A primeira presidente indígena da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Joênia Wapichana, relatou ter encontrado situação calamitosa na saúde indígena, herança de “muita negligência” do governo de Jair Bolsonaro.
Ela disse acreditar que o ex-presidente desejou a extinção do povo Yanomami, dada a soma de ações e omissões contrárias ao povo cometidas por sua gestão.
“Nos deparamos com uma tragédia humanitária. Pessoas morrendo de fome, que deveriam estar sendo assistidas pelo Estado brasileiro”, lamentou.
“Eu vi, na prática, os profissionais da saúde fazendo reuniões e pude ver que melhorou o atendimento, mas ainda existem demandas. O número de atendimentos aumentou consideravelmente”, relatou a presidente da Funai.
Joênia viajou com o presidente Lula a Roraima, onde acompanhou as ações emergenciais do governo federal para atenuar a crise humanitária e sanitária na Terra Yanomami.
Em 24 de janeiro, Lula demitiu 33 coordenadores da Funai e exonerou outros 4 servidores que atuavam na coordenação do órgão.
Também foram exonerados 5 assessores da presidência e o chefe de gabinete da fundação, assim como o diretor do Museu do Índio e o corregedor da Funai.
As mudanças começaram após Lula voltar da região Yanomami e demitir 11 chefes distritais da Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde. Entre eles, estava Marcio Sidney Sousa Cavalcante, coordenador de Saúde Indígena do leste de Roraima, onde fica a Terra Yanomami.
TRAGÉDIA YANOMAMI
Nas últimas semanas, o Brasil foi surpreendido e se comoveu com as imagens de indígenas yanomami doentes e desnutridos.
Especialistas apontam que a tragédia humanitária e sanitária — que há meses já era denunciada por entidades indigenistas — tem como causa central o avanço do garimpo ilegal na terra indígena incentivado por Bolsonaro.
A ação dos garimpeiros contamina as águas dos rios com mercúrio, derruba a vegetação, afasta animais, leva violência e uma série de doenças, como malária e verminoses, aos povos originários.
Muito foi comentado sobre o papel de órgãos e entidades federais, como a Funai, o Ibama, o Ministério da Saúde e as Forças Armadas, no socorro aos indígenas e no combate às ações ilegais no território dos indígenas. Contudo, a ANM (Agência Nacional de Mineração) permanece fora do debate, não obstante o papel central na regulação e fiscalização da atividade mineradora no País.
AGÊNCIA FISCALIZADORA
A ANM foi criada pela Lei 13.575/17, em substituição ao antigo DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), autarquia simples criada durante o regime militar. Por sua vez, a natureza jurídica da ANM é de autarquia de regime especial, com as características formais de uma agência reguladora, com mandato fixo de seus dirigentes.
Dentre as competências estão a fixação de critérios para a concessão de títulos minerários, a expedição desses títulos, a fiscalização de atividades de mineração no território nacional e a aplicação das sanções cabíveis. Além disso, ao tomar conhecimento de fato que possa configurar infração penal, a agência deve comunicá-lo à autoridade competente.
Nada disso foi feito. Tudo sob o beneplácito da gestão do ex-presidente.
BOLSONARO ATROPELOU A CONSTITUIÇÃO
As terras indígenas são bens da União, com usufruto dos povos originários, na forma dos artigos 20, XI e 231 da Constituição da República de 1988 e do artigo 2, IX da Lei 6.001/73. Nestes territórios, a pesquisa e lavra de recursos minerais somente é permitida “com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei” (artigo 231, §3º).
Lei federal que deveria regulamentar essas atividades jamais foi aprovada pelo Congresso. Tramita na Câmara dos Deputados o PL 191/20, do Poder Executivo, portanto, encaminhado durante a gestão de Bolsonaro, que pretende viabilizar a pesquisa e a lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos, bem como o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas.
Mais de 3 mil pedidos de alvarás de pesquisas em terras indígenas aguardam na ANM a aprovação de lei que permita essa concessão. No entanto, considerando também as diversas críticas de movimentos indigenistas ao projeto, não há até o momento indícios de que a atual composição do governo federal tenha interesse na votação do projeto em questão.
SEM REGULAMENTAÇÃO
Sem lei que regulamente atividades mineradoras em terras indígenas nem, tampouco, outorga de títulos minerários pela ANM, a atividade garimpeira no território yanomami deve ser enquadrada como ilegal.
Pode, inclusive, constituir crime ambiental, na forma dos artigos 44 e 55 da Lei 9.605/98. Caberia, portanto, à agência reguladora, no exercício do poder de polícia que possui, fiscalizar e reprimir as atividades, assim como notificar autoridades policiais sobre a prática de crimes.
Novamente, sob a gestão de Bolsonaro, a agência reguladora não cumpriu o papel legal e constitucional para evitar a tragédia humanitária e sanitária sobre a comunidade indígena yanomami.
A ANM é uma das mais recentes agências reguladoras brasileiras. Criada há pouco mais de 5 anos, ainda não conta com estrutura de pessoal e logística adequadas para realizar plenamente todas as competências e prerrogativas que lhe é assegurada.
A indicação de especialistas que compreendam a importância das pautas ambientais e indígenas para a preservação do planeta no próximo mandato na agência, a formação de corpo técnico robusto e a garantia de infraestrutura de trabalho para esses servidores são medidas fundamentais para evitar que a tragédia yanomami se repita.
M. V.