Em entrevista ao HP, o representante do movimento popular chileno no Movimento Não mais Administradoras de Fundos de Pensão (NO + AFP), Mario Reinaldo Villanueva Olmedo, denuncia o sistema de privatização/capitalização da Previdência em curso, cuja injustiça e desumanidade transformou seu país em recordista no suicídio de idosos na América Latina. Dirigente da Confederação Nacional de Profissionais Universitários dos Serviços de Saúde (Fenprus), Olmedo alerta para a identidade do projeto de desmonte da Seguridade Social aplicado pelos Chicago boys durante a ditadura de Pinochet com a proposta que Bolsonaro tenta empurrar, multiplicando os “superlucros obtidos para algumas companhias transnacionais com a economia feita a partir dos baixíssimos valores pagos às aposentadorias”.
LEONARDO WEXELL SEVERO
Como o movimento NO + AFP tem denunciado em massivas manifestações, o sistema de privatização/capitalização da Previdência trouxe inumeráveis problemas para os aposentados chilenos. Qual é o principal?
Mario Olmedo – O mais grave é que no Chile o governo terminou com o sistema de repartição até então existente (de Seguridade Social) e impôs um de poupança individual, a chamada capitalização. Isso significa que os trabalhadores passaram a receber tão somente o que conseguiram economizar ao longo de sua vida de trabalho. Uma miséria, pois não contribuem ininterruptamente, já que é preciso computar o tempo em que se fica desempregado ou na informalidade.
Esse foi o coração do modelo neoliberal imposto pela ditadura do general Pinochet [1973-1990]. Obviamente, sem qualquer discussão com o sindicalismo e as entidades da sociedade civil, que se encontravam amordaçados, na ilegalidade. Foi dessa forma que perdemos aposentadorias dignas e suficientes para o nosso sustento.
Embora tenham prometido taxas de retorno de 70% e inclusive de 100% da remuneração quando chegasse a 2020, hoje uma pessoa fica pobre quando se aposenta. Como comprova a própria Superintendência de Pensões, quem se aposentava com US$ 700 tem uma taxa de retorno de apenas 33% se é trabalhador e de tão somente 25% se é trabalhadora, o que equivale a míseros US$ 231 e US$ 175, respectivamente.
Os resultados mostram que as imensas campanhas publicitárias feitas pelo governo eram só isso mesmo: propaganda para vender uma falsidade.
Assim o Chile é hoje o país recordista em suicídio de idosos na América Latina…
M.O. – Sem dúvida, a multiplicação dos suicídios é uma das consequências desta política. É clara a incidência das baixas aposentadorias nesta tragédia. Afinal, como podem os nossos idosos sobreviver com essa miséria? Houve o caso recente de um casal que após toda uma vida, mais de 50 anos juntos, decidiu pelo suicídio.
O fato é que com recursos cada vez menores, os filhos – que também não são tão novos – têm que passar a se responsabilizar pelos seus pais. E quando não há filhos, os idosos passam a depender de vizinhos. Para quê? A fim de que uns poucos especuladores, bancos e transnacionais, lucrem de forma exorbitante.
Os idosos da Europa, onde funciona o sistema de repartição, andam passeando pelo mundo. A palavra jubilación (aposentadoria, em espanhol) vem de júbilo – alegria, empolgação, entusiasmo -, período em que se está desfrutando. Usufruindo de políticas públicas, chegam a nosso país muitos aposentados europeus para fazer turismo. Infelizmente, devido às AFPs, a grande maioria dos nossos está sofrendo.
Qual a semelhança entre o projeto de Pinochet e a proposta de Bolsonaro contra a Previdência Pública?
M.O. – O atual ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, se formou com os Chicago boys, mentores do sistema previdenciário pinochetista. [Implementado em 1981 pelo ministro do Trabalho e Previdência Social, José Piñera, irmão do atual presidente José Piñera, justamente na época em que Guedes vivia no Chile]. É um sistema feito para favorecer os grandes grupos empresariais, comandados por donos de bancos. Essas companhias se aproveitam dos superlucros obtidos com a economia feita a partir dos baixíssimos valores pagos às aposentadorias para expandir seus negócios pela região, como temos visto na Argentina, Brasil, Colômbia e Peru.
Privatização dos lucros e socialização dos prejuízos.
