O parlamento britânico decide nesta quarta-feira (16) voto de desconfiança contra a primeira ministra Theresa May, o primeiro desdobramento da esmagadora rejeição, por 432 a 202, acachapante diferença de 230 votos, do acordo do Brexit que ela negociou com a União Europeia. A decisão foi tomada a 70 dias para a, até aqui, data oficial do Brexit, 29 de março. É a maior derrota de um governo inglês na história.
Derrota que o líder da oposição trabalhista, Jeremy Corbyn, classificou de “catastrófica para este governo” e fim da linha para “seu princípio governante de adiar e negar”. Em dezembro, May havia empurrado para janeiro a votação do seu acordo Brexit.
May – acrescentou – “não pode acreditar seriamente que depois de dois anos de fracasso, seja capaz de negociar um bom acordo para este país”. Foi Corbyn que pôs sobre a mesa a moção de desconfiança. Ele defende a antecipação das eleições gerais para que saia das urnas um governo com credibilidade para negociar com a UE e mudar o rumo da economia.
Contra o ‘pegar-ou-largar’ de May & Bruxelas, convergiram trabalhistas pró e anti Brexit, eurocéticos do Partido Conservador, liberais democratas, verdes, unionistas norte-irlandeses e independentistas escoceses. Como registrou o Daily Telegraph, “uma humilhação completa”: May sofre “a pior derrota já registrada” e acordo do Brexit “vira pó”.
“Os cidadão necessitam recuperar o controle da situação e novas eleições permitirão que elejam novos deputados, novo governo e um novo mandato para voltar a negociar o acordo com a UE”, afirmou Corbyn, que chamou a substituir o “governo zumbi” de May.
Como os conservadores eurocéticos e os unionistas rechaçam o acordo mas não querem ir às urnas, o moribundo governo May pode vir a ser mantido, entubado, na UTI, por mais dias e, nesse caso, em decorrência de decisão anterior do parlamento britânico, terá que apresentar um plano B na próxima segunda-feira (21).
Caso prevaleça a moção de desconfiança, haveria a convocação de eleições se nenhum dos partidos, dentro de 14 dias, conseguisse montar a maioria para governar. May apostou em prorrogar a agonia do seu governo, interpretando que o parlamento rejeitou seu acordo Brexit “mas nada diz sobre o que apoia”. Antes de chegar a tamanho rechaço, vários ministros de May haviam renunciado por se oporem terminantemente ao acordo e inclusive em dezembro a premiê sobreviveu a uma votação interna em seu partido.
Na tentativa de impedir a clamorosa derrota, em seu discurso May havia chantageado os parlamentares de que, se seu acordo não fosse aprovado e não se conseguisse acordo alternativo com Bruxelas até o dia 29 de março, os laços entre a Grã Bretanha e a UE seriam cortados da noite para o dia, pondo em risco a nação. Já o líder do Partido Nacional Escocês (SNP) no Parlamento, Ian Blackford, pediu a imediata suspensão do Artigo 50, que é que estabelece esse prazo. Segundo o Guardian, a UE já admite uma “prorrogação técnica” até julho.
A burocracia de Bruxelas reagiu à derrota, através de comunicado em que reiterou que o acordo repudiado pelo parlamento britânico “é e continua a ser a melhor e única forma de garantir a saída ordenada do Reino Unido da União Europeia”. O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, insistiu em que Londres “esclareça o mais breve possível, o tempo está acabando”.
O arrogante presidente francês Emmanuel Macron, disse que a Grã Bretanha será “quem mais vai perder” se deixar a UE sem acordo, admitindo “ajustes em uma ou duas coisas” e acrescentando que “não devemos parar de defender os interesses europeus só para resolver os problemas políticos e domésticos” dos ingleses.
Mas nem todos comungam com essa empáfia. O chefe dos ministros das finanças da zona do euro, o português Mário Centeno, afirmou que é possível “ajustar nossa trajetória”, “abrir todos os dossiês”. “Precisamos tomar decisões informadas com total calma e evitar uma saída sem acordo. Praticamente tudo é melhor que uma saída sem acordo”. Até o ministro das Relações Exteriores alemão, Heiko Maas, dissera antes da votação que “se der errado essa noite”, pode haver “mais conversas”, desde que não fossem mudanças “fundamentais”.
Em sua defesa da urgência em defenestrar May, o líder trabalhista ressaltou que ela não tem o apoio no parlamento “para a questão mais importante que o nosso país enfrenta”. “Todo primeiro-ministro anterior nesta situação teria renunciado e convocado uma eleição e é o dever desta casa liderar onde o governo falhou”, afirmou Corbyn.
O mais evidente motivo para a inusitada amplitude da rejeição ao acordo de May é o mecanismo criado para evitar uma fronteira rígida entre norte e sul da Irlanda, o chamado ‘backstop’, cujo efeito colateral é a subordinação indefinida da Grã Bretanha às leis e normas europeias (mas sem poder opinar sobre elas) enquanto não fosse fechado um acordo definitivo entre Bruxelas e Londres. Conforme a Deutsche Welle, há um mês a UE recusou definir 2021 como data limite.
É uma questão delicada, já que a restauração dessa fronteira rígida entre o norte e sul da Irlanda faria implodir o Acordo de Sexta Feira Santa, que trouxe a paz para Belfast. Mas não é só nisso que o acordo de May rompe com o espírito da proposta vitoriosa no referendo, que deliberou pelo Brexit e pela restauração da soberania britânica.
Os atuais termos do acordo Brexit de May também inviabilizariam os planos de Corbyn de renacionalização de empresas estratégicas privatizadas por Madame Tchatcher e discípulos, e o de criação de um ‘BNDES’ inglês para estimular a reindustrialização, por “violação da competitividade na UE”.
Além da Irlanda, o que for decidido impactará sobre as perspectivas da Escócia, onde o “fica” venceu.
As correntes blairistas dentro dos trabalhistas ingleses seguem apostando em um segundo referendo, para revogar o primeiro. Entre os eurocéticos conservadores, há os que adorariam ir para o colo de Trump, e os que pensam o futuro da Inglaterra como, alguém retratou, “uma grande Singapura”. Mas o problema de fundo do acordo de May foi que privilegiou, acima de tudo, a pauta da City londrina, o setor financeiro que há décadas funciona como um apêndice de Wall Street. Na semana passada, milhares de pessoas em Londres repudiaram o arrocho de May e exigiram eleições gerais.
A. P.