fapes eram de venda e o mercado caía ou os negócios eram de compra e o mercado subia, e, nestas condições, se verificava a possibilidade de realização de day-trade lucrativo, os negócios com preços favoráveis que originalmente pertenciam à fundação possivelmente eram direcionados para um ou mais clientes da Dimarco”.
As operações na modalidade day-trade são aquelas de curtíssimo prazo. Em alguns casos, podem ser feitas em horas ou minutos. Um exemplo hipotético: o investidor compra 1 milhão de reais de manhã em ações de uma empresa e, naquela tarde, os papeis disparam 5%. Isso significa que, ao vender no mesmo dia, os ganhos podem chegar a 50 mil reais.
Na sentença do juiz Tiago Pereira, seis páginas são dedicadas às negociações de Paulo Guedes.
(Crusoé nº 20, 14/09/2018)
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