M.O. – Não há dúvida de que é um sistema extremamente injusto, que prejudica os trabalhadores para beneficiar o grande capital. De acordo com um levantamento de abril do ano passado, os investimentos dos fundos administrados pelas AFP no Chile nos dez principais bancos totalizavam US$ 47,9 bilhões, assim distribuídos: Banco Santander, US$ 7,79 bilhões; Banco de Chile, US$ 7,64 bilhões; Banco do Estado do Chile, US$ 6,61 bilhões; Itaú Corpbanca, US$ 6,21 bilhões; Banco de Crédito e Investimentos, US$ 6,18 bilhões; Scotiabank, US$ 4,6 bilhões; Bilbao Vizcaya Argentaria, US$ 3,57 bilhões; Bice, US$ 2,57 bilhões; Security, US$ 2,05 bilhões e Falabella, US$ 616 milhões. Quando esses mesmos bancos emprestam aos trabalhadores, o fazem a taxas de juros exorbitantes.
PESQUISA
Há um estudo da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade Alberto Furtado (UAH) que aponta que a rentabilidade média das AFP sobre o patrimônio no período 2006-2015 foi de 25,4%, 4,8 vezes superior aos 5,3% que justificavam por sua pretensa exposição ao “risco de mercado”.
As AFPs são controladas por companhias transnacionais que especulam com um imenso patrimônio coletivo de centenas de bilhões de dólares, US$ 220 bilhões precisamente, dinheiro que é de todos os chilenos, equivalente a 2/3 do nosso Produto Interno Bruto (PIB). Dois terços destes recursos, US$ 151,9 bilhões, estão conforme a Fundação Sol, sob o controle de três empresas norte-americanas: Habitat, US$ 57,76 bilhões (27,4%); Provida, US$ 53,03 bilhões (25,2%) e Cuprum, US$ 41,14 (19,5%).
Para completar, nada menos que 40% deste montante, mais de US$ 80 bilhões, estão investidos nos Estados Unidos.
No final do ano passado estiveste numa reunião com o movimento sindical brasileiro em São Paulo. Qual a sua impressão do encontro?
M.O. – O fato de existirem centrais sindicais que não estão submetidas ao governo, com capacidade de mobilização, abre a possibilidade concreta de realização de grandes protestos para impedir a aprovação desta proposta neoliberal. Creio que há condições de convergência não só no Brasil, como na América Latina, para enfrentar e derrotar esse mecanismo de arrocho.
Estive recentemente na Conferência do movimento NO + AFP e começamos um processo de maior convergência com a CUT Chile, que sinalizou para desdobramentos importantes. O primeiro foi o de apoiar a mobilização feminina, que redundou na tremenda e maravilhosa marcha do dia 8 de março; o segundo é o ato de 31 de março, pelo fim das Administradoras de Fundos de Pensão; e o terceiro é a greve geral de 11 de abril, que também tem entre suas bandeiras principais o fim das AFPs e a afirmação da solidariedade com a contribuição tripartite de trabalhadores, empresas e Estado.
A proposta das entidades é clara: fim das AFPs. Mas o governo propõe uma sobrevida.
M.O. – Pior que isso. O governo Piñera quer fortalecer as AFPs, quer ampliar os recursos para essas grandes companhias transnacionais que exploram nossos aposentados. De que forma? Aumentando a alíquota obrigatória de contribuição de 10% para 14%, expressivos 40%. Este dispositivo foi criado para suprir a redução da rentabilidade, que vem caindo. Era de 12% na primeira década, baixou para 8%, 6%, 4% e segue baixando… Quer compensar a perda da rentabilidade ampliando a exploração dos trabalhadores.
Fale um pouco sobre o Pilar Solidário instituído pela presidente Michele Bachellet.
M.O. – Frente ao evidente fracasso do sistema e das suas pensões miseráveis, em 2008 o governo Bachellet decidiu instituir o Pilar Solidário, mecanismo de auxílio para pessoas em situação vulnerável, a fim de garantir um aporte mínimo. Passamos a ter a Pensão Básica Solidária para o 60% mais pobre, 586.301 pessoas que ganham $ 107.304 (US$ 158) e se cria a Contribuição Previdenciária Solidária também para os 60% mas pobres, 894.899 pessoas que recebem uma complementação à sua aposentadoria com um valor médio de $ 66.913(US$ 98). Não se acabou com as AFPs, que continuaram lucrando, apenas se injetou recursos públicos para minorar o problema causado por elas. Hoje o grosso das aposentadorias precisa ser pago pelo Estado: 1.481.200 contra 1.300.256 pagas pelas AFPs. Com tudo isso mais de 44% das aposentadorias se encontra abaixo da linha da pobreza e 78% não alcança sequer o salário mínimo.
Para resolver estes problemas, vamos na próxima quinta-feira a Valparaíso apresentar ao Congresso Nacional nossa proposta de um novo sistema, um modelo de Seguridade Social. As mobilizações nos darão o respaldo necessário para pressionar e sensibilizar os parlamentares pela sua aprovação.