Em artigo publicado pelo Washington Post, o presidente deposto do Níger, Mohamed Bazoum, exortou os EUA a intervir no país africano para lhe restituir o poder e preservar os “valores compartilhados” com Washington e Paris, que ali mantêm bases. Na semana passada, uma revolta militar foi apoiada nas ruas por manifestantes aos gritos de “abaixo a França” e pedidos de ajuda à Rússia.
“Em nossa hora da necessidade, eu chamo o governo dos EUA e toda a comunidade internacional para nos ajudarem a restaurar nossa ordem constitucional”, conclamou Bazoum, asseverando que o povo nigerino “nunca esquecerá” tal apoio.
Em seu primeiro pronunciamento à tevê estatal, o autoassumido chefe do Comitê Nacional de Salvaguarda da Pátria (CNSP), general Abdourahmane Tchiani, disse que a destituição de Bazoum foi para evitar “o desaparecimento gradual e inevitável” do país.
Ele acrescentou que, embora Bazoum tenha tentado convencer as pessoas de que “tudo está indo bem… a dura realidade (é) uma pilha de mortos, deslocados, humilhação e frustração”. “A abordagem de segurança hoje não trouxe segurança ao país, apesar dos grandes sacrifícios” – uma referência à instalação no país de forças e bases estrangeiras.
Já Bazoum se gabou por seus supostos êxitos na “governação econômica e social”, citando a aprovação manifestada anteriormente pelo secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, que descreveu Niamey como “um modelo de resiliência, um modelo de democracia, um modelo de cooperação”.
Ele asseverou ainda que, no seu mandato, a segurança “melhorou dramaticamente” graças aos EUA e à Europa. Os EUA têm uma grande base de drones no Níger e um milhar de marines; a França, 1500 soldados e algumas bases e a Itália, 350 soldados. Até a Alemanha instalou ali uma operação militar recentemente. Já o CNSP anunciou a ruptura dos acordos de cooperação militar com a França, a ex-potência colonial.
Um país paupérrimo de 25 milhoes de habitantes, o Níger fica no Sahel, a região subsaariana assolada por milícias jihadistas, um efeito colateral da destruição da Líbia pela Otan e sua tropa de choque em 2011, que desestabilizou a região.
Desde a intervenção da Otan na Líbia, extremistas ligados ao Estado Islâmico, Al Qaeda e Boko Haram causaram milhares de mortes e deslocaram seis milhões de pessoas no Sahel. A desestabilização levou a sucessivas revoltas militares na região, com os franceses sendo expulsos do Mali, Burkina Faso e Guiné. Segundo o Instituto para a Economia e a Paz, o Sahel tem sido o epicentro da violência jihadista nos últimos anos, ultrapassando o Oriente Médio e o Sul da Ásia, representando 43% de tais mortes em 2022, em comparação com 1% em 2007.
Bazoum era visto também como um parceiro imprescindível na estratégia neocolonial no Sahel, além de ser tido ainda como um colaborador exemplar dos países europeus na repressão aos migrantes que rumam ao Mediterrâneo, tendo concordado em receber de volta centenas deles oriundos dos famigerados centros de detenção na Líbia.
O Níger possui algumas das maiores reservas mundiais de cobalto, diamantes, platina e urânio. É o principal fornecedor de urânio para a União Europeia, à frente do Cazaquistão e da Rússia. Desde 1968, a empresa Orano (anteriormente Areva), 45% de propriedade do Estado francês, extrai urânio ao redor da cidade deserta de Arlit, no norte. Apenas duas minas respondem por cerca de um terço da produção global total da empresa multibilionária de urânio usado para gerar a energia nuclear da França, que não apenas fornece 70% da eletricidade do país, mas também a grande parte da Europa, incluindo a Alemanha.
Mais de 10 milhões dos 24 milhões de habitantes do Níger vivem em extrema pobreza, enquanto aproximadamente 17% da população do país necessitam de assistência humanitária. O orçamento anual do governo do Níger tem sido tipicamente uma fração da receita anual de Orano. Outra fonte de expoliação do Níger é o fato de ter como moeda o franco CFA, sob controle francês, que exige que 50% das reservas fiquem em Paris.
Segundo o The New York Times, o caso é grave, com o golpe no Níger tendo derrubado “o último dominó” em um grupo de países africanos, desde a Guiné, no extremo oeste do continente, até o Sudão, no extremo leste, que agora são controlados por golpistas. Para os Estados Unidos e seus subalternos, o golpe levantou “questões urgentes sobre a luta contra os militantes islâmicos no Sahel, uma vasta região semiárida onde grupos ligados à Al-Qaeda e ao Daesh estão ganhando força em um ritmo alarmante”, segue a peroração.
Como observa o NYT, as imagens do golpe em Niamey, onde os manifestantes agitaram bandeiras russas, repetem cenas semelhantes às durante o golpe na vizinha Burkina Faso. Para o NYT, há a ameaça de os norte-americanos serem convidados a deixar o país e se “abrirem as portas” para a Rússia.
Curiosamente, foi mais sereno em sua avaliação dos acontecimentos o ministro das Relações Exteriores, Antonio Tajani. “Não temos informações sobre o envolvimento da Rússia nos eventos do Níger, ou a preparação do golpe”, disse Tajani ao jornal La Repubblica. Ele considerou os manifestantes nigerinos que carregavam fotos do presidente Putin como “mais anti-franceses do que qualquer outra coisa”. “Muitos, talvez todos na Europa, foram pegos de surpresa” pelo golpe, disse Tajani. “Ninguém sabia disso, nem os Estados Unidos nem a França.”
Acionada por Washington, a Comunidade Econômica da África Ocidental, que tem a Nigéria como principal país, exigiu a restituição do poder a Bazoum, com o presidente Bola Tinubu enviando ao Senado pedido de autorização para uma intervenção militar no Níger. Os vizinhos Burkina Faso e Mali advertiram que prestarão assistência militar ao Níger, criando o risco de uma conflagração regional.