Jair Bolsonaro, mais conhecido como o negacionista-mor da ditadura instaurada no País por 21 anos, saiu do casulo e, por falta de assunto, para ele, é óbvio, resolveu fazer uma crítica indireta ao governo Lula após a atriz Fernanda Torres se tornar a primeira brasileira a vencer o Globo de Ouro por sua reconhecida atuação no filme de Walter Salles Ainda Estou Aqui.
“O investimento em infraestrutura é rechaçado pela gestão Lula e, coincidentemente, jamais cobrado por outros governantes de outrora. Enquanto isso, a Rouanet?”, legendou Bolsonaro, insinuando o uso de verba pública para financiar o filme, sendo secundado por inúmeros simpatizantes que endossaram as críticas à lei de incentivo fiscal à cultura nacional, enquanto muitos exibiam fotos da atriz ostentando o troféu, em tom de escárnio e provocação.
Bolsonaro e sua turba preferiram seguir o caminho da ignorância, que os acomete com muita frequência, ao invés de checar a verdade dos fatos.
O filme de Salles não utilizou a Lei Rouanet para captar um centavo sequer simplesmente porque essa legislação não permite o financiamento de longas, mas, sim, de obras cinematográficas de curta e média metragem, além de filmes documentais.
Esse não é o caso de Ainda Estou Aqui. O filme estrelado por Fernanda Torres e Selton Mello possui 2h19m de duração. O título se tornou alvo de críticas dos bolsonaristas principalmente por retratar as barbaridades da ditadura, como o sequestro e o assassinato de oponentes do regime, como aconteceu com o ex-deputado Rubens Paiva.
O filme de Salles recebeu apoio das coprodutoras Globoplay e Conspiração, com distribuição feita pela Sony Pictures, além de recursos privados levantados por empresas. A própria assessoria de imprensa do filme também já confirmara que não houve financiamento público na produção.
E se houvesse, qual o problema? E se a Lei Rouanet permitisse, o que haveria de errado nisso?
Em outras partes do mundo, a participação dos fundos públicos, muitos dos quais formados por tributação específica, na produção de obras de audiovisual, entre as quais se destaca o cinema, é algo consolidado historicamente.
Isso ocorre mesmo nos Estados Unidos, a meca do capitalismo recorrentemente venerada por Bolsonaro, apesar do peso das grandes corporações econômicas no controle da indústria cinematográfica, desde os anos 50. Hollywood não é fruto apenas do capital privado. Na produção de películas norte-americanas, desses lixos culturais que se produzem em série por lá e, desafortunadamente, se replicam por aqui, com raras e honrosas exceções, repousam iniciativas estatais e uma cota de tela que é muito considerada pelo mercado exibidor.
A California Film Commission, por exemplo, uma das mais importantes do país, situada aos pés de Hollywood, constitui um órgão do departamento de desenvolvimento econômico do estado (Califórnia) e sua política é baseada em deduções fiscais, gerando um Fundo calculado, recentemente, em mais de US$ 300 milhões ao ano.
Nos países europeus, a presença dos recursos públicos na indústria cinematográfica é mais agressiva ainda. A geração de receita por meio de publicidade e outras formas comerciais é permitida em alguns países, mas a dependência dessas receitas é baixa na maioria dos casos. Diferentes modelos de financiamento público são utilizados, incluindo alocações orçamentárias, taxas de licença e impostos atribuídos aos serviços de radiodifusão.
Segundo os dados mais recentes do Observatório Europeu – “Financiamento de filmes de ficção na Europa: visão geral e tendências”, a parcela da participação dos incentivos à produção no financiamento total do filme aumentou significativamente, de 9,6% em 2016 a 17,8% em 2020. Esse aumento atribui-se, principalmente, ao papel dos incentivos aos mercados de médio e grande porte. Filmes de diferentes envergaduras de orçamento foram beneficiados por um maior financiamento por meio de incentivos à produção.
A crítica de Bolsonaro, entretanto, não resulta apenas de sua ignorância sobre as fontes de financiamento do filme que rendeu o Globo de Ouro a Fernanda Torres, mas, sim, de seu visível incômodo com a repercussão do longa de Salles e a bilheteria que já mobilizou mais de 3 milhões de pessoas pelo Brasil afora, gerando uma receita muito superior, até o momento, que os custos de produção.
A história de Rubens Paiva e de sua família é a história de milhares de patriotas brasileiros que se insurgiram das mais diversas formas contra aquele período trágico que o Brasil atravessou, portanto, o que esperar de quem continua negando a ditadura e exaltando os ditadores e torturadores daquele período?
O que esperar de alguém que usa do cinismo mais descarado para questionar o emprego de verba pública, que, no caso, sequer aconteceu, para posar de defensor do erário, enquanto, em sua gestão, à socapa, entregava carta branca para o ministro Guedes alienar o patrimônio público a preço vil (vide Eletrobrás, o exemplo mais escandaloso) e fazia vistas grossas às tratativas sórdidas de subalternos que negociavam propina na compra de vacinas contra a pandemia? Ou, ainda, para coroar esse enredo já bastante conhecido, se apropriava de joias presenteadas ao País para se enriquecer com sua comercialização?
No caso desse negacionista doentio, simulacro da moralidade, não se pode esperar nada além do que vimos em seu primeiro e infeliz comentário público no ano que se inicia. Está no seu DNA e, no caso dele, o velho ditado popular “pau que nasce torno, morre torto” aplica-se como uma luva.
MARCO CAMPANELLA