A carta abaixo foi enviada por Edinho Silva, prefeito de Araraquara, do Partido dos Trabalhadores (PT), a uma liderança sindical que defende que não é possível a volta às aulas, no momento atual da pandemia de Covid-19.
Araraquara, no Estado de São Paulo, ficou conhecida, nas últimas semanas, como a experiência mais bem sucedida de combate à epidemia, mesmo antes que se pudesse dispor amplamente de vacinas. Esse sucesso foi devido, sobretudo, às medidas de restrição da circulação e da atividade econômica do município, tomadas pela Prefeitura (v. HP 13/03/2021, Araraquara reduz média de casos de Covid-19 em 43% após restrições de circulação e HP 11/04/2021, “Com medidas certas, a transmissão foi muito reduzida em Araraquara”, diz Mauro Bianco).
Araraquara estava à beira do colapso (v. HP 16/02/2021, Nova cepa e aumento das internações explicam restrições em Araraquara, diz secretária de Saúde e HP 02/03/2021, “Colapso vivido em Araraquara tem responsável e é Bolsonaro”, afirmam parlamentares).
Depois das medidas para evitá-lo, com a queda exponencial de casos de Covid-19, houve a volta progressiva de todos os setores econômicos e sociais, ainda que dentro das condições impostas pela epidemia.
Porém, na área da educação, continuaram as resistências – que o prefeito mostra, com dados, que são injustificadas – a voltar às aulas, prejudicando, antes de tudo, as parcelas menos favorecidas (e majoritárias) da população.
É sobre isso a carta de Edinho. Como ele aponta, em nenhum setor os protocolos, estabelecidos pela Prefeitura para proteção aos profissionais, são tão rigorosos quanto na educação.
Apesar disso, continuam as resistências.
Devido à sua importância e à sua argumentação, vazada em termos especialmente lúcidos, transcrevemos, para conhecimento dos nossos leitores, o texto do prefeito de Araraquara.
C.L.
Minha querida Rosângela, dirigente sindical, amiga e companheira de longa jornada,
Um desabafo, em defesa da vida, da educação.
Não dá. É assim que começo. Indignado. Definitivamente, não dá.
É muita incoerência. Araraquara controlou uma pandemia. Hoje temos menos de 10% de positivados das amostras coletadas. Suportamos todas as pressões negacionistas para superarmos o momento mais difícil que a cidade viveu. A ciência venceu. Venceu tanto que o governo Bolsonaro nos escolheu como “alvo”.
A mesma ciência diz que é possível, com cautela, retornar às atividades. A cidade não é formada de servidores públicos, de sindicalistas, de gente com estabilidade, de profissões submetidas ao teletrabalho. Na vida real, não. A cidade precisa retomar as atividades com protocolos e diminuindo os riscos de contaminação. Não existe nenhum lugar do mundo com isolamento social permanente. Isso não existe. Não é possível existir. A vida precisa voltar em outros parâmetros, mas precisa. É necessário.
Todos os dados científicos demonstram que a vacinação diminui a agressividade da doença, diminui os óbitos, mas não zera a letalidade, tampouco a contaminação. Portanto, vamos conviver com a Covid-19, e todas suas variantes, por um período longo, sem previsão de superação total.
O comércio voltou, shopping aberto, lojas de construção estão abertas, canteiros de obras, indústrias funcionando. Cinemas podem, bares podem, restaurantes podem, os eventos voltaram, tudo foi retomado para que “o novo normal” se estabelecesse, para que os empregos fossem salvos, a renda das famílias fossem salvas, a precarização não aumentasse. Essa é a vida real. Trabalhadores, famílias, nosso povo, precisa de trabalho e renda. Precisam buscar o sustento “com o suor do próprio rosto”. Isso gera dignidade.
Nossa Rede de Solidariedade, da Prefeitura, nosso programa de segurança alimentar, nossos projetos sociais foram e são importantes, fizeram e estão fazendo a diferença, mas as famílias querem viver com dignidade, trabalhando. Não podemos esquecer nunca qual é o nosso lado. Quem defendemos e o que queremos para o povo que sempre acreditou em nós. Viemos para ser instrumento de luta, principalmente para os excluídos. Para quem não tem voz.
Criamos, em Araraquara, uma regra rígida para o retorno seguro das atividades econômicas, sociais, de convívio e etc. Mas, em síntese, tudo está funcionando na cidade. E isso é bom. Muito bom. Até agora sem perdermos o controle das contaminações.
Absolutamente, tudo retornou. Até as academias, os clubes, as praças. Até o lazer, o que é justo, nosso povo precisa ter acesso ao lazer como política pública.
Estamos fazendo tudo orientados pela ciência. Na última sexta, ficamos o dia todo com a Organização Mundial de Saúde ajustando protocolos. As nossas medidas foram muito elogiadas. A OPAS e a OMS afirmam que somos parâmetro internacional. Que estamos muito avançados nos protocolos de controle da doença. Claro, esse trabalho tem que ser cotidianamente tenso e intenso.
Para colocar ciência nesse debate da educação: na educação fundamental, o número de estudantes em sala não ultrapassa 10%. No infantil é ainda menor, 5% dos matriculados.
Eu, pessoalmente, fui acompanhar toda a estrutura montada para a volta às aulas. Quero ver escolas particulares, supermercados, açougues, lojas, igrejas, agências bancárias, sindicatos, etc., que estejam mais preparados e com protocolos mais rígidos para reduzir os riscos da contaminação do que nossas unidades escolares.
Os números estão aí, 0,8% dos testados na educação foram positivados na nossa política de testagem em massa de educadores, profissionais e alunos. Portanto, menos de 1%. Na cidade, na população em geral, esse índice ontem foi de 7%. Cientificamente, não é na escola que as pessoas estão se contaminando.
Como que a educação, para quem não tem um computador em casa, não pode retornar? Para a criança que está se tornando analfabeta funcional não pode? Para a criança alijada brutalmente da educação não pode? Qual a racionalidade? Qual a lógica?
Qual o senso de justiça?
Sem a educação para os pobres vamos aprofundar o abismo social entre quem sabe e quem não sabe, entre quem tem, e terá, oportunidades e quem não tem, nem terá. Estamos, com um discurso totalmente corporativista, desconsiderando a vida real da imensa maioria do nosso povo, legitimando uma estrutura injusta de sociedade.
A maioria das famílias da periferia, com a mãe arrimo de família, o único equipamento eletrônico da casa é o celular da mãe, que não tem plano de dados. Ela, quando acessa a internet, não pode ficar em casa para desenvolver material didático com o filho, precisa trabalhar. As famílias, desorganizadas por uma estrutura econômica injusta, não conseguem desenvolver com as crianças o material impresso distribuído pela nossa Secretaria da Educação. A mãe tem, muitas vezes, tripla jornada de trabalho. Em que horário do dia ela vai desenvolver material didático? Como? Esses materiais, eletrônicos ou físicos das famílias vulneráveis, nunca retornaram para as escolas. Isso é real, não é hipótese discursiva.
Isso não é definitivamente justo.
E temos que pensar o significado do conceito de educar. O que significa educar?
A empatia educa e transforma, qualifica valores, muda consciência, concepção de mundo, revoluciona vidas e sociedades. O exemplo de amor ao próximo, de sentir a dor do outro, de estar em alma no lugar do menino que no último ano trocou a sala de aula “pela biqueira”, da adolescente que interage com a prostituição e com o abuso, ter essa sensibilidade, se indignar, agir. Isso educa mais que as palavras. É impossível ser de esquerda, ser socialista, ser humanista – cada um se define como mais lhe convém – que busque o bem coletivo, no meio de uma tragédia humanitária, da maior da nossa história, sem sentir a dor do outro, sem nutrir a empatia. Sem educação.
Só a educação transforma. Não existe defesa da vida sem acesso à educação.
O individualismo só pode gerar uma sociedade de individualistas.
Só quero que a sociedade seja coerente, quero que muita gente – historicamente identificada como de esquerda, progressista, que enfatiza os valores humanos – seja coerente. Ou melhor, justa.
Defender a educação para os excluídos dela é defender a vida.
Edinho, prefeito de Araraquara.