Chefe do departamento de queimados do Hospital de Restauração do Recife denuncia a superlotação causada pelo uso de álcool e querosene ao invés do botijão de gás
Dr. Marcos Barreto, diretor do departamento de Queimados do Hospital de Restauração de Recife, denunciou o aumento dos casos de queimados devido à utilização de combustíveis para cozinhar, que, no começo deste mês, ocuparam 90% dos leitos reservados para queimaduras no estado do Pernambuco.
“Não posso ficar calado quando vejo meus pacientes carentes chegarem com a família toda queimada”, denuncia. Ele também destaca que nesses casos “a recuperação dos pacientes muitas vezes é parcial, não é total. É um paciente que vai ficar meses, e, às vezes, anos, fazendo fisioterapia para tentar voltar às suas atividades”.
Com uma das maiores taxas de desemprego da história, o povo brasileiro também tem sofrido com reajustes sistemáticos de combustíveis, energia, água, e gás de cozinha.
A política de preços do gás de cozinha (GLP) passou a ser reajustada pela cotação do dólar e o preço internacional do produto. Essa política conduzida pelo governo provocou uma alta no ano passado de 67,8% nas refinarias para o envase em botijões de 13 quilos. Em cidades do Nordeste, como a capital pernambucana, Recife, a escassez do produto para a compra é grande. Como não há qualquer tabelamento da venda de gás, alguns comércios chegam a vender um botijão a R$ 150,00.
Na entrevista, concedida à Ana Nazaré, presidente da Federação das Mulheres de Pernambuco, que segue abaixo, o médico explica a situação que do estado e a importância da mudança da política nos preços do gás de cozinha, principalmente para a população mais carente.
Ana Nazaré: Você poderia relatar quando notou o crescimento deste tipo de caso?
Marcos Barreto: O que a gente viu foi o seguinte, no mês de fevereiro quando começou esse processo do aumento sistemático do preço do gás, começou a chegar para nós também o aumento de pessoas queimadas por utilização de álcool, álcool combustível, do posto, para cozinhar. Os pacientes afirmavam que não tinham condição de adquirir o botijão de gás. O botijão de gás estava começando a ter aumentos sistemáticos e as pessoas não tem aumentos sistemáticos, mensal, quinzenal.
Então eles sempre me diziam “olha doutor Marcos, o problema é que eu não tenho os R$ 42, R$ 43 ou R$ 50 para comprar o botijão, o aumento de dez reais para mim faz diferença, mas se eu tenho dez reais aqui, eu posso comprar de álcool e cozinhar por 2, 3, 4 ou 5 dias”, e são exatamente essas pessoas que são mais afetadas. São essas pessoas que estão expostas aos acidentes, porque elas não têm noção do risco que correm quando cozinham com o álcool, no reabastecimento do rechaud, que é a panelinha que eles usam pra por álcool dentro pra poder acender e cozinhar. Chegamos ao ponto aqui de eu ter paciente queimada em abastecimento de rechaud em restaurante.
Como foi a evolução desde então?
Em fevereiro eu cheguei a ter 65% das pacientes queimado por combustíveis, isso já me chamou a atenção. Então eu chamei a imprensa, chamei o hospital, fizemos uma coletiva, fizemos um trabalho de conscientização durante uma semana e eu comecei a fazer avaliações. No mês de abril, atendemos 198 pacientes queimados, dos quais 84 eram adultos, desses 28% foram vítimas de queimadura por combustíveis. No mês de maio atendemos 205 pessoas queimadas, desses 99 adultos, dos quais 35% queimados por combustível, gasolina álcool, a maioria cozinhando. No final de maio, com a paralisação dos caminhoneiros, o problema não era mais o preço do combustível, e sim a escassez, pacientes meus aqui dizerem que o botijão chegou a 150, 160 reais.
Já no início de junho eu tive 90% dos pacientes adultos internados na unidade de queimaduras queimados por combustíveis. Eu chamei novamente a imprensa, nós falamos, orientamos, mas continuam a chegar pacientes queimados com combustíveis enquanto cozinham.
Qual sua principal preocupação neste momento?
Eu cuido, junto com a minha equipe, dos pacientes queimados do estado de Pernambuco, temos 40 leitos. A grande preocupação deste momento é que o aumento dos casos de queimados ultrapassa a quantidade de leitos disponíveis. Nesse mês teve um momento que tínhamos 19 homens, para apenas 12 leitos disponíveis, tivemos que colocar sete deles no corredor da emergência, aguardando vaga para internar, é claro que isso não é o atendimento que precisamos dar.
O atendimento a queimados precisa de mais leitos. Mas esse é um dos serviços mais caros da instituição, por isso que os hospitais não querem abrir leitos para queimados. Porque é um paciente complexo, um paciente que precisa de muita dedicação, a demanda é muito grande, a equipe que cuida é uma equipe diferenciada, treinada para atendimentos de longo prazo, são fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos, etc. E esse doente é um doente que cria prejuízo em todos os sentidos, porque até a recuperação dele muitas vezes é parcial, não é total. É um paciente que vai ficar meses, e, às vezes, anos fazendo fisioterapia para tentar voltar às suas atividades.
O que pode ser feito neste momento?
Não posso ficar calado quando vejo meus pacientes carentes chegarem com a família toda queimada. É necessário alertar a população, para os perigos do manuseio de combustíveis, e alertar as autoridades no sentido de arranjar uma forma de minimizar o problema que está afetando principalmente as donas de casa das famílias mais carentes. Você não sabe o que é uma dona de casa chegam pra mim contando que tinha uma criança chorando de fome em casa e ela não ter o gás pra poder fazer o mingau. Aí ela usa álcool, arriscando a vida dela e de quem está perto dela, inclusive de incendiar seu domicílio, que normalmente é de baixa renda.
A gente tem que analisar que é o pessoal da periferia, são esses meus pacientes, não quem mora nos apartamentos da avenida beira mar. São pacientes que muitas vezes preferem ficar na instituição para conseguirem se alimentar, do que voltar pra casa pelas condições em que se encontram. Algumas me dizem: “doutor eu quero sair daqui boazinha, porque onde eu moro se eu chegar lá com esse curativo, amanhã ele está imundo de tanta poeira”. Essa situação é cada vez mais agravada com os abusos do aumento de gás